É no palco que se vê quem eu sou diz Miguel
Quem é Miguel? O lânguido cantor americano de baladas R&B ou o frenético praticante de funk-rock? Encontro em Londres, onde falámos com ele e o vimos em palco, na altura em que lança o novo álbum Wildheart.
“Pede aquela galinha que comi ontem”, lança na direcção da assistente, decidindo-se por qualquer coisa de mais substancial e que já conhecia. Quando está indeciso acaba por fazer escolhas seguras, provocamos? “Quando se trata de comida, talvez”, ri-se, “mas ao longo da vida fui arriscando, apesar de sempre ter sabido o que queria que é exactamente o que estou a fazer.”
Miguel, ou melhor Miguel Jontel Pimentel, 29 anos, filho de mãe afro-americana e de pai mexicano, residente em Los Angeles, é assim. Em todas as respostas há um misto de descontracção e de gravidade. Na noite anterior, durante o concerto no espaço XOYO, em Londres, onde apresentou o novo álbum Wildheart, foi igual.
No meio de lascivas baladas R&B ou de incisivas canções funk-rock nunca perdeu de vista um discurso espiritual onde o essencial, insistia, é “acreditarmos em nós próprios”. E voltamos a desafiá-lo. Mas isso não é o que dizem todas as celebridades depois de atingirem o topo? “Não creio”, responde seriamente, “ou por outra, muitos podem dizer, mas acreditar é outra coisa.”
Ao terceiro álbum, Miguel diz acreditar mais do que nunca em si próprio. Há dez anos toda a gente lhe reconhecia talento, mas parecia difícil de encaixar. “Queriam fazer de mim mais ‘negro’ do que era e não era também ‘latino’ ou ‘asiático’ e musicalmente também tinham dificuldade em situar-me até que deixei de me preocupar com isso. Quer dizer, sou de L.A, sou mexicano e negro, sou americano, e quero é transcender todas essas classificações.”
O assunto do sentimento de pertença, percebe-se, mexe com ele. Existe até uma canção no novo álbum onde foca a questão, interrogando What’s normal anyway? Mas não é apenas a fisicalidade ou a ascendência cultural. A verdade é que também os seus dois anteriores álbuns pareciam sofrer da mesma indefinição.
A estreia com All I Want Is You em 2010 parecia posicioná-lo como fazedor de sucessos, mas havia pelo meio temas algo alienígenas. Dois anos depois surgiu Kaleidoscope Dream e com ele o sucesso e prémios, mesmo se nessa altura tivesse sido alinhado ao lado dos praticantes do R&B mais alternativo. Agora surge com um álbum tão ecléctico como o segundo, mas de fibra muito diferente.
Ele diz que é um disco que respira a Califórnia, no sentido de ser uma mistura de soul contemporânea, de rock psicadélico, de R&B eléctrico, de pop melódico e de funk intergaláctico e de, no final, tudo fazer sentido. Duas das faixas mais emblemáticas (Leaves e Face the sun) respiram precisamente dessa sensibilidade.
“É muitas vezes nas conversas sobre o álbum que acabo por distanciar-me e saborear o que fiz, vislumbrar as possibilidades do que foi feito e de que forma é que as canções acabam por estar conectadas entre si. Foi aí que percebi que este disco respira muito essa Califórnia que conheço bem. Mas um disco é como um bebé. Vemo-lo nascer, crescer, desenvolver-se e existe uma altura em que o vemos partir, sendo alvo das mais diversas interpretações e muitas vezes não coincidem com a nossa e isso não faz mal.”
É um álbum onde a guitarra tem uma presença central e isso sente-se ainda de maneira mais decisiva ao vivo, quando ele se apresenta com a sua banda de cinco músicos, todos de branco. O som é sempre encorpado, seja para estruturar canções lentas e sensoriais, ou para números mais eléctricos, com todos os músicos em desvario. Por vezes, é inevitável, pensa-se no melhor Prince.
“Nos últimos anos a guitarra nunca teve grande destaque na música R&B, mas olhando para trás é evidente que existiram excepções, e uma delas é sem dúvida Prince que acaba por ser uma referência. O lançamento do Always For You, no caso da música mais recente, marcou uma viragem nesse sentido. E desde então tenho insistido nessa direcção. Não de forma consciente, mas de forma natural.”
Ao longo da conversa vai repetindo que cada álbum corresponde a um período bem determinado da sua vida. Funcionam como uma espécie de galeria onde expõe retratos íntimos. Às tantas questionamo-lo se nunca teve a tentação de compor uma canção politizada.
