Detroit: uma nova gentrificação em plena crise do capitalismo?
Detroit irá levantar-se novamente e florescer, quando todas as outras cidades arderem.
O declínio populacional é de tal forma acentuado, que há quarteirões inteiros desocupados. Este foi, aliás, o principal motivo que levou à primeira medida pensada antes de a cidade declarar bancarrota. Num contexto de declínio populacional progressivo, o então mayor Dave Bing propôs uma política de downsizing aos seus cidadãos, promovendo como principal ideia a requalificação e reordenamento urbanos à custa de uma aproximação forçada dos seus habitantes, encurtando o espaço entre famílias isoladas em quarteirões distantes. O projecto, que visava essencialmente racionalizar recursos, foi chumbado, depois de conotado como forma de segregação que obrigava os cidadãos a abandonar as suas casas, alojando-os em terrenos que lhes eram estranhos. Veio a bancarrota, e com ela um sentimento generalizado de uma Motown que sucumbia, e sucumbe, de forma irreversível. O sentimento de um sonho americano hoje mais volátil, numa vergonha nacional que era preciso esquecer, mesmo que a necessária lição ficasse por tirar. Um mundo estranho e irrepetível, portanto, aos olhos dos americanos. Mas tudo ficou por fazer e hoje Detroit conta com mais de 100.000 propriedades abandonadas, tendo reduzido para metade a sua população. O estado geral da cidade é aquele que se encontra nos mais emblemáticos edifícios da cidade, numa estação central em ruínas, ou num Michigan Theatre transformado em parque de estacionamento. Depois de surgir como o espelho máximo de uma crise nacional que girava em torno do subprime, do capital fictício da expansão do crédito, ou da desregulação endémica, Detroit era mais ou menos como o resultado final de um sinal dos tempos que apontava para o colapso do capitalismo. E, no meio de toda esta sucessão de acontecimentos, uma certa forma de esperança. Existem mais ou menos sinais de que esta cidade poderá, a prazo, vir a fazer parte do processo histórico de criação cíclica de polos culturais, na medida em que se configura um cenário de atracção de franjas da população escolarizada, em especial jovens com um percurso nas artes. A cidade de Detroit começa hoje a beneficiar, ela própria, de fenómenos de gentrificação que se constroem nas cidades mais caras da América. Austin, Brooklyn (NYC), Portland (Oregon), etc, são casos evidentes de cidades que passam por condições de ultra-valorização imobiliária, concentrando grandes franjas da população com maior poder económico, e votando outras, como é o caso destes jovens escolarizados com fraco poder económico, a uma certa forma de abandono forçado, em êxodos mais ou menos arbitrários, consoante a disponibilidade e escolhas que se façam a seguir. Em certa medida, podemos referir que a cidade de Detroit, mesmo em condições de precariedade e falência da gestão camarária, pode começar a constituir um fenómeno de gentrificação que poderá resultar da chegada de jovens artistas que, mesmo não conseguido subsistir nas cidades mencionadas anteriormente, fazem uso de um maior poder económico para comprar casas e estúdios na Detroit abandonada, onde o valor do metro quadrado é o mais baixo entre todas as grandes cidades da América. O documentário Detropia, premiado em Sundance, deixava antever esta possibilidade, com testemunhos de jovens e adultos que, não conseguindo criar noutras cidades, viam em Detroit o local perfeito para construir vida e apostar em projectos profissionais parados, por falta de recursos. Por outras palavras, uma cidade nova que poderá estar a nascer. Uma espécie de Kreuzberg levada ao extremo, num contexto de destruição generalizada.
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O declínio populacional é de tal forma acentuado, que há quarteirões inteiros desocupados. Este foi, aliás, o principal motivo que levou à primeira medida pensada antes de a cidade declarar bancarrota. Num contexto de declínio populacional progressivo, o então mayor Dave Bing propôs uma política de downsizing aos seus cidadãos, promovendo como principal ideia a requalificação e reordenamento urbanos à custa de uma aproximação forçada dos seus habitantes, encurtando o espaço entre famílias isoladas em quarteirões distantes. O projecto, que visava essencialmente racionalizar recursos, foi chumbado, depois de conotado como forma de segregação que obrigava os cidadãos a abandonar as suas casas, alojando-os em terrenos que lhes eram estranhos. Veio a bancarrota, e com ela um sentimento generalizado de uma Motown que sucumbia, e sucumbe, de forma irreversível. O sentimento de um sonho americano hoje mais volátil, numa vergonha nacional que era preciso esquecer, mesmo que a necessária lição ficasse por tirar. Um mundo estranho e irrepetível, portanto, aos olhos dos americanos. Mas tudo ficou por fazer e hoje Detroit conta com mais de 100.000 propriedades abandonadas, tendo reduzido para metade a sua população. O estado geral da cidade é aquele que se encontra nos mais emblemáticos edifícios da cidade, numa estação central em ruínas, ou num Michigan Theatre transformado em parque de estacionamento. Depois de surgir como o espelho máximo de uma crise nacional que girava em torno do subprime, do capital fictício da expansão do crédito, ou da desregulação endémica, Detroit era mais ou menos como o resultado final de um sinal dos tempos que apontava para o colapso do capitalismo. E, no meio de toda esta sucessão de acontecimentos, uma certa forma de esperança. Existem mais ou menos sinais de que esta cidade poderá, a prazo, vir a fazer parte do processo histórico de criação cíclica de polos culturais, na medida em que se configura um cenário de atracção de franjas da população escolarizada, em especial jovens com um percurso nas artes. A cidade de Detroit começa hoje a beneficiar, ela própria, de fenómenos de gentrificação que se constroem nas cidades mais caras da América. Austin, Brooklyn (NYC), Portland (Oregon), etc, são casos evidentes de cidades que passam por condições de ultra-valorização imobiliária, concentrando grandes franjas da população com maior poder económico, e votando outras, como é o caso destes jovens escolarizados com fraco poder económico, a uma certa forma de abandono forçado, em êxodos mais ou menos arbitrários, consoante a disponibilidade e escolhas que se façam a seguir. Em certa medida, podemos referir que a cidade de Detroit, mesmo em condições de precariedade e falência da gestão camarária, pode começar a constituir um fenómeno de gentrificação que poderá resultar da chegada de jovens artistas que, mesmo não conseguido subsistir nas cidades mencionadas anteriormente, fazem uso de um maior poder económico para comprar casas e estúdios na Detroit abandonada, onde o valor do metro quadrado é o mais baixo entre todas as grandes cidades da América. O documentário Detropia, premiado em Sundance, deixava antever esta possibilidade, com testemunhos de jovens e adultos que, não conseguindo criar noutras cidades, viam em Detroit o local perfeito para construir vida e apostar em projectos profissionais parados, por falta de recursos. Por outras palavras, uma cidade nova que poderá estar a nascer. Uma espécie de Kreuzberg levada ao extremo, num contexto de destruição generalizada.
Nenhuma cidade caiu tão baixo, e, também por isso, é importante assumir que não existe paralelo naquilo que possa vir a ser tentado como reconfiguração da mesma. No entanto, é sempre possível vir a assistir ao ressurgir de uma cidade que, agora que tudo o resto falhou, poderá reerguer-se na lógica de um novo paradigma. Em última análise, é quase como lembrar, ainda que em forma de hipérbole, a ideia proferida por Eve (papel desempenhado por Tilda Swinton em Only Lovers Left Alive), que se traduz na certeza de que a cidade de Detroit irá levantar-se novamente e florescer, quando todas as outras cidades arderem.
Sociólogo. Investigador no ISCTE-IUL