Se o terrorismo é uma encenação, somos todos espectadores
Subitamente, três atentados quase simultâneos sobressaltam um festival de teatro inteiramente dedicado às questões do terrorismo: o que fazer quando a ficção se torna realidade?
O mesmo festival que, três dias depois, vê aquilo que era suposto ser da ordem da ficção tornar-se realidade na Tunísia, no Kuwait, mas também mesmo ali ao lado, em França – e com muitas, demasiadas para poderem ser ignoradas, vítimas europeias (as outras, a avaliar pela paralisia da comunidade internacional em relação à Síria, têm sido mais fáceis de ignorar).
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O mesmo festival que, três dias depois, vê aquilo que era suposto ser da ordem da ficção tornar-se realidade na Tunísia, no Kuwait, mas também mesmo ali ao lado, em França – e com muitas, demasiadas para poderem ser ignoradas, vítimas europeias (as outras, a avaliar pela paralisia da comunidade internacional em relação à Síria, têm sido mais fáceis de ignorar).
Não é uma comédia negra, ainda que tenha acabado de entrar em cena o muito peculiar, e justamente celebrado, humor judeu, portanto aplausos. Ao longo dos últimos dois anos, cinco membros da União dos Teatros da Europa (UTE) – Nationaltheatret Oslo (Noruega), Jugoslovenko dramsko pozoriste (Sérvia), The Habima National Theater (Israel), Schauspiel Stuttgart (Alemanha), Comédie de Reims (França) – dispuseram-se a mostrar que a mesmíssima palavra, terrorismo, pode levar a muitos sítios diferentes, a ponto de já nem sequer parecer uma única palavra mas várias, às vezes condenadas a perderem-se umas das outras na tradução. Em alemão, por exemplo, terrorismo significa uma história alternativa dos anos 70 – ou uma maneira bastante assassina de lidar com a imigração (o julgamento do grupo de extrema-direita Nationalsozialistischer Untergrund, que entre 2000 e 2006 matou oito cidadãos de origem turca, ainda decorre, e entretanto a austríaca Elfriede Jelinek escreveu uma peça de teatro sobre o assunto, Das Schweigende Mädchen, que o festival TERRORisms também mostrou). Em norueguês, é sinónimo de Utoya, o lugar onde em 2011 um rapaz aparentemente normal, Anders Breivik, matou 69 pessoas. Em sérvio passa a ter outro nome, Gavrilo Princip, assim como outra vítima, o arquiduque Francisco Fernando (e com ele uma ideia que para muitos intelectuais parecia invulgarmente promissora, a Mitteleuropa). Em francês, pelo menos nos últimos meses, todos os terrorismos são Charlie. E em hebraico, bom, é a palavra que engole toda uma nação, mais a respectiva violência oficial – dos anos que precederam a fundação do Estado de Israel até este século XXI em que se transformou no paraíso, agora, para toda uma geração de bombistas suicidas.
Seria possível continuar, mesmo sem sair da Europa – Espanha, Itália, Irlanda, Inglaterra, Áustria, Dinamarca, Suécia, Rússia… Mas às vezes é preciso parar para fazer um ponto de ordem à mesa, e foi justamente isso que um festival em Estugarda – perigosamente perto da prisão de Stammheim, onde entre 1972 e 1977 apareceram mortos, em circunstâncias altamente polémicas, vários membros da Rote Armee Fraktion, ou Grupo Baader-Meinhof – andou a fazer nos últimos dias, encerrando um projecto lançado em 2013 pela UTE para cartografar a multiplicidade de manifestações e de reacções que o fenómeno do terrorismo assume no espaço europeu (ou num dos territórios mais irreprimíveis da sua diáspora, Israel, onde a UTE tem um dos seus membros extra- União Europeia). Entre as primeiras impressões, suscitadas precisamente pelos atentados de Oslo e Utoya, e este festival que teoricamente devia pôr uma pedra em cima do assunto (mesmo sendo o assunto inesgotável, e de resto outros teatros membros da UTE parecem querer prolongar o debate com outras criações), passaram-se dois anos particularmente relevantes para o debate acerca do terrorismo e das suas representações mediáticas, mas também artísticas. Foi esse debate que o festival organizado pelo Schauspiel Stuttgart quis sistematizar, compilando num programa esmagador não só os cinco espectáculos expressamente produzidos para o efeito pelos teatros participantes e a publicação dos respectivos textos (todos criados por encomenda no âmbito do projecto TERRORisms), como também uma série de debates, mesas-redondas, instalações, exposições, lançamentos, publicações e apresentações paralelas que procuraram desmontar até que ponto o terrorismo, naquilo que tem de encenação de violência à atenção de um público generalista, também é um espectáculo. E até que ponto, assim sendo, somos todos espectadores, mesmo não querendo assistir a esse teatro.
