Como é que se vê o rock'n'roll?
Rolling Stones, ou seja, a Taschen a mostrar, num luxuoso livro de fotografia, toda a vida da banda de Jagger. Vimo-lo e juntámos-lhe o reeditado Sticky Fingers, álbum que definiu um arquétipo rock'n'roll. Rita Redshoes, João Paulo Feliciano e Pedro Cláudio dizem-nos o que vêem
The Rolling Stones, sem mais, é o título do livro de fotografia, agora publicado em Portugal (99€, podem ser encomendadas as Collector's Editions, ao preço de 4 mil, 8 mil e 15 mil euros, que a Taschen dedica ao grupo. Entre centenas de imagens, captadas por nomes como David Bailey, Ethan Russel, Gered Mankowitz, Annie Leibovitz, Anton Corbjin, Jim Marshall, Helmut Newton ou Linda McCartney, vemos o antes e o agora, unidos pela sensação de permanência que atravessa toda a história e que o lascivo logótipo, tão típico da era pop, representa tão bem.
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The Rolling Stones, sem mais, é o título do livro de fotografia, agora publicado em Portugal (99€, podem ser encomendadas as Collector's Editions, ao preço de 4 mil, 8 mil e 15 mil euros, que a Taschen dedica ao grupo. Entre centenas de imagens, captadas por nomes como David Bailey, Ethan Russel, Gered Mankowitz, Annie Leibovitz, Anton Corbjin, Jim Marshall, Helmut Newton ou Linda McCartney, vemos o antes e o agora, unidos pela sensação de permanência que atravessa toda a história e que o lascivo logótipo, tão típico da era pop, representa tão bem.
Inspirados na representação da deusa Kali do hinduísmo, divindade do Tempo, da Mudança, do Poder e da Destruição (muito de acordo com o que os Rolling Stones representam), a língua e os lábios não estiveram presentes desde o início. O logótipo foi apresentado em Sticky Fingers, álbum de 1971 com a famosa capa do zíper idealizada por Andy Warhol, que viria a definir, em som e imagem, um arquétipo rock. Quando pensamos nos Rolling Stones como representação de excesso e rebeldia, como encarnação viva do mantra “sex, drugs & rock’n’roll”, somos conduzidos à banda tal como cristalizada em Sticky Fingers, o álbum de Brown sugar, de Bitch, de Sister morphine, do blues de I got to move e do country-rock de Dead flowers. Sticky Fingers foi reeditado em Junho, numa diversidade de formatos, do CD simples remasterizado a várias edições deluxe. Reunimos os dois, livro e álbum, e fomos à procura do que eles nos dizem sobre os Rolling Stones. “Adaptaram-se sempre aos tempos, tanta na música como na imagem”, dirá o fotógrafo Pedro Cláudio. “Mas há sempre neles um filtro stonesiano. Adaptam a sua identidade aos tempos e nunca perdem a cara”.
Ali estão numa esquina de Chelsea, em Londres, com o Tamisa a dois passos. Cinco tipos que parecem ter acabado de acordar. Parecem. Na verdade, fumam um último cigarro antes de se enfiarem no clube para um concerto. Mick Jagger acende um a Charlie Watts, Brian Jones encara a câmara com as suas grandes, misteriosas, olheiras, emolduradas pelo cabelo louro. De Keith Richards, diríamos que ainda não acordou. Bill Wyman encara a objectiva com o olhar impenetrável de sempre. Estamos em 1963. Phillip Townsend fotografou-os a preto-e-branco, como a preto-e-branco parecia ser a Inglaterra que, pouco anos antes, vivia ainda o racionamento do pós-guerra. Ali estão: bando de beats que já não existiam ou de punks que ainda não tinham chegado, tipos desgrenhados e com ar ameaçador para os bons costumes, mas incrivelmente apelativos para quem não sabia exactamente o que isso era. Não tinham editado um álbum e Ron Wood esperaria ainda uma década para entrar na banda, mas eram já os Rolling Stones da mitologia pop.
