O país que tem mais gente fora do que dentro

Chamam-lhe a 11.ª ilha de Cabo Verde. A diáspora é uma das grandes fontes de receitas do país e está no imaginário colectivo, corre nas canções, na literatura, no carácter nacional.

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O avião aterra na Praia, em Santiago, num dia cheio de nuvens cinzentas de Junho. Podia ser um aeroporto qualquer, numa cidade com terreno seco e árido, apesar da aparente ameaça de chuva que nunca cairá. Mas aqui chegam e partem milhares de cabo-verdianos migrantes, gente que saiu do país ou que nunca viveu no arquipélago e que pertence a uma diáspora maior que a população local, de cerca de 500 mil habitantes. Gente que saiu porque não há emprego, porque a seca não permite que a agricultura floresça e porque o turismo, que é o motor de crescimento do país, não é elástico.

Um aeroporto é um lugar de partidas e chegadas, mas aqui em Cabo Verde é também de despedidas longas, às vezes por muito tempo, para sempre. É também o lugar onde aterram encomendas, presentes que vêm de longe, ou onde são despachados artigos da terra como grogue ou marisco.

Com mais população fora do que dentro, Cabo Verde é um dos países com mais altas taxas de emigração — as estimativas apontam para um milhão na diáspora. Perguntar a um cabo-verdiano se tem alguém da família a viver fora torna-se caricato, dizem-nos: é claro que toda a gente o tem. Há inclusivamente um Ministério das Comunidades, dedicado aos emigrantes.

Na Praia, em casa da mãe da antropóloga Eufémia Vicente Rocha, por exemplo, os anos “giram à volta da tia que vem de França, do tio que vem de Portugal e vai passar aqui um mês ou de outros familiares que vêm de Holanda e vêm passar quatro dias”. No prédio que a mãe construiu no bairro de Tira Chapéu, vivem Eufémia e as irmãs. Subimos as escadas até ao andar no topo onde vive a mãe e onde a família toda faz as refeições diariamente. Das janelas vêem-se os prédios em tons de terra e na cómoda, encostada à parede da entrada, dispõem-se os retratos da família em molduras de vários tamanhos.

Se os pais de Eufémia Rocha não tivessem emigrado para Portugal, talvez não estivesse a ser entrevistada esta doutorada em Ciências Sociais, professora no Departamento de Ciências Sociais e Humanas da Universidade de Cabo Verde, onde ensina disciplinas de Antropologia e dirige o mestrado em Segurança Pública.

Nos anos 1960, o pai de Eufémia emigrou para Lisboa. A mãe juntou-se na década seguinte. Mesmo não tendo gostado muito da vida de emigrante, foi isso que lhe permitiu juntar algum dinheiro para mais tarde investir. Foi em Lisboa que começou “a rabidar”, conta Eufémia numa voz muito pausada, agora noutra sala de estar. “Rabidante, ou seja, uma mulher que se insere no comércio informal e dedica-se a actividades de compra e venda intensa — rabidar é desenrascar, virar a vida.”

Em Lisboa, o pai trabalhava nas obras, a mãe era peixeira e ganhava mais. De forma que compraram uma carrinha: o pai fazia o transporte das mercadorias, “das caixas de peixe”, durante a madrugada, entre o Cais do Sodré e os outros pontos de venda. “Foi justamente os ganhos que essa vida deu que fez com que ela investisse na vida de rabidante”, agora já em Cabo Verde: foi vender no mercado de Sucupira, dos maiores na cidade, e na feira da Assomada, a segunda maior cidade de Santiago. Anos mais tarde, abriu uma loja com produtos de beleza e de higiene num pequeno centro comercial ao lado de Sucupira. Abriria depois mais três lojas: no bairro do Palmarejo, no Praia Shopping, um centro comercial junto à praia de Quebra Canela, que é uma das zonas sociais da cidade, e em Assomada. Construiu um prédio, um terreno que adquiriu em início dos anos 1990, e ainda uma casa em Assomada. Eufémia nunca recebeu bolsa para estudar, fê-lo sempre com a ajuda dos pais. “A minha mãe sempre disse [que estudar] é um investimento. Para ela, sempre foi claro que era um investimento, [queria] que os filhos tivessem uma vida distinta da dela. Nunca quis que seguíssemos as suas pegadas em termos da profissão porque passava por inúmeras humilhações que não queria que nós passássemos.”