Amor e ódio
Um festival é arsenal suficiente para encurtar a distância entre a ficção e a realidade? Difícil dizer, a partir do momento em que um triplo atentado rouba inesperadamente o palco depois de dois dias de teoria acerca do assunto – mesmo sendo a teoria bastante prática, como quando se discutiram, numa visita guiada pela cidade, as feridas abertas em Estugarda pelos julgamentos de Stammheim (e, mais genericamente, a facilidade com que algumas figuras bem colocadas na pirâmide social nazi encontraram lugares confortáveis na Alemanha supostamente regenerada do pós-guerra) ou, na peça Wir sind nicht das Ende, a subliminar ligação da Alemanha com os atentados do 11 de Setembro (foi em Hamburgo que o libanês Ziad Jarrah, um dos sequestradores do Voo 93, estudou engenharia aeronáutica; e a sua última namorada, que chegou a morar em Estugarda, ainda vive no país, sob protecção policial).
Mas para as cinco novas peças criadas para o projecto, que depois das respectivas estreias nacionais se juntaram para esta reunião de família em Estugarda, os atentados da semana passada não foram o primeiro teste de realidade. Os ensaios de La Baraque, a comédia do iraniano Aiat Fayez com que a Comédie de Reims entrou na operação TERRORisms, foram subitamente interrompidos pelo ataque ao Charlie Hebdo, como explicou o encenador, Ludovic Lagarde. Perante o terror real, toda a equipa artística teve de parar para pensar se o espectáculo sobre o enriquecimento inesperado de dois fura-vidas fabricantes de bombas caseiras podia – ou devia – continuar. “Fizemos um ensaio público alguns dias depois do atentado e os espectadores, incomodados, vieram perguntar se íamos mesmo manter a cena em que os protagonistas fazem uma bomba em casa. Bom, a cena manteve-se e esse ensaio acabou por ser precioso para estabelecermos os limites: até onde é que podíamos ir, até onde é que podíamos rir…”. Mesmo com uma bomba em palco – ou por causa da bomba em palco –, a estreia de La Baraque, quatro semanas depois do massacre, acabou por funcionar como “uma estranha experiência de catarse”.
Em Telavive, o fenómeno dos bombistas suicidas parecia já uma coisa do passado quando o Habima começou a trabalhar em God Waits at the Station – em que como no Rashomon de Akira Kurosawa não há só uma verdade, no caso sobre a palestiniana que se faz explodir num restaurante em Haifa. Voltou a tornar-se uma coisa do presente, sem homens-bomba mas com mísseis, a partir do momento em que Israel lançou, já o espectáculo estava em ensaios, a campanha do Verão de 2014 contra Gaza. “Quando começámos este projecto, nem a opinião pública nem a imprensa se interessaram muito. Israel estava a atravessar um período calmo, não havia grande actividade terrorista. Mas entretanto o exército israelita entrou em Gaza e o Hamas respondeu. Ouvíamos as sirenes nas salas de ensaios, os actores tinham de ir a correr para os abrigos, ninguém tinha cabeça para trabalhar porque a prioridade era ter notícias da família e dos amigos… A certa altura vários membros da equipa declararam que com o país em guerra não conseguiam identificar-se com a história de uma bombista suicida e que queriam tirar os nomes da ficha técnica”, contou o director do Habima (e actual presidente da UTE), Ilan Ronen. A estreia acabou por ser sucessivamente adiada porque mesmo depois do cessar-fogo a administração do teatro continuava a achar que não era o momento. E, admitiu Ronen, teria continuado a achar que não era o momento até hoje se entretanto uma assembleia-geral da UTE em Telavive, em Novembro, não tivesse forçado o Habima a mostrar finalmente a peça: “Só mesmo a pressão internacional permitiu que estreássemos: o espectáculo fazia parte de um projecto da UTE e a administração percebeu que não podia continuar a escondê-lo.” Reacções? Amor, ódio e muito pouca coisa pelo meio: “Em Israel é sempre difícil tratar ‘a situação’. Toda a gente é declaradamente de esquerda ou de direita, toda a gente passou pelo serviço militar…”, respondeu o encenador Shay Pitowsky.
