“A minha escrita é negra, mas gosto de contos de fadas”
Roxane Gay pertence à geração de escritores que está a fazer uma literatura vibrante nas Caraíbas. Vive nos Estados Unidos, mas diz-se, antes de mais, haitiana. O seu romance de estreia, Um Estado Selvagem, é uma descida ao inferno.
Professora, escritora, blogger com grande actividade no Twitter, ensaísta, crítica literária, feminista, católica que contesta muitas opções da Igreja…, “tímida” ou “não fosse escritora”, Roxane Gay gosta da possibilidade da subversão. Ou seja, de saber que há varias possibilidades na vida.
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Professora, escritora, blogger com grande actividade no Twitter, ensaísta, crítica literária, feminista, católica que contesta muitas opções da Igreja…, “tímida” ou “não fosse escritora”, Roxane Gay gosta da possibilidade da subversão. Ou seja, de saber que há varias possibilidades na vida.
Há quem leia na sua imagem e no que escreve uma provocação. Roxane faz-se ver e ouvir: é uma mulher grande, com os braços tatuados, sem maquilhagem, usa roupa larga e desportiva. Encontramo-la num hotel em Nova Iorque, vinda de São Francisco e, antes, de Monterrey, e, antes ainda, de Los Angeles... Muitos dias de viagem a fazer o que pedem cada vez mais aos escritores: que falem do que escrevem. Lamenta a falta de tempo para pensar e diz que esse lamento é afinal um bom problema para se ter quando sempre se desejou ser escritor. Está a habituar-se a essa imagem pública. Começa a ser reconhecida na rua fora da cidade onde vive (e onde ensina escrita criativa) no Indiana. Um sítio onde nada acontece, como sublinha, ao contrário do Haiti, que parece sempre poder ficar pior. Encolhe os ombros, mas nesse gesto não há uma ponta de conformismo. Para perceber tudo isso, nