Bairro do Cerco, uma infinita canção
Nos últimos quatro meses, os dias na casa 40 A do bloco 34 do Bairro do Cerco do Porto foram diferentes. Foram dias de hip-hop, acompanhados de perto por Capicua. Este domingo, o projecto Oupa! leva as suas canções do Cerco ao centro com um concerto no Rivoli.
Pedro Gomes (nome de código: Drunk Nigga) tem flow ágil e escorreito. Sorri enquanto rappa, manda um piscar de olhos à filha, desliza ao som da batida como se fizesse isto há anos. E faz. Tem 31 e anda de mãos dadas com o rap desde os 16. Primeiro na dança e a escrever umas rimas, depois a produzir e a gravar com os Alcool Club, em Sines, figuras paternais cujo estúdio ficava por cima de uma taberna. Pedro diz ter sido o primeiro a levar o hip-hop para o Bairro do Cerco do Porto, onde nasceu e cresceu, e “o primeiro negro na Escola do Cerco”. “O meu pai é guineense e a minha mãe é portuguesa, nasceu no meu quarto.”
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Pedro Gomes (nome de código: Drunk Nigga) tem flow ágil e escorreito. Sorri enquanto rappa, manda um piscar de olhos à filha, desliza ao som da batida como se fizesse isto há anos. E faz. Tem 31 e anda de mãos dadas com o rap desde os 16. Primeiro na dança e a escrever umas rimas, depois a produzir e a gravar com os Alcool Club, em Sines, figuras paternais cujo estúdio ficava por cima de uma taberna. Pedro diz ter sido o primeiro a levar o hip-hop para o Bairro do Cerco do Porto, onde nasceu e cresceu, e “o primeiro negro na Escola do Cerco”. “O meu pai é guineense e a minha mãe é portuguesa, nasceu no meu quarto.”
Foi nesse quarto, entre músicas de Notorious B.I.G., Dealema, Halloween ou dos próprios Alcool Club, que começou a germinar o grupo C44 (Crime & Poesia), projecto de Pedro onde entravam Joca (Jorge Saraiva) e Ruubi (Ruben Almeida), dois colegas do bairro. Kest (Elton Filipe Pinto), de Rio Tinto, ligado ao hip-hop e ao graffiti, era também um cúmplice regular.
Hoje, e desde Março, estão todos reunidos outra vez no Bairro do Cerco. Drunk Nigga, Joca, Ruubi e Kest constituem o núcleo duro do projecto Oupa! juntamente com Raune Fenix (Hugo Sousa, outro dos pioneiros do rap no Cerco), Ricardinho (Ricardo Lopes), Lendária Treze (Isabel Ramos) e Black Mama (Raquel Pompilio). Oito jovens que criaram colectivamente oito canções e que vão levá-las no domingo, a partir das 17h, do Cerco ao centro (como cantam numa delas), mais exactamente ao Teatro Municipal Rivoli, apresentando parte daquilo que andaram a fazer nos últimos quatro meses – uma residência artística intensiva no Cerco chamada Oupa!.
O concerto, de entrada livre, conta ainda com a exibição de um documentário sobre o grupo, o bairro e o projecto, realizado por André Tentugal e Vasco Mendes, uma crew de b-boys e a participação especial dos Los Hitlers, banda de três rapazes de etnia cigana residentes no Cerco (o nome, dizem eles, é irónico).
A residência incluiu oficinas de escrita, produção musical, marketing digital, promoção e vídeo orientadas por uma equipa polivalente de formadores, encabeçada pela rapper Ana Matos Fernandes, mais conhecida por Capicua. A acompanhá-la estiveram o músico, fotógrafo e realizador André Tentugal, líder dos We Trust; o realizador Vasco Mendes, autor de videoclipes de nomes como The Glockenwise e Batida; o DJ e produtor D-One (Diego Sousa), acólito de Capicua; o psicólogo, DJ e músico Tiago Espírito Santo; o psicólogo e realizador Pedro da Cruz Tavares; o animador cultural Pedro Nascimento, membro da Turbina, editora e promotora portuense; e a psicóloga Gisela Borges, coordenadora do projecto e guia espiritual que teve de andar a fazer sprints de segunda a domingo entre o Cerco, as consultas, as aulas de pilates e o computador na casa em Santa Maria da Feira para pôr o Oupa! a correr sem tropeções.
Esta iniciativa partiu do Pelouro da Cultura da Câmara Municipal do Porto e é um dos pontos altos da 2ª edição do programa Cultura em Expansão, através do qual a autarquia tem promovido diversas actividades culturais em bairros sociais e zonas periféricas da cidade.