Ainda que o teatro seja sempre política – nisso concordaram unanimemente os directores dos cinco teatros na mesa-redonda que o festival dedicou ao assunto –, há lugares em que é mais política do que noutros. Israel, obviamente, onde a nova ministra da Cultura do Governo “mais à direita de sempre” já anunciou que os artistas podem continuar a dizer o que quiserem, mas que não haverá dinheiros públicos para quem “denegrir o país ou o exército”. Mas também a Sérvia, onde não é totalmente pacífico para um teatro anunciar que vai participar num projecto internacional sobre terrorismo com um espectáculo como The Dragonslayers – uma espécie de biografia alternativa, e bastante poética, de Gavrilo Princip, o sérvio bósnio que assassinou o arquiduque Francisco Fernandes há 101 anos (o festival terminou precisamente a 28 de Junho…) e que, como apontou o actor principal, Nikola Rakocevic, “não vem nos livros de História”. Em Estugarda, é possível dizer ostensivamente que “Gavrilo Princip é um herói” e ver meia sala aplaudir com entusiasmo; mas em Graz, na Áustria, onde o espectáculo também foi apresentado, a audiência viu em The Dragonslayers uma manifestação do nacionalismo sérvio – justamente a leitura que o director do teatro, Gorcin Stojanovic, quer evitar nesta que é “basicamente a história de um rapaz que nunca beijou uma rapariga” e deu por si a matar “o lamentável opressor cujo lamentável destino foi dar o nome a uma banda pop”.
Sim, vistos de Estugarda são vários e nem sempre óbvios os caminhos que vão dar ao terrorismo – basta olhar para o ovni norueguês que abriu o festival, We chew on the bones of time, uma irónica meditação sobre o sentido da vida, do Big Bang ao Apocalipse, que pôs muitos espectadores a achar que estavam no festival errado. Não há propriamente terrorismo na peça – mas há a angústia existencial, a paranóia e o ateísmo agudo que imaginamos explodir na cara de uma democracia aparentemente perfeita quando de um dia para o outro um cidadão normal atira a matar sobre dezenas de pessoas num acampamento de Verão. Totalmente a propósito: “Não somos o teatro que se espera que sejamos, somos o teatro que não se imaginaria que um teatro nacional pudesse ser”, sublinhou, noutro contexto, a directora do Nationaltheatret Oslo, Hanne Tomta.
O que dizer então do teatro que organizou este festival (e de Armin Petras, o director que se lembrou de o pôr em marcha justamente quando estava em Oslo a assistir a uma manifestação contra a presença do Habima, para todos os efeitos o teatro nacional israelita, numa rede europeia)? “Tivemos conversas com o Governo, claro, mas não por estarmos a fazer um festival sobre terrorismo – são conversas que temos sempre”, garantiu. E no entanto o Schauspiel Stuttgart é o teatro onde em tempos um director (o histórico Claus Peymann) foi forçado a demitir-se por causa da colecta que decidiu organizar para financiar o tratamento dentário de Gudrun Ensslin, uma Baader-Meinhof detida na prisão de Stammheim (e o teatro onde uma peça feita em cima disso, Offending Peymann – A Training, dos Rimini Protokoll, teve a sua estreia em 2007). Passaram-se muitos anos, quase 40, e hoje é o teatro onde a liberdade para lidar com o terrorismo vai ao ponto de ser possível haver uma falsa mulher-polícia fardada e armada até aos dentes a conversar no bar com os espectadores, que têm de passar por um falso detector de metais para entrar e quando vêem um batalhão de bombeiros a invadir a sala que uma companhia norueguesa acaba de encher de fumo já não sabem se aconteceu mesmo ou se podia ter acontecido.
O PÚBLICO viajou a convite da União dos Teatros da Europa