Não custa nada: é só pôr um til
Ela disse: “Não esperava essa riâção.” Disse-o na televisão, toda a gente ouviu, ainda por cima era uma técnica a falar das suspeitas de corrupção no Hospital de Santa Maria. Ela não esperava, mas nós já esperávamos. Tarde ou cedo teríamos, na fala corrente, a “riâção” (por reação, onde antes se escrevia reacção), o “if’tivo’ (por efetivo, onde antes se escrevia efectivo), a “conc’ção” (por conceção, onde antes se escrevia concepção) e até mesmo o “corruto”, onde se escreve ainda corrupto. E isto é apenas o princípio, há-de vir pior. À custa de se lerem palavras deformadas por um acordo ortográfico que ignora que a nossa fala não rima com ele, far-se-ão ouvir autênticos horrores.
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Ela disse: “Não esperava essa riâção.” Disse-o na televisão, toda a gente ouviu, ainda por cima era uma técnica a falar das suspeitas de corrupção no Hospital de Santa Maria. Ela não esperava, mas nós já esperávamos. Tarde ou cedo teríamos, na fala corrente, a “riâção” (por reação, onde antes se escrevia reacção), o “if’tivo’ (por efetivo, onde antes se escrevia efectivo), a “conc’ção” (por conceção, onde antes se escrevia concepção) e até mesmo o “corruto”, onde se escreve ainda corrupto. E isto é apenas o princípio, há-de vir pior. À custa de se lerem palavras deformadas por um acordo ortográfico que ignora que a nossa fala não rima com ele, far-se-ão ouvir autênticos horrores.
Isto além do resto, claro. Num texto recente, um dos defensores do novo acordo ortográfico (NAO), o professor Carlos Reis, referia-se (e bem) a “rigor conceptual”. No entanto, basta visitar o Museu Berardo para tropeçar numa tabuleta que anuncia, em letras grandes, “arte concetual”. Sim, o NAO dá tal escolha por facultativa, aqui, no Brasil ou na Patagónia. E se num exame um aluno escrever concetual e outro conceptual, o que fará o examinador? Moeda ao ar? Curioso dilema, para uma grafia “finalmente unificada”. Mas há mais. Num texto que publicou no Brasil, um dos mentores do NAO, Evanildo Bechara, escreveu que nos nomes não se toca (O Dia, 13/11/2011). Por palavras dele: “Essas exceções constituem nomes próprios, cuja fidelidade ao registro oficial sempre foi garantida pelos projectos ortográficos.” Sempre? Ora vão à Capela de São João Baptista, ali ao Chiado, e vejam como já mudou para “São João Batista”. E confiram quantos Baptistas estão a suprimir o “p”, em mensagens, em “obediência” ao NAO. Com “fatores” destes (e é curioso verificar como, sendo da mesma família da palavra facto, que mantém o “c”, factor ou factores o possam ter perdido, deformando-se para “fator” e “fatores”) temos uma reforma ortográfica muito bem encaminhada. Não custa nada, dizem eles.
Na verdade não custa. Basta acrescentar ao NAO um simples til. E acabar com esta farsa, que já foi longe demais. Utilidade? Nenhuma, como se vê. Problemas? Bastantes, como também se vê. Uma floresta de enganos e disparates, onde nem quem inventou as novas regras concorda inteiramente com elas e muito menos as sabe aplicar com um mínimo de nexo comum. Uma vergonha.
Entretanto, começou a circular uma recolha de assinatura para promoção de um referendo. Por princípio, o Estado não devia legislar sobre a Língua. No entanto, como continua a fazê-lo desde há mais de um século, não há outra forma de tratar disto senão por via da lei. Por isso o referendo, como veículo de auscultação popular nesta matéria, faz, apesar de tudo, sentido. E se há quem ande a tentar mexer na lei do aborto (que não obriga ninguém a abortar, embora descriminalize quem o faça), por que não mexer neste aborto que é o NAO (imposto abusivamente a quem não o quer)?
Entre os mandatários estão nomes que vão para além dos “suspeitos do costume”, e isso mostra que a causa ortográfica tem indesmentível relevo. Estão, por exemplo, Eduardo Lourenço, Olga Prats, José Sasportes, Marcello Duarte Matias, Matilde Sousa Franco, Manuel da Costa Andrade, Vítor Aguiar e Silva, Barbosa de Melo, António Arnaut, Manuel Alegre, Manuela Ferreira Leite, António Victorino d’Almeida, José Pacheco Pereira, António Bagão Félix, João Bosco Mota Amaral, António Lobo Xavier, Helena Roseta, Henrique Leitão, Miguel Sousa Tavares, Casimiro de Brito, Pedro Abrunhosa, Artur Pizarro, Gastão Cruz, Garcia Pereira, Miguel Tamen, António-Pedro Vasconcelos, Fernando Paulo Baptista, Júlio Machado Vaz, Pedro Mexia, Constança Cunha e Sá, Lídia Franco, Afonso Reis Cabral, Teolinda Gersão, António Feijó, Teresa Cadete, António Fernando Nabais, Ivo Miguel Barroso, Maria Filomena Molder, Isabel Wolmar, entre muitos outros.
Serão precisas, ao todo, 75 mil assinaturas para fazer esta pergunta: “Concorda que o Estado Português continue vinculado a aplicar o AO de 1990 bem como o 1.º e 2.º Protocolos Modificativos ao mesmo Tratado, na ordem jurídica interna?” Será muito interessante ver, depois, o resultado.