Não é o que parece
"Esta é a visão do cerco onde estou presente agora/ Onde desperto e tento relatá-lo com quem está de fora/ Não é só um bairro, é respeito acima de tudo/ Sem preconceito eu aceito quem vem conhecer este mundo/ Às vezes nem tudo é como parece/ E relatos nem sempre são reais sobre aquilo que acontece/ Mas quem vem cá não esquece a pura realidade/ E vamos levar o Cerco ao centro desta cidade" (Do Cerco ao Centro)
Bairro do Cerco, bloco 34, porta 40 A. De um lado ouve-se o Gangnam Style, do outro ouve-se hip-hop. Sigamos o segundo. Entramos na sala de ensaios do Oupa! e Capicua está de marcador na mão, em modo professora, ao lado de um quadro que nos últimos quatro meses se transformou num mural de ideias. Somos recebidos pelo “olá” caloroso de Raquel, Black Mama, uma militar de 24 anos que quando começa a cantar nos deixa de boca pendurada com uma voz de diva soul em potência. Pouco depois faz-se um intervalo e saímos à rua. Trinta graus à sombra, a sombra para fumar cigarros.
Olhamos para o lado: cenário com potencial cinematográfico (já dissemos que aqui também estão a ser gravados videoclipes e um documentário?). Estamos em cima da Estrada da Circunvalação, costurada por alguma paisagem verde, e aquilo a que costumamos chamar de cidade parece estar muito distante, apesar de chegarmos lá de carro em 15 minutos. Mentalmente, está longe, muito longe, a Baixa do Porto cada vez mais gentrificada, a Baixa do Porto da histeria das hamburguerias gourmet e dos gins aromatizados.
Situado na freguesia mais pobre do Porto, Campanhã, construído em 1963 e ampliado em 1991, o Cerco é um dos maiores bairros sociais da cidade (tem 892 casas e 2.120 habitantes). É rotulado como violento, problemático, assustador. As primeiras imagens que aparecem no Google são de polícias e as primeiras palavras “tiroteio” e “tráfico de droga”. Mas as primeiras coisas que vemos quando chegamos lá são pessoas a levar o lixo, a vir das compras, alguns miúdos com sapatos rotos. Não chega a ser um gueto, mas parece uma pequena cidade desenhada de propósito para ficar à parte da metrópole, como se tivesse sido posicionada para ser vista como um território de exclusão e de desvios.
“Viver aqui… é como eu digo numa das músicas, somos logo rotulados. Vamos a uma entrevista de emprego e as pessoas ficam logo de pé atrás. O bairro tem coisas más, mas não é tão mau como se pensa”, diz Ricardinho, 24 anos, ligado ao teatro, à dança e à música desde os 10 anos, e que quando não está a trabalhar no Pingo Doce da Praça Velásquez, nas Antas, está sempre a pensar em mil e um projectos possíveis e impossíveis.
Sabe que o estigma do bairro não vai desaparecer com um concerto no Rivoli, mas acha que pode servir como uma chamada de atenção. “Este projecto, que reuniu os artistas do bairro, talvez ajude as pessoas de fora a perceber que aqui existe boa gente que faz coisas de valor. E que também há alegria. Não somos uns coitadinhos.”
Não falam em dinheiro, não têm um olhar inquisidor. Reclamam casas com melhores condições, espaços de convívio, oportunidades profissionais. Passemos a palavra a Raune, 20 anos. “Não tenho trabalho…quem me dera. O Cerco já teve melhores dias. Tiraram-nos muita coisa, como o parque para os miúdos. Parece que eles nos estão a castigar de alguma coisa que a gente não sabe o que é”. Quem são eles? “[Os sucessivos executivos da] Câmara do Porto”.
“O Cerco é talvez o bairro do Porto que tem mais estigma. Não existe aqui nenhum projecto de intervenção social e comunitária de grande amplitude, nem iniciativas para jovens acima dos 20 anos, e é um território com uma identidade completamente fragmentada”, explica Gisela Borges, coordenadora do Oupa!, resumindo os factores que levaram à escolha do bairro para instalar este programa.
A música, assinala, é um veículo privilegiado para trabalhar esse sentimento de pertença e a reconstrução da identidade. Estimular o orgulho sem polir a realidade. “Com a arte consegues diluir barreiras de comunicação, criar afectos e estabelecer rapidamente uma relação horizontal, sem hierarquias”, esclarece Gisela, que entre 2013 e 2014 desenvolveu com João Doce, assistente social e membro da banda Wraygunn, um projecto de intervenção social no bairro Quinta de Paramos, em Espinho, em que o hip-hop também assumiu um papel central.
O empoderamento do hip-hop
"É a liberdade o que sinto/ Sentimento definido/Rap é liberdade/ Entre as métricas e o beat/ Realizo, concretizo/ Neste beat eu defino/ Realidades duras de uma cultura que me oprime" (Liberdades Poéticas)
Kest entra em acção e o flow denso denuncia-o: é praticante de um rap escuro e ríspido, com a crítica social na ordem do dia (Halloween paira por aqui). “Não sou do Cerco [como Raquel e Lendária, também nesta residência], mas sou um survivor desde os meus 17 anos”, conta o também tatuador. Entrou no rap a tempo inteiro em 2006/2007, quando foram parar à sua zona (Rio Tinto) “uns fugitivos de Odivelas ligados ao hip-hop”. Tem um estúdio em casa, o Cubículo 99, por onde já tinham passado alguns colegas do Oupa!.
Tal como Kest, os restantes membros deste projecto estão desde há muito ligados ao hip-hop. “Quase todos eles têm histórias com algum melindre que os fez usar a música como escape”, refere Gisela. As letras e os instrumentais das canções que vão ser apresentadas no Rivoli são deles, afinadas com a ajuda de Capicua, na escrita, dicção e respiração, e de D-One, na produção, mistura e gravação. Reflectem as vivências de cada um deles e os vários estilos de hip-hop que fluem dentro do grupo: de silhuetas soul e R&B a rap interventivo, dos fumos ilícitos na pista de dança do trap (ouvir Invicta Mente) ao hip-hop na linha da escola do Porto (ouvir Eu Sou).
“Ao nível dos beats notei alguma dificuldade, mas também o material que eles têm é muito rudimentar. As letras são mesmo interessantes; produz-se aqui hip-hop muito bom”, nota André Tentugal. “Isto é o verdadeiro underground. Seguem outro caminho, não conhecem Run The Jewels e esses nomes que aparecem na Pitchfork.”
Os formadores tiveram, portanto, o trabalho facilitado. “O que fizemos foi dar mais ferramentas para eles fazerem mais e melhor aquilo que já faziam sem nós”, assinala Capicua. Para a rapper, também socióloga e doutorada em Geografia, os bairros são viveiros naturais para o florescimento do hip-hop, uma subcultura originalmente ligada ao do-it-yourself, à reportagem do quotidiano em linguagem não-canónica e democrática, oposta ao discurso dominante, e ao empoderamento individual e colectivo.
“Com uma placa de som, umas colunas baratas e um microfone podes fazer a tua música, dizeres o que tens a dizer sem ninguém te ter perguntado nada, cumprires a tua agenda pessoal, política, social e emocional”, diz Capicua. “Esse empoderamento tem a ver com a missão do hip-hop, bem como a de outras subculturas urbanas juvenis, e é contagiante. Não é por acaso que chegas a qualquer bairro do mundo e encontras pelo menos um puto que faz rap.” Patti Smith disse um dia que o punk “é liberdade para criar, liberdade para ter sucesso, liberdade para não ter sucesso, liberdade para seres quem és” e isso é totalmente aplicável ao hip-hop.
Próximos capítulos?
"Oupa segue em frente como nós seguimos/ Mostramos o que sentimos/ Pouco a pouco construímos/ Faz o teu beat, rap, vídeo/ 100% atitude/ 100% altitude" (Oupa!)
Não interromper o que se começou, mantendo o ritmo e o entusiasmo, é a principal dificuldade destes projectos comunitários com prazo de validade. No caso do Oupa!, Capicua defende que a lógica de continuidade será assegurada pelas ferramentas que a equipa vai deixar aos jovens: aquilo que foi ensinado nas oficinas e o estúdio que pretendem montar no bairro. “Queremos deixar material para eles puderem continuar mais a sério e ensinar os mais novos.”
Também imprimiram uma dimensão profissional ao projecto para estimular esta continuidade, bem como a ambição profissional que muitos demonstram. “Explicámos o que é um manager e a questão do agenciamento, o que é preciso fazer para ter um concerto e divulgá-lo, criar estratégias de promoção, o que é um rider técnico, etc”, aponta Capicua.
No caso de Lendária Treze, representante da “revolta feminista” e a especialista em vídeo do grupo, podemos dizer que não vai sair daqui igual. Escreve há quase dez anos mas só ganhou coragem para começar a gravar as suas músicas por causa do Oupa!. “Este projecto deu-me um salto enorme. A Capicua ajudou-me na métrica – eu escrevia tudo muito comprido – e a controlar o diafragma. Ou seja, como passar a mensagem melhor”, revela. “Quando és miúda no rap é mais difícil”, continua. “Ou tens de levar com segundas intenções ou dizem-te ‘ya, está fixe para rapariga’. Eu não quero isso. Quero que digam que está brutal, ponto.”
Raune também tece elogios ao Oupa!. “Com o D-One aprendi a misturar melhor. Sabia o que eram os acordes mas não sabia tocá-los. E à pala do workshop consegui fazer o meu primeiro trap beat”, conta. Começou a produzir há dois anos – quando se fartou de usar “os instrumentais dos gajos da net” – e com apenas 20 anos é um dos produtores mais talentosos do colectivo (criou, aliás, os instrumentais de metade das canções do Oupa!). Tem EPs e várias mixtapes, já deu concertos no Hard Club e no Porto Rio, e é fiel ao hip-hop de postura combativa, referindo nomes como Mos Def, Mobb Deep e Dr. Dre.
Depois do Rivoli, Raune quer tentar mostrar as canções do Oupa! noutros palcos e fazer mais projectos no bairro com o grupo e com gerações mais novas. Porque enquanto tudo o resto continuar a faltar naquela pequena cidade cercada com vista para a Circunvalação, a música estará sempre lá, para o que der e vier. Joca faz o resumo: “Música, tudo o que quero, quis e até se diz…/Que se um beat fixe me matar, eu morro feliz.”