Quando olha “para o panorama do país, do que se construiu”, Eufémia Rocha vê que foi “com o suporte desses emigrantes”, muito para além das remessas que representam 10% do produto interno bruto (PIB). Vê também que a emigração teve efeitos sociais na recomposição ao nível das famílias: “Acaba por alargar a visão que temos da família cabo-verdiana, de uma maneira que hoje não podemos falar da família mas das famílias cabo-verdianas. Há inúmeras reconfigurações familiares e essas reconfigurações são atravessadas pela emigração.” Exemplos: o facto de os homens partirem, deixarem as suas mulheres que passam a assumir o comando da casa e mantêm a família de pé, “mas sem deixar de lado a forte conexão com o marido que está no estrangeiro”; “termos cada vez mais mulheres a emigrar” e “mulheres jovens que emigram sem estarem atreladas à figura do marido”; ou famílias em que os filhos optam por ficar no país para onde emigraram mesmo depois de os patriarcas regressarem, “como é o caso dos meus tios, em que os filhos optaram por ficar” em Inglaterra, em Portugal.

Mais uma vez, Eufémia dá o exemplo da mãe, que apoia quem vier e quiser ficar, o que remete para uma concepção de família que é diferente do “modelo ocidental de família nuclear, pais e filhos”. “Aqui, toda a gente é família, mesmo quando os laços não são de sangue mas de afinidade. Muita gente pode vir e morar aqui em casa”, diz, com orgulho.

Cabo Verde tem dos indicadores sociais mais positivos no contexto africano. Está no 123.º lugar entre os 187 países no Índice de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas; entre 2003 e 2008, a taxa de pobreza nacional per capita baixou de 37% para 27%, e a taxa de pobreza extrema de 21% para 12%; a taxa de literacia adulta está estimada em 87%, a taxa de mortalidade infantil caiu de 26 por 1000 nados-vivos, em 2007, para 15, em 2011 (tudo dados do Banco Mundial). Mas isto não impede que muitos cabo-verdianos cresçam a pensar no dia em que vão partir, estudar fora e viver noutro país.

Os 40 anos da independência também podem ser olhados por este prisma da diáspora, uma marca fulcral da identidade cabo-verdiana. Que teve inúmeros impactos. A própria luta pela independência de Cabo Verde começou na diáspora, pela mão do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) e de figuras como Amílcar Cabral ou Aristides Pereira. Parte da sua base de apoio foi assegurada pela diáspora, do Senegal à Holanda.

Quando foi fundado em 1975, o Estado cabo-verdiano era pequeno, desconhecido, nascia num ambiente internacional hostil, lembra António Correia e Silva, historiador e ministro do Ensino Superior, Ciência e Inovação. Chegava à independência no auge da Guerra Fria, num período em que havia “uma disputa acérrima pela África” e no meio de uma crise provocada por uma longa seca. “Tinha de se afirmar como Estado: quatro mil quilómetros quadrados, secos, na altura com 200 mil pessoas… Era quase querer desafiar a lei da gravidade da comunidade internacional!” A diáspora serviu na altura para o país se afirmar nas várias sociedades onde estava, na Europa, nos Estados Unidos. “As contestações muitas vezes vieram da diáspora, e na própria transição para a democracia, em 1990-91, fez-se ouvir a diáspora.”

A diáspora é tão importante que o Governo criou mesmo um Ministério das Comunidades. Que serve quantas pessoas? Numa sala desse ministério, na Achada de Santo António, a ministra com a pasta, Fernanda Fernandes, explica que é difícil quantificá-la, até porque a Constituição aceita que “um descendente até neto pode ser cabo-verdiano”. Um dos impactos bem visíveis, nota, é através da educação. É rara a família que não tenha tido ajuda de quem esteja fora. De resto, é visível nas construções, na criação de empresas e de emprego, observa. Contribuiu ainda para o reforço da democracia. “A abertura de Cabo Verde ao mundo ganhou muito com a emigração. A maior abertura para a democracia terá vindo da diáspora.”

Desde o início que há este contributo: “Foi com a mobilidade, com as migrações, que se começou a construir o país.” Por isso, a ideia da mobilidade é tão presente.

Na estratégia nacional da emigração, lançada pelo governo do PAICV — Partido Africano para a Independência de Cabo Verde, sucessor do PAIGC —, o Governo definiu vários eixos: ajudar as pessoas a conhecerem melhor o país para onde querem ir e ajudar a integração dos cabo-verdianos no país em que estejam; preservar a cultura e identidade; incentivar a contribuição da diáspora no processo de desenvolvimento de Cabo Verde. “Temos uma diáspora muito bem-sucedida, bem integrada mas também temos uma diáspora cheia de problemas e portanto queremos acudir.”

No ranking dos países com emigrantes cabo-verdianos estão os EUA, Portugal (“calcula-se que haja 200 mil, incluindo os que têm nacionalidade portuguesa”, avalia a ministra), Holanda, Luxemburgo, Suíça, Suécia, Alemanha, Espanha, outros membros dos PALOP e Senegal; o Brasil, Argentina e China. Se é de Santiago, irá talvez para Portugal, França, para a Europa; se é do Fogo e Brava, escolherá os Estados Unidos — assim se desenham as linhas migratórias cabo-verdianas.

Como os emigrantes votam, governar também para eles é um desafio, comenta a ministra, que viveu e se formou em Portugal. O custo de recenseamento de cabo-verdianos, da Escandinávia à China, é “extremamente oneroso”: “São milhões para pôr os cabo-verdianos a votar.”

Não há, porém, qualquer política para fazer voltar cabo-verdianos, há sim vontade de criar mecanismos para que quem regresse o faça “com sucesso” e possa vir a ser útil. Para isso, o Governo criou alguns projectos como o Diáspora Contributo.

Da varanda de casa de Abraão Vicente vê-se o mar muito azul que circunda a ilha de Santiago. Estamos no meio do oceano Atlântico. Qualquer deslocação faz-se de barco ou avião. O artista plástico, sociólogo, deputado do partido da oposição Movimento para a Democracia (MpD) também já foi emigrante durante o tempo em que estudou em Portugal. “A diáspora está completamente abandonada”, defende. Porque se criaram expectativas em relação à diáspora que um país com os recursos de Cabo Verde “não tem condições para responder”. “Não é suposto ajudarmos pessoas desalojadas na Damaia a partir da cidade da Praia ou dar assistência médica a alguém em Nova Iorque”, comenta. “A diáspora não pode ser governada como se fosse uma 11.ª ilha, em que tem tanto direito como os que estão cá a políticas efectivas de governação. Isso não é possível pela dispersão, pelo diferente quadro jurídico de cada país”, analisa. “O que se podia promover mais era a circulação de pessoas. Vir a Cabo Verde ainda é extremamente caro, temos o espaço aéreo que ainda não é liberalizado, o investimento dos emigrantes ainda não é facilitado, ainda se cobram imensos juros.”

Além da questão política, que critica, Abraão Vicente lembra que a diáspora é crucial, e que “acaba por aumentar a dimensão do próprio país”. “Culturalmente, influenciou muito e de que maneira. As nossas músicas tradicionais foram todas modificadas devido à influência da diáspora. E é interessante perceber quando se vai às comunidades na diáspora que Cabo Verde continua intacto lá: na Buraca ou na Damaia, fala-se um crioulo mais profundo do que cá.”

Num auditório de um dos pólos da Universidade de Santiago, perto do Farol, Nardi Sousa, sociólogo, lembra: a dada altura, só se pensava em emigração, mesmo que fosse para viver em barracas e isso correspondesse a uma mobilidade social descendente. “Houve ganhos em termos de remessas, mas também o empobrecimento da população: famílias desfeitas, maridos que deixaram as suas mulheres com os filhos. Depois a separação e a distância criam esta ruptura, muitas crianças foram criadas pelos avós, etc. Posto isto, a diáspora tem um peso enorme e está mal aproveitada”, analisa.