“De uma forma consciente, não, embora me pareça que essa dimensão acaba por surgir em algumas ocasiões. Mas o que move é compor um retrato da minha vida em determinado momento. E nesse sentido reflecte a forma como vejo o mundo. Cada canção é a representação da minha personalidade, mas em termos dinâmicos, na relação com os outros e o que me rodeia.”
Há canções muito diferentes em Wildheart. Em The valley ou Flesh, assume o papel de sedutor, capaz de compor baladas R&B sintéticas, mas em Waves por exemplo compõe um momento lúdico de pop-soul. “Quero fazer álbuns que me façam lembrar como eu era naquele tempo e naqueles lugares” resume ele, para lançar de seguida, “mas é quando as pessoas me vêem ao vivo que percebem realmente quem sou. Todas essas facetas estão lá. A parte sensual. A parte mais enérgica. Tudo isso vem ao de cima ao vivo.”
E continua: “sabe, gosto imenso de vídeos, mas acho-os pouco dinâmicos. Não há carne e suor. Ao vivo tem-se uma perspectiva mais global. O Miles Davis dizia que os vídeos eram apenas anúncios para as pessoas o irem ver ao vivo. Gosto de pensar da mesma forma. O incentivo é esse: ei! Venham ver-me ao vivo!”
Ele sabe que tem carisma ao vivo. No palco canta, dança, por vezes toca guitarra, flirta, lança charme, fala de forma mística. E quando remove uma peça de roupa ouve os gritos femininos. “Há momentos de grande clareza em palco”, começa ele por dizer, mais parecendo Marlon Brando, “como se tudo o que estamos a fazer fosse transparente. Esses são talvez os momentos mais conscientes, mas existe uma mistura das duas coisas, de inconsciente também.”
E continua, quase como se estivesse a falar sozinho, já com a galinha à sua frente: “os meus concertos preferidos são os mais inconscientes, quando me deixo ir realmente. Mas é sempre diferente. Há momentos estranhos que funcionam quase como se como se estivesse a observar-me a mim e ao público em simultâneo. ‘O que queres dizer?’ ‘Qual o teu propósito?’ ‘O que queres que as pessoas levem daqui?’ É uma coisa de mim para mim, mas ao mesmo tempo é também uma forma de apreciar o que se está a passar. Às vezes, no final, dizem-me que fiz isto e aquilo e eu interrogo-me: ‘o que? Fiz o que? Não me lembro nada disso’.
Recentemente surgiram notícias que transmitiam a ideia de que poderia ter sido convidado para um filme como actor. Limita-se a sorrir quando lhe falamos do assunto, mas percebe-se que o assunto o fascina. “Para um actor talvez se trate de reagir de forma mais natural, mas para mim, num palco, é qualquer coisa maior do que eu. É maior do que a vida. É espectáculo, mas é também real. Os meus criadores preferidos possuem essa dimensão ‘maior do que a vida’ mas ao mesmo tempo sentimos que são eles mesmos.”
Na música, já se percebeu, Miles Davis e Prince estão entre as suas referências. Pedimos-lhe para sair do universo da música e a sua resposta sai pronta: “as minhas grandes inspirações foram Bruce Lee e Akira Kurosawa. Lee é o maior. É funky. Tem pinta. Tem um ‘coração selvagem’ também. Fazia coisas que mais ninguém ousara antes. E o Kurosawa é o meu realizador de cinema preferido. Adoro a sua forma de compor. Os seus filmes são como pinturas que vão sendo projectadas no grande ecrã. É inacreditável!”
Por falar em imagem, uma das dimensões que tem sido mais comentada nas últimas semanas acerca do novo lançamento, prende-se com as fotos de promoção e a capa. A sua nova imagem é bem mais agressiva e exteriorizada do que no passado, o que poderá levar a pensar que existe contradição com o discurso de um certo recolhimento que tenta difundir. “As duas dimensões, interior e exterior, estão ligadas”, começa por dizer, “tem a ver com confiança, com aquilo em que se acredita e nos faz mover. Sinto que estou num momento bom. E isso é poderoso. A imagem pretende transmitir isso. A emoção que é sentir essa confiança.”
No final da conversa perguntamos-lhe se não se arrependera de pedir o mesmo prato da véspera e de imediato responde pela negativa, argumentando que gosta de pequenos-almoços vigorosos. Poder-se-ia pensar que esse seria o segredo para estar com uma aparência tão revitalizada depois de uma longa noitada, mas não.
“Durmo sempre pouco”, começa por explicar, “e a primeira coisa que faço quando acordo é meter-me no chuveiro, de luzes apagadas, deixando jorrar a água, e fico ali a meditar, o que é purificador. Depois, sim, começa o dia.”