Portal para a alma de uma banda
Três anos depois, quando já tinham ateado as chamas em Inglaterra e quando já as tinham transportado, sem nenhum cuidado, para os Estados Unidos (o essencial era que se propagassem), o San Diego Evening Tribune escrevia, em resposta à passagem da banda pela cidade: “O quinteto britânico sabe o que está a fazer. Mas também o sabe o Pai Tempo. Um belo dia, todos sentados nas suas almofadas aquecidas a energia solar, contarão aos netos sobre aqueles dias ‘isto é o que está a dar, baby!”. O autor do texto anteviu correctamente o futuro. Mas não exactamente da forma que esperava. É perfeitamente plausível que os Rolling Stones contem histórias aos netos sobre esses dias há muito passados. Mas o quinteto, hoje quarteto, britânico, ainda existe. E os avós são ainda, de forma estranhamente imaculada, exactamente os mesmos, no imaginário que projectam e no olhar que lançam à câmara. “[A sua presença perante a objectiva] é mais ou menos imutável . [Hoje] só de vez em quando é que existem enquanto banda, mas quando existem como banda, está lá o mesmo que no princípio”, diz o artista visual e músico João Paulo Feliciano, que encontramos hoje nos Real Combo Lisbonense, e em quem descobrimos quase sempre a música como mote e inspiração para o trabalho artístico. A ideia de banda enquanto encontro de individualidades referida por João Paulo Feliciano é, neste sentido, determinante.
Pedro Cláudio não estranha que os fotógrafos tenham corrido a procurá-los, de companheiros de geração como David Bailey, a artistas à altura já sexagenários como Cecil Beaton. “A androginia do Mick Jagger tornou-os muito atraentes para quem queria imagens novas. Mas não só. O Keith Richards, com o seu lado mais rude, mais rebelde, destaca-se por oposição e o Charlie Watts, menos expansivo, também é uma personalidade muito forte. O próprio Brian Jones tinha um rosto muito especial, uma aparência única. O carácter revela-se sempre visualmente. E quando a personalidade é muito forte, as fotografias mostram-na fisicamente. Eles têm isso de uma forma muito clara”.
The Rolling Stones, o livro que a Taschen publicou originalmente em Dezembro de 2014, é uma luxuosa viagem pela vida dos Stones ao longo de cinco décadas. É, mais que isso, um portal para a alma deste conjunto de pessoas a que se convencionou chamar uma banda rock. Ao longo de dois anos, uma equipa liderada pelo editor Reuel Golden viu mais de um milhão de fotogramas para escolher as cinco centenas de fotografias que compõem o livro. A acompanhá-las, três ensaios e curtos textos de apresentação das imagens que, tudo reunido, contextualizam aquilo que as fotografias, por si só, revelam. “A primeira reacção ao olhar para as fotos é constatar quanto a iconografia destas personagens representa o momento histórico que foi a segunda metade do século XX”, afirma João Paulo Feliciano. “A dos Stones tem a particularidade de andar de mãos dadas com outro valor iconográfico, o da banda rock. Sobreviver num patamar global com esta dimensão icónica, que simboliza toda uma cultura de meio século, é único”, defende. O fotógrafo Pedro Cláudio, primeiro trabalho publicado na imprensa em 1989 e com uma ligação profissional ao meio musical que remonta a 1995 (trabalha ou trabalhou com Belle Chase Hotel, Xutos & Pontapés, Orelha Negra, Júlio Resende ou Sam The Kid), destaca o sentido de familiaridade que sentiu ao deitar os olhos ao portfólio de fotos enviadas pelo Ípsilon. “Volto muito aos discos dos Stones e tudo isto me é familiar. É o revisitar constante de um universo. Nem chega a ser nostálgico, porque se manteve sempre presente”. Rita Redshoes, cantora e compositora com um interesse particular pela fotografia, fascinada pelo brilho glamoroso de personagens maiores que a vida (não por acaso, na sua estreia a solo, Golden Era, surgia sob a influência de, por exemplo, Rita Hayworth), descobriu nas imagens “uma espécie de infantilidade, independentemente dos anos, o que é curioso porque, ao pensarmos nos Rolling Stones, inocência não é certamente a primeira palavra de que nos lembramos”. Não é, de todo.
O novo mundo de “Sticky Fingers”
Sticky Fingers foi o corolário de um momento de regresso. O regresso à essência americana na música dos Rolling Stones, depois dos anos de experiências com a pop e com o psicadelismo, depois do Beggar’s Banquet e do Let it Bleed que iniciaram essa viragem. É, também, o disco em que, depois de unirem a sua voz ao protesto e aos anseios da contracultura, se voltaram para si mesmo e para as personagens e ambientes que os rodeavam. David Dalton, um dos fundadores da Rolling Stone, escreve no seu ensaio para o livro da Taschen: “O som sujo, cortante, de Keith bombeia adrenalina nestas canções, enquanto as imagens de Mick, ‘plastic boots… cocaine eyes… speed track jive…’, a destilavam na nossa cabeça. Quando chegamos a Sticky Fingers, a transferência é subliminar; todo o álbum é tão inebriante que quase conseguimos apanhar uma pedrada só pela proximidade”.
Sticky Fingers foi, precisemos, como que o terceiro mergulho nos Estados Unidos - primeiro, os discos blues em que se formaram, depois, a primeira digressão americana, com paragem na Chess Records e direito a conhecer dois ídolos, Chuck Berry e Muddy Waters, por fim, os estúdios de Muscle Shoals onde gravaram Brown sugar ou Sister morphine. Produzido em Inglaterra, o primeiro álbum sem a participação de Brian Jones (Mick Taylor surge no seu lugar) apresenta os Stones, definitivamente, como inventores do seu mundo – no álbum seguinte, o excessivo, mítico e maldito Exile On Main St, iriam levar-nos a passear por ela por nossa conta e risco. “As melhores bandas são aquelas que criam a sua própria história, criam a situação específica em que surgem e abraçam o seu agora. Os Stones fizeram isso”, considera Pedro Cláudio.
Uma das edições deluxe de Sticky Fingers, onde o álbum original é acompanhado de um CD de raridades (a mais curiosa será uma versão de Brown sugar com Eric Clapton), inclui igualmente um DVD com duas canções ao vivo. Vê-se e ouve-se Midnight rambler e Bitch. Vê-se e ouve-se uma banda que, em 1971, detinha já o estatuto de estrela planetária mas que, no palco do histórico mas minúsculo clube londrino Marquee, surge-nos incrivelmente próxima. Para João Paulo Feliciano, essa intimidade é determinante para o impacto provocado pelas imagens compiladas em Rolling Stones. Refere a fotografia, reproduzida nestas páginas, de Mick Jagger no chão do palco a encarar o fotógrafo e comenta, depois de assegurar tal “imediatez” e “simplicidade” são hoje impossíveis: “O contexto que permite esta proximidade, esta intimidade, contribuiu muito para a construção dessa relação icónica e emocional, que deixava as imagens gravadas na memória das pessoas e que atraía os fotógrafos”.
Enquanto olhamos para trás (e ei-los no início dos anos 1960, quase cândidos, debaixo de uma mesa a observar a modelo francesa sobre ela), e depois de seguirmos para mais à frente (e eis Keith Richards, captado por Annie Leibovitz em 1975, nos anos de vertigem, deitado num cenário de sessão fotográfica com calças abertas e ar desgrenhado), vemo-los em fotos de pose e em fotos de quotidiano. Vemo-los à beira de piscinas, em aeroportos e conferências de imprensa. Vemo-los no palco e no estúdio, em casa ou em festas. Muitos dessas fotos, num tempo em que o acesso à imagem era muito mais raro do que actualmente, eram o único ponto de contacto com a banda, o lhe que conferia imenso poder - num dos ensaios de Rolling Stones, é dito que as capas dos álbuns e dos singles se tornaram, para o público, tão importantes quanto a música. “A multiplicação de imagens não tem trazido maior diversidade, mas menor riqueza, menor potencial simbólico e menos espaço para a imaginação. O nosso olhar como que se banaliza”, defende João Paulo Feliciano.
The Rolling Stones tem precisamente o efeito contrário. Claro que a dimensão imponente do objecto e o estatuto dos retratados concorre para isso. Mas folheando as suas páginas enquanto ouvimos Sticky Fingers (ou Aftermath, ou Between the Buttons), percebemos que a natureza extraordinária das expressões, poses e cenários não é simplesmente fruto da dimensão histórica, mítica, da banda que o habita. “Chegaram ao ‘não queremos saber’, e isso é muito bom para as fotografias”, diz Pedro Cláudio. “Apresentam-se despojados, sem necessidade de se mostrar. Foram vistos de todos os ângulos, do mais decadente ao mais brilhante, e não têm medo das câmaras”.
Rita Redshoes olha e olha e continua a ver inocência nas fotos. “Não consigo ver o Mick Jagger sem achar que é um miúdo. Acho que é isso que o faz subir a palco. Sentirem que são miúdos é o motor que os levou a fazer música. Isso mantém-se. E é muito bonito”, diz. “Se ao menos o mundo pudesse manter-se jovem “, suspirava Keith Richards em 1966. Missão cumprida, diria Rita quase cinquenta anos depois. E dizemos nós quando, antes de fechar o livro, observamos uma última vez os sulcos que as rugas cavaram no rosto daqueles homens.