O sociólogo contextualiza e critica: “Na década de 1960/70 muitos portugueses foram para a construção civil em França e muitos cabo-verdianos foram substituir esta mão-de-obra em Portugal. Mesmo depois da independência o nosso Governo precisava de aliviar a pressão da população porque a economia não produzia tantos empregos. Então deixavam sair e ganhavam com as remessas dos emigrantes. Eu chamo [a isso] uma espécie de complot entre Cabo Verde e Portugal porque sabiam o que estava a acontecer e não travaram a emigração. Teve também consequências nefastas em termos do próprio investimento na agricultura, no mundo rural; hoje começamos a investir em barragens para captar as águas da chuvas para produzir no campo, mas nesse período a emigração fez com que as pessoas abandonassem a terra.”

Porém, há pontos positivos. Hoje muita gente vive em casas de parentes que estão emigrados — “em Assomada, mais de 60% das habitações são construídas pelos emigrantes, quer dizer que SE consegue melhorar o nível de vida dos familiares”, assinala. “Se não fosse o peso da diáspora, a pobreza era muito mais forte e haveria mais gente a viver em situação de miséria; no interior de Santiago isso vê-se de forma clara.”

A lógica, no entanto, é que “Cabo Verde continua a exportar pessoas e a pensar no retorno das remessas”. “A prioridade foi essa, fazer sair pessoas para aliviar a pressão humana e receber as remessas para criar a poupança interna e fazer a economia funcionar com a ajuda pública ao desenvolvimento. O país deve repensar tudo isto e sair da dependência. A ajuda tem um problema sério, um assistencialismo a longo prazo, que afecta a criatividade dos políticos e afecta também a definição de estratégias para um país se tornar o mais autónomo possível.”

Não usa o Skype, nem outra aplicação que permita fazer chamadas vídeo. Francisco Avelino Carvalho, director-geral das Comunidades, fala com a família através do Viber. “Isto é incrível”, nota ele ao olhar para o seu telemóvel que mostra para a câmara. “Eu que sou um profissional das migrações nunca tinha olhado para o meu telemóvel desta forma.” À medida que desliza a lista telefónica, aparecem números de pessoas que estão fora. Tem um irmão que vive em Roterdão, outro em Nice, um em Lisboa, duas irmãs em Boston. A mãe partiu para Boston há pouco mais de um mês, há uma avó e duas tias nos Estados Unidos. “Portanto, sou o único da família que está cá. A parte debaixo de casa está vazia, era onde a minha mãe morava. Completamente vazia. Quando vou lá, é uma grande tristeza.”

Francisco já viveu em Lisboa, onde se formou como sociólogo, durante vários anos. Como ele, muitos regressam com formação e “novas metas a ser alcançadas”. “Há muito disto. É um efeito extraordinário, as pessoas que acreditam que é possível.” Não sabemos se é o sociólogo, o filho e irmão de emigrantes ou o director-geral das comunidades a falar (se calhar, é tudo junto), mas é com voz segura que Francisco Carvalho diz: “A diáspora, ao longo destes 40 anos, deu um contributo extraordinário para o percurso que fizemos: através de remessas, de intercâmbio de ideias, da formatação de uma mentalidade crítica e de equilíbrio para a situação difícil de desemprego em Cabo Verde.” Porém, defende, “há um balanço e uma justiça histórica” que ainda não foram feitas sobre o papel determinante que teve: já se criou o Ministério das Comunidades, “a resposta política mais forte que se pode dar a um problema social”, “mas ainda há todo um oceano a ser aprofundado”.

Motivo para muitos partirem foi a ausência de universidades no país em Cabo Verde. Foi apenas em 2006 que nasceu a primeira universidade pública, a Universidade de Cabo Verde, depois do Instituto Piaget, privado, em 2001 — hoje há quase uma dezena de institutos de ensino superior e universidades. O ministro António Correia e Silva explica que isto tem que ver com o facto de Cabo Verde ter tido “uma preocupação muito inclusiva do desenvolvimento”. Em 1975, decidiu assim apostar na universalização do ensino básico e nesses primeiros tempos “o Governo não quis saber das falhas das universidades, mandou o pessoal formar fora”. “Quando saí daqui em 1981 havia dois liceus no arquipélago, um na Praia e outro no Mindelo. Hoje, temos 50 liceus. Houve um investimento na base e só depois o Governo encarou a ideia de universidade porque sempre viu a educação como inclusão social. Quando criámos um sistema universitário, o acesso à universidade cresceu rapidamente. Somos o país da África Subsariana com maior taxa bruta de escolarização no ensino superior — e começámos há dias. Antes da universalização do ensino básico, não era possível desenvolver políticas públicas de saúde.”

Ele próprio em tempos emigrante, António Correia da Silva defende que a diáspora “não é um excedente da nação, ela é constitutiva à nação”. “Somos um Estado cujas políticas públicas não ficam detidas nas fronteiras do seu território porque a nação é maior que o Estado. O nosso espaço nacional é maior que o nosso território de soberania.” E conclui: “Vemos a diáspora como um reservatório de mil possibilidades que ainda não explorámos completamente.”

Cesária Évora fez com a palavra “sodade” uma música em crioulo que correu mundo. Cantou com melancolia a falta que Cabo Verde faz a quem sai do arquipélago. Como ela, há imensos músicos cabo-verdianos a cantar a diáspora. E há também muitos músicos, por exemplo, em Portugal, a reavivar a memória de personagens históricas importantes como Amílcar Cabral através do rap, lembra a filha Iva Cabral, sentada no terraço de sua casa em Terra Branca. “Cabral é muito mais estudado, admirado na diáspora do que em Cabo Verde. E em Portugal também. A diáspora pode ser muito útil culturalmente e cientificamente. Teve um grande papel e ainda pode ter um grande papel em Cabo Verde.”

Na sua concepção teórica, lembra, por outro lado, o sociólogo Redy Wilson, “Cabo Verde é uma diáspora e vive para a diáspora”. “É preciso sair para ser reconhecido em Cabo Verde.”

A 11.ª ilha, essa “nação global”, trouxe remessas económicas mas também sociais, como lhe chama o historiador, ex-ministro da Educação e ex-embaixador Corsino Tolentino.

Capitalizando os vários talentos musicais cabo-verdianos espalhados pelo mundo, Lúcia Cardoso criou a Orquestra Nacional de Cabo Verde. No terraço da sua casa no Plateau, com o som de música ao fundo algures a tocar numa praça, Lúcia Cardoso explica que a diáspora alimenta o país. Há muitas áreas profissionais em que não se consegue trabalhar em Cabo Verde e essa é a principal razão para as pessoas partirem. Estamos sempre a “beber e a trazer”, mas gostaria de ver “mais da diáspora”, ou seja, mais retorno da experiência adquirida.

“Cabo Verde é a diáspora. A cultura e a música têm um contributo enorme para essa identificação, porque a música conta essa história. Temos músicas muito nacionalistas.”

Lúcia decidiu trocar a sua carreira em canto lírico por as mil e uma coisas que faz agora no arquipélago. Abdicou de um sonho, agarrou outros. Lembra que um psicólogo no Brasil, onde viveu, comentou um dia que ela tinha “um patriotismo esquisito”. “Porque eu dizia que tinha muitas saudades de Cabo Verde mas não era da minha família, era mesmo das montanhas, do mar. Nós, cabo-verdianos, somos muito ligados à nossa terra. Porque há essa utopia colectiva: um país em construção em que o nosso contributo, por menor que seja, é enorme e tem um impacto enorme. Cantamos essa dor de querer ajudar Cabo Verde, de Cabo Verde não ter condições de nos aguentar a todos, de não termos recursos. Então a dor cabo-verdiana é ter de ir, ter de sair. E sempre se espera voltar, mesmo que seja depois da reforma.”

No estúdio de rádio onde faz um programa sobre África, o activista Jorge Andrade nota como em Cabo Verde nunca ninguém se lembrou de fazer um documentário sobre as despedidas no aeroporto. Em crioulo, lembra que há 20 anos a separação era como uma morte, e, embora hoje seja mais fácil a comunicação, há uma separação. Preocupa-o este vazio que a emigração deixa nas famílias. E olha para a diáspora como “o símbolo da ineficácia” de Cabo Verde em “superar a miséria”, da inabilidade de resolver as questões da independência económica.

“Se tenho alguém da família fora?”, repete, estupefacto, a nossa pergunta, e depois ri. “Que pergunta a um cabo-verdiano! 99% dos familiares [de um cabo-verdiano] estão na diáspora!”

 
Esta reportagem foi realizada em parceria com

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