Ok. Está tudo explicado.
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“Pede aquela galinha que comi ontem”, lança na direcção da assistente, decidindo-se por qualquer coisa de mais substancial e que já conhecia. Quando está indeciso acaba por fazer escolhas seguras, provocamos? “Quando se trata de comida, talvez”, ri-se, “mas ao longo da vida fui arriscando, apesar de sempre ter sabido o que queria que é exactamente o que estou a fazer.”
Miguel, ou melhor Miguel Jontel Pimentel, 29 anos, filho de mãe afro-americana e de pai mexicano, residente em Los Angeles, é assim. Em todas as respostas há um misto de descontracção e de gravidade. Na noite anterior, durante o concerto no espaço XOYO, em Londres, onde apresentou o novo álbum Wildheart, foi igual.
No meio de lascivas baladas R&B ou de incisivas canções funk-rock nunca perdeu de vista um discurso espiritual onde o essencial, insistia, é “acreditarmos em nós próprios”. E voltamos a desafiá-lo. Mas isso não é o que dizem todas as celebridades depois de atingirem o topo? “Não creio”, responde seriamente, “ou por outra, muitos podem dizer, mas acreditar é outra coisa.”
Ao terceiro álbum, Miguel diz acreditar mais do que nunca em si próprio. Há dez anos toda a gente lhe reconhecia talento, mas parecia difícil de encaixar. “Queriam fazer de mim mais ‘negro’ do que era e não era também ‘latino’ ou ‘asiático’ e musicalmente também tinham dificuldade em situar-me até que deixei de me preocupar com isso. Quer dizer, sou de L.A, sou mexicano e negro, sou americano, e quero é transcender todas essas classificações.”
O assunto do sentimento de pertença, percebe-se, mexe com ele. Existe até uma canção no novo álbum onde foca a questão, interrogando What’s normal anyway? Mas não é apenas a fisicalidade ou a ascendência cultural. A verdade é que também os seus dois anteriores álbuns pareciam sofrer da mesma indefinição.
A estreia com All I Want Is You em 2010 parecia posicioná-lo como fazedor de sucessos, mas havia pelo meio temas algo alienígenas. Dois anos depois surgiu Kaleidoscope Dream e com ele o sucesso e prémios, mesmo se nessa altura tivesse sido alinhado ao lado dos praticantes do R&B mais alternativo. Agora surge com um álbum tão ecléctico como o segundo, mas de fibra muito diferente.
Ele diz que é um disco que respira a Califórnia, no sentido de ser uma mistura de soul contemporânea, de rock psicadélico, de R&B eléctrico, de pop melódico e de funk intergaláctico e de, no final, tudo fazer sentido. Duas das faixas mais emblemáticas (Leaves e Face the sun) respiram precisamente dessa sensibilidade.
“É muitas vezes nas conversas sobre o álbum que acabo por distanciar-me e saborear o que fiz, vislumbrar as possibilidades do que foi feito e de que forma é que as canções acabam por estar conectadas entre si. Foi aí que percebi que este disco respira muito essa Califórnia que conheço bem. Mas um disco é como um bebé. Vemo-lo nascer, crescer, desenvolver-se e existe uma altura em que o vemos partir, sendo alvo das mais diversas interpretações e muitas vezes não coincidem com a nossa e isso não faz mal.”
É um álbum onde a guitarra tem uma presença central e isso sente-se ainda de maneira mais decisiva ao vivo, quando ele se apresenta com a sua banda de cinco músicos, todos de branco. O som é sempre encorpado, seja para estruturar canções lentas e sensoriais, ou para números mais eléctricos, com todos os músicos em desvario. Por vezes, é inevitável, pensa-se no melhor Prince.
“Nos últimos anos a guitarra nunca teve grande destaque na música R&B, mas olhando para trás é evidente que existiram excepções, e uma delas é sem dúvida Prince que acaba por ser uma referência. O lançamento do Always For You, no caso da música mais recente, marcou uma viragem nesse sentido. E desde então tenho insistido nessa direcção. Não de forma consciente, mas de forma natural.”
Ao longo da conversa vai repetindo que cada álbum corresponde a um período bem determinado da sua vida. Funcionam como uma espécie de galeria onde expõe retratos íntimos. Às tantas questionamo-lo se nunca teve a tentação de compor uma canção politizada.
