O filme de Miguel Gomes visto de fora, ou o happening da comédia humana
“Estranho e, por vezes, hipnotizante”, como diz Luke Buckmaster, crítico da edição australiana do jornal Guardian, antes de confessar que a abordagem do realizador é “profundamente memorável”. Jacques Mandelbaum, no Le Monde, chama-lhe “obra-prima”. Adam Cook, no site Indiewire, diz ser o “filme mais ambicioso - e mais divertido - de todo o festival de Cannes”. Jonathan Romney, na Film Comment, fala dele como um filme que restaura o mundo real a “uma forma rica e poética da verdade” . Daniel Fairfax chama-lhe o “melhor novo filme exibido em Cannes este ano” na revista Senses of Cinema, Dennis Lim “uma obra imensa de estimulante liberdade” na Artforum e Nick James, director da revista Sight & Sound, “um dos filmes imperdíveis do ano”.
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“Estranho e, por vezes, hipnotizante”, como diz Luke Buckmaster, crítico da edição australiana do jornal Guardian, antes de confessar que a abordagem do realizador é “profundamente memorável”. Jacques Mandelbaum, no Le Monde, chama-lhe “obra-prima”. Adam Cook, no site Indiewire, diz ser o “filme mais ambicioso - e mais divertido - de todo o festival de Cannes”. Jonathan Romney, na Film Comment, fala dele como um filme que restaura o mundo real a “uma forma rica e poética da verdade” . Daniel Fairfax chama-lhe o “melhor novo filme exibido em Cannes este ano” na revista Senses of Cinema, Dennis Lim “uma obra imensa de estimulante liberdade” na Artforum e Nick James, director da revista Sight & Sound, “um dos filmes imperdíveis do ano”.
Podíamos ir por aí fora, mas estas citações de críticos que viram As Mil e Uma Noites na Quinzena dos Realizadores de Cannes, somadas ao prémio máximo do festival de Sydney (competindo com gente como o iraniano Jafar Panahi) e a uma estreia em França que mereceu os maiores encómios da imprensa local, já dizem qualquer coisa. Dizem que o tríptico de Miguel Gomes está a entusiasmar a comunidade cinéfila global como poucos filmes o fizeram nos últimos anos. Isso deve-se, em parte, ao modo como a dimensão lúdica e inventiva de Aquele Querido Mês de Agosto e Tabu projectou o nome de Miguel Gomes em todo o mundo, mas deve-se também à própria ousadia do novo filme - seis horas de duração repartidas por três “volumes” que mudam constantemente de registo, entre a ficção e o documentário, entre a fantasia e o realismo, reflectindo “a quente” o Portugal de hoje e, por extensão, a Europa e, quem sabe, o mundo?
É por essa universalidade que o brasileiro Rodrigo Fonseca, crítico e professor de história do cinema, que viu As Mil e Uma Noites na sua memorável estreia na Quinzena de Cannes, define a importância que o filme de Gomes tem. “A grande obra que pensou o Inferno e o Céu chama-se A Divina Comédia”, diz ao telefone do Rio de Janeiro. “E o Miguel Gomes lança as bases de uma comédia humana balzaquiana, camoniana, onde o riso causa o épico e o épico fica menos psicológico, menos distante, menos metafísico, mais telúrico. Ele usa o riso como um parceiro, expressa a tragédia humana através da gargalhada.”
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O modo como o filme usa o humor, é também uma das chaves do filme para Thiago Stivaletti, crítico do portal brasileiro UOL, para quem As Mil e Uma Noites foi “a melhor coisa" que viu em Cannes este ano. “Tem uma mistura de fábula e ironia que a gente identifica com o Miguel, mas também como ironia de todo um cinema português, que vem do João Botelho e até do Manoel de Oliveira”. Stivaletti fala de uma “ironia fina, inteligente, que por exemplo não temos mais no cinema brasileiro, que se refugiou na comédia de linguagem de padrão TV Globo”, enquanto Fonseca coloca o cineasta mais na linhagem de João César Monteiro, cruzado com “a poesia imagética do Pedro Costa ao olhar os excluídos e os diferentes”.
A tendência de olhar para As Mil e Uma Noites enquadrado pelo cinema português de autor mais reconhecido internacionalmente é inevitável, mas a verdade é que, para os críticos com quem o Ipsilon falou, o projecto de Miguel Gomes vai muito para lá disso. Alexandra Zawia, jornalista austríaca e júri do concurso de Vila do Conde este ano (para além colaboradora do PÚBLICO) viu também As Mil e Uma Noites na Quinzena de Cannes, e sublinha que a própria experiência de assistir ao filme é parte significativa do seu encanto.
“O filme é aquilo a que eu gostaria de chamar 'cinema da experiência', e uso a expressão para significar várias coisas diferentes: a experiência da realidade, da vida quotidiana, quer a nivel pessoal quer a nível 'europeu', mas também a experiência de ver o próprio filme. É um filme que trabalha com o espectador, e para o espectador, que lhe propõe uma experiência e lhe pede que se empenhe nela... porque conta uma narrativa que o espectador apenas pode completar com a sua própria experiência.” Daí que As Mil e Uma Noites não se “esgote” apenas nas referências a Portugal, mas possa ressoar de muitas maneiras diferentes junto de um público internacional.
Rodrigo Fonseca, por exemplo, fala do filme como um “gesto”, um “acontecimento artístico” que se alimenta da própria cultura global - “seis horas de duração divididas em três volumes é um gesto para mostrar e dar conta de toda a moralidade europeia e assim compreender o grande monstro que a crise é. O filme tem seis horas não por uma 'molecagem' de querer ser grande, mas porque precisa dessas seis horas para dialogar com toda a tradição narrativa folclórica do Ocidente e da sua troca simbólica com o Oriente, para reinventar o espaço cinematográfico. Que um projecto como este passe por Cannes sem ser premiado demonstra um sinal de preconceito, de desentendimento e desinteresse, de miopia em relação ao que o cinema pode ser.”
E compara a sua estrutura ao relançamento do Napoleão de Abel Gance por Francis Ford Coppola nos anos 1980: “Esse foi um gesto para demonstrar que se podia transformar um simples filme num happening. Pode-se criar um acontecimento-fogacho como Avatar, que inventa um uso sofisticado do 3D que leva as pessoas ao cinema mas se esgota logo em seguida. É mais interessante pensar no acontecimento como linguagem, utilizar a compreensão do tempo como escrita das relações humanas – é isso que o Miguel Gomes faz.”
Alexandra Zawia vê As Mil e Uma Noites precisamente por esse lado de filme aberto ao espectador, em permanente mudança: “É uma obra viva. Um filme que passa o tempo a mudar de forma, de estrutura, de estilo, de imagem, mas que continua a mudar na nossa cabeça muito tempo depois de o termos visto, que se mantém vivo e a respirar para lá da projecção”. A jornalista fala de Gomes como um artista capaz de encontrar “modos formais, visuais e estéticos de contar uma história que são verdadeiramente cinematográficos” e define essa mudança constante como chave do filme. “A maioria dos filmes dizem ao que vêm nos primeiros cinco minutos e daí para a frente já se sabe o que vão dizer. As Mil e Uma Noites não, e é isso que o torna essencial. Acho que existe um público que agradece que lhe dêem alternativas ao cinema mainstream formatado, e que gosta que não o tomem por parvo. E esse público vai agradecer que lhe mostrem As Mil e Uma Noites”.