O Negro e o Branco já são amigos?
São tantas as razões para que tal aconteça como as formas que as mesmas tomam. E entre elas há antagonismos, anacronismos, até.
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São tantas as razões para que tal aconteça como as formas que as mesmas tomam. E entre elas há antagonismos, anacronismos, até.
Será então que o Negro e o Branco já são amigos?, pergunto evocando o famoso diário de viagem de Jean Rouch (1946-1951) cujo título é Alors le Noir et le Blanc seront amis. Rouch termina este diário escrito no Níger convicto num futuro encontro entre a brusquidão do branco e a sabedoria e paciência do negro. Cada um à sua maneira, diz o autor, falará sobre as maravilhas da sua região e as qualidades e defeitos dos brancos. O negro, segundo este autor, revelará ser muito mais culto do que o pensava o Branco, porque possuidor de tecnologias adequadas ao seu mundo, pertencente “afinal a uma civilização que em nada é inferor à do Branco”. Era a visão idílica de um etnólogo possuído que escrevia com toda esta ingenuidade poucos anos antes de começarem as lutas das independências e a descolonização do continente africano. Excluindo, porém, quer as manifestações de contornos neo-coloniais que vão subsistindo, quer as que se configuram como um reverso do pós-colonialismo que começam a surgir caracterizadas por um deslumbramento de um certo novo-riquismo de brancos pela súbita riqueza dos países dos negros, há em todas as outras manifestações razões diversas e perplexidades outras que valerá a pena anotar.
A Europa já teve, nos sécs. XVIII e XIX, a sua fase de "chinesices" e "japonesices", termos com que alguns historiadores classificavam o processo de construção cultural – o Orientalismo – empreendido pelos europeus na busca do exótico.
Hoje, porventura cansada de si, a Europa "à boleia da globalização" procura no exterior a energia criativa que existirá em África por força de ser um continente com uma população maioritariamente jovem e oriunda de países muito novos sem se aperceber da diversidade das condições de produção africanas, sobretudo, subtraindo de África as condições de vida da maioria da sua população - que pouco tem de glamoroso e de dançante - para ficar só com a criatividade artística. Este é o maior equívoco em que caem muitas das programações e dos seus promotores.
Ora este é um aspecto fulcral a ter em consideração, a saber que a divisão ou o possível entendimento entre a Europa e a África não é entre brancos e negros, porque entre europeus e africanos há uma divisão mais profunda que é a que existe entre pobres e ricos, entre democracias e oligarquias, entre as elites financeiras e o mundo do trabalho. É precisamente por isto que as programações de óbvia expressão política, se as há, se manifestam por conter autores e obras oriundas de África e das suas diásporas e por transportar ou, pelo contrário, excluir um pensamento cultural que vem do sul, que nem sempre se pode transferir para o norte, uma vez que há traduções impossíveis de línguas, de conceitos, de formas de produção.
Ao não assumir estes limites à tradução, ao pensar-se que o branco se pode mascarar de africano só porque veste as capulanas ou consegue tocar timbilas está-se a incorrer na falácia de pensar que pelas artes se pode atingir o diálogo, sem entender que as artes são também um campo de batalha entre heranças históricas e expectativas de futuro.
Seria interessante inquirir aos promotores da maioria destas actividades – excluindo desde já os que têm uma postura de lucro imediato seja ela assistencialista, ou comercial – que expõem o exótico, porque o fazem? Expectativa de gratidão? Mais-valia da diferença? Ou um pouco mais do que isso e o quê?
Durante as revoltas caribenhas houve um movimento de intelectuais brancos designado como “o negrismo” – a não confundir com “a negritude”, um outro movimento originário da diáspora negra nascida na primeira metade do séc. XX. O negrismo era um movimento de intelectuais e escritores brancos caribenhos que apoiavam as causas dos movimentos africanos, que cedo compreenderam que os limites da sua intervenção eram enormes, já que não se podiam de facto colocar no lugar dos negros caribenhos a lutar pelos seus direitos. Podiam tão só ser solidários com eles, porque a fronteira entre cidadãos livres e privilegiados e os rebeldes existia, para além de todas as manifestações de bondade.
Passado mais de um século esta fronteira permanece e tornou-se ainda mais complexa porque inclui todos, os que no mundo actual estão condenados a ser negros-pobres independentemente da cor da pele. Assim uma programação sobre África e todas as suas variáveis é sobretudo uma programação definida por um pensamento de fronteira, onde o branco e o negro não são finalmente amigos mas decidiram observar-se e escutar-se, cada um trazendo consigo as suas histórias e memórias coloniais não descurando a sua posição de classe sabendo bem que qualquer tentativa de passar para o lado de lá é falsa.
Quando um europeu não quiser mascarar-se de africano, começará aí a possibilidade de um encontro.