“De uma forma consciente, não, embora me pareça que essa dimensão acaba por surgir em algumas ocasiões. Mas o que move é compor um retrato da minha vida em determinado momento. E nesse sentido reflecte a forma como vejo o mundo. Cada canção é a representação da minha personalidade, mas em termos dinâmicos, na relação com os outros e o que me rodeia.”
Há canções muito diferentes em Wildheart. Em The valley ou Flesh, assume o papel de sedutor, capaz de compor baladas R&B sintéticas, mas em Waves por exemplo compõe um momento lúdico de pop-soul. “Quero fazer álbuns que me façam lembrar como eu era naquele tempo e naqueles lugares” resume ele, para lançar de seguida, “mas é quando as pessoas me vêem ao vivo que percebem realmente quem sou. Todas essas facetas estão lá. A parte sensual. A parte mais enérgica. Tudo isso vem ao de cima ao vivo.”
E continua: “sabe, gosto imenso de vídeos, mas acho-os pouco dinâmicos. Não há carne e suor. Ao vivo tem-se uma perspectiva mais global. O Miles Davis dizia que os vídeos eram apenas anúncios para as pessoas o irem ver ao vivo. Gosto de pensar da mesma forma. O incentivo é esse: ei! Venham ver-me ao vivo!”
Ele sabe que tem carisma ao vivo. No palco canta, dança, por vezes toca guitarra, flirta, lança charme, fala de forma mística. E quando remove uma peça de roupa ouve os gritos femininos. “Há momentos de grande clareza em palco”, começa ele por dizer, mais parecendo Marlon Brando, “como se tudo o que estamos a fazer fosse transparente. Esses são talvez os momentos mais conscientes, mas existe uma mistura das duas coisas, de inconsciente também.”
E continua, quase como se estivesse a falar sozinho, já com a galinha à sua frente: “os meus concertos preferidos são os mais inconscientes, quando me deixo ir realmente. Mas é sempre diferente. Há momentos estranhos que funcionam quase como se como se estivesse a observar-me a mim e ao público em simultâneo. ‘O que queres dizer?’ ‘Qual o teu propósito?’ ‘O que queres que as pessoas levem daqui?’ É uma coisa de mim para mim, mas ao mesmo tempo é também uma forma de apreciar o que se está a passar. Às vezes, no final, dizem-me que fiz isto e aquilo e eu interrogo-me: ‘o que? Fiz o que? Não me lembro nada disso’.
Recentemente surgiram notícias que transmitiam a ideia de que poderia ter sido convidado para um filme como actor. Limita-se a sorrir quando lhe falamos do assunto, mas percebe-se que o assunto o fascina. “Para um actor talvez se trate de reagir de forma mais natural, mas para mim, num palco, é qualquer coisa maior do que eu. É maior do que a vida. É espectáculo, mas é também real. Os meus criadores preferidos possuem essa dimensão ‘maior do que a vida’ mas ao mesmo tempo sentimos que são eles mesmos.”
Na música, já se percebeu, Miles Davis e Prince estão entre as suas referências. Pedimos-lhe para sair do universo da música e a sua resposta sai pronta: “as minhas grandes inspirações foram Bruce Lee e Akira Kurosawa. Lee é o maior. É funky. Tem pinta. Tem um ‘coração selvagem’ também. Fazia coisas que mais ninguém ousara antes. E o Kurosawa é o meu realizador de cinema preferido. Adoro a sua forma de compor. Os seus filmes são como pinturas que vão sendo projectadas no grande ecrã. É inacreditável!”
Por falar em imagem, uma das dimensões que tem sido mais comentada nas últimas semanas acerca do novo lançamento, prende-se com as fotos de promoção e a capa. A sua nova imagem é bem mais agressiva e exteriorizada do que no passado, o que poderá levar a pensar que existe contradição com o discurso de um certo recolhimento que tenta difundir. “As duas dimensões, interior e exterior, estão ligadas”, começa por dizer, “tem a ver com confiança, com aquilo em que se acredita e nos faz mover. Sinto que estou num momento bom. E isso é poderoso. A imagem pretende transmitir isso. A emoção que é sentir essa confiança.”
No final da conversa perguntamos-lhe se não se arrependera de pedir o mesmo prato da véspera e de imediato responde pela negativa, argumentando que gosta de pequenos-almoços vigorosos. Poder-se-ia pensar que esse seria o segredo para estar com uma aparência tão revitalizada depois de uma longa noitada, mas não.
“Durmo sempre pouco”, começa por explicar, “e a primeira coisa que faço quando acordo é meter-me no chuveiro, de luzes apagadas, deixando jorrar a água, e fico ali a meditar, o que é purificador. Depois, sim, começa o dia.”
Ok. Está tudo explicado.