Sudão do Sul: o mais novo país do mundo já é um Estado falhado
O Sudão do Sul tem quase tanto tempo de independência como de guerra. À violência indescritível junta-se a fome que toca em quase metade da população e as doenças. Tudo em nome de uma luta pelo poder.
Prestes a fazer quatro anos como um país independente (a 9 de Julho), o Sudão do Sul está desde Dezembro de 2013 envolto numa guerra civil que, em nome de um jogo de rivalidades políticas entre antigos camaradas de armas, praticamente destruiu qualquer perspectiva viável para um futuro como nação. Dezenas de milhares de mortos e mutilados, cerca de 1,5 milhões de refugiados, metade da população em risco de fome, cidades transformadas em ruínas — o quadro é o mesmo há vários meses e são poucas as esperanças de que possa ser revertido.
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Prestes a fazer quatro anos como um país independente (a 9 de Julho), o Sudão do Sul está desde Dezembro de 2013 envolto numa guerra civil que, em nome de um jogo de rivalidades políticas entre antigos camaradas de armas, praticamente destruiu qualquer perspectiva viável para um futuro como nação. Dezenas de milhares de mortos e mutilados, cerca de 1,5 milhões de refugiados, metade da população em risco de fome, cidades transformadas em ruínas — o quadro é o mesmo há vários meses e são poucas as esperanças de que possa ser revertido.
“As pessoas no Sudão do Sul estão actualmente cercadas em três frentes: aumento da insegurança alimentar, escalada dos combates e uma deterioração rápida da situação económica que está a conduzir mais pessoas para a pobreza”, diz ao PÚBLICO Zlatko Gegic, director da Oxfam para o Sudão do Sul.
O capítulo mais recente do rosário de atrocidades cometidas na guerra civil sul-sudanesa foi divulgado recentemente pela UNICEF, depois de ter entrevistado sobreviventes da ofensiva do exército no estado petrolífero de Unity. Pelo menos 129 crianças foram mortas em vários ataques durante o mês de Maio. Mas há pormenores de especial crueldade e que impressionam mesmo quem, como o director-executivo da UNICEF, Anthony Lake, tem experiência com episódios do género, que definiu os actos de violência como “indescritíveis”.
Os rapazes eram castrados e abandonados para morrer, numa poça de sangue; antes de serem executadas, as raparigas eram violadas por grupos de soldados. Num dos casos, uma rapariga foi “morta porque os atacantes não conseguiam decidir quem iria violar a vítima primeiro”, contou o chefe de comunicação da UNICEF, Christopher Tidey. Noutras ocasiões, grupos de rapazes “foram amarrados e degolados”.
A execução das crianças é a forma encontrada pelos seus autores para impedir que as próximas gerações exerçam vingança no futuro, de acordo com as testemunhas ouvidas pela UNICEF. Os que são poupados têm como destino a incorporação forçada nas fileiras dos grupos armados — a ONU estima que existam cerca de 13 mil crianças-soldado a combater no Sudão do Sul.
Nação de refugiados
Nos últimos meses, a guerra obrigou cerca de 1,5 milhões de pessoas (de uma população total de onze milhões) a abandonarem as suas casas. Os responsáveis pelo campo de Kakuma esperavam poder fechar as portas, mas desde o final de 2013 já receberam 44 mil sul-sudaneses e as notícias de que está previsto um aumento para acomodar mais 80 mil pessoas indicam que a pressão não deverá ficar por aqui. A Etiópia e o Uganda, para além do Quénia, acolheram cerca de meio milhão de sul-sudaneses, de acordo com a ONU.
A grande maioria, porém, está deslocada dentro do próprio país. Cidades como Bentiu — capital do estado de Unity — são descritas como cidades fantasma, praticamente em ruínas. A verdadeira cidade mudou-se para uma base da ONU, que acolhe agora cerca de 46 mil pessoas, apesar de não estar preparada para servir de campo de refugiados. O mesmo se passa em Malakal, no Nordeste, onde as instalações da ONU receberam sete mil pessoas nos últimos dois meses e que contam agora com uma “população” superior a 30 mil habitantes, segundo The New York Times.
Estes complexos não estão preparados para receber refugiados e as condições sanitárias são muito precárias, com os campos a tornarem-se esgotos a céu aberto, notam os observadores. Mas fora deles, a violência generalizada revela uma alternativa que ninguém quer enfrentar.
A par da morte às mãos dos grupos armados, convive o fantasma da fome. As piores estimativas confirmaram-se e quase quatro milhões de pessoas estão em risco de enfrentar a escassez de alimentos. “Não é apenas que o Sudão do Sul tenha alguns dos indicadores de desenvolvimento humano mais baixos de todo o lado. Nem que já se tem 17 meses de violência muito brutal. É que também estamos no meio de uma depressão económica, e que, para ser claro, perto do colapso económico.” As palavras foram ditas há um mês por Toby Lanzer, que coordenava a missão da ONU no país até ter sido expulso pelo governo por proferir declarações “que não davam esperanças ao povo do Sudão do Sul”, segundo um porta-voz.
A falta de esperança de Lanzer pode muito bem traduzir-se em realidade já nos próximos meses, caso não haja uma mudança radical em relação às perspectivas de paz. A estação das chuvas deve começar já no final de Junho, tornando cerca de 70% do território inacessível durante vários meses, dificultando ainda mais a prestação de apoio pelas organizações humanitárias.
A tempestade perfeita ficou completa esta semana com a declaração de um surto de cólera. Após 18 mortes e 170 casos suspeitos, o governo avançou para a oficialização do surto, apesar de as regras da Organização Mundial de Saúde recomendarem a declaração assim que se registarem entre dez a 20 infecções confirmadas.
Num país em que praticamente nada funciona, será difícil controlar a epidemia. Entre 2009 e 2013, o Sudão do Sul não tinha tido qualquer caso de cólera, observa a UNICEF, mas no ano passado um surto fez 167 vítimas. A sobrelotação dos abrigos e as más condições sanitárias e clínicas estão na base do ressurgimento da doença, acrescenta a agência da ONU.
“Não há país”
A tudo isto parecem ser insensíveis os principais protagonistas da crise que está na origem da guerra no país. Tudo começou no final de 2013 quando o Presidente, Salva Kiir, acusou o seu ex-vice e antigo companheiro de armas, Riek Machar, de ter tentado liderar um golpe de Estado. De um desentendimento no seio do partido dominante, a violência passou a assumir contornos étnicos, opondo os dinka — a etnia do Presidente — aos nuer, a que pertence Machar e é maioritária no país.
O presente conflito tem uma alta carga pessoal e é descrito como uma simples luta pelo poder, que se serviu das divisões étnicas. A independência obtida a 9 de Julho de 2011 foi acolhida com entusiasmo pela União Europeia e pelos Estados Unidos, que viram no Sudão do Sul a oportunidade de uma “história de sucesso” em África. Por isso, praticamente desde o início da guerra que a pressão internacional para que governo e rebeldes se sentassem à mesa das negociações foi elevada.
Mas, depois de oito acordos de cessar-fogo gorados, os combates continuam com a mesma intensidade e abrangem mais zonas do território. Em Maio, o secretário de Estado norte-americano, John Kerry, dizia que os líderes do país tinham que “voltar à razão”.
Este mês, a União Africana decidiu expandir o número de mediadores internacionais do conflito para tentar ultrapassar algumas limitações diplomáticas. Até agora, para além da chamada troika (composta pelos EUA, Reino Unido e Noruega), as conversações tinham a participação apenas de Estados vizinhos do Sudão do Sul e que eram frequentemente acusados de se guiarem mais pelos seus interesses próprios — nomeadamente quanto à produção de petróleo. O novo grupo de mediadores vai passar a incluir cinco novos Estados-membros representativos de cada região do continente africano.
Pelo segundo ano consecutivo, o Sudão do Sul lidera a lista dos Estados mais frágeis do planeta, elencada pelo Fundo para a Paz, mas dificilmente essa classificação constitui surpresa para quem convive diariamente com a guerra, a fome e a doença. Zlatko Gegic diz que “os sul-sudaneses estão extremamente exaustos com esta crise originada pelo homem. O desespero é visto em todo o lado.” Ao New York Times, John Khamis, que nos quatro anos de independência do seu país passou quase o tempo todo num campo de refugiados, resume tudo numa simples e cortante frase: “Não há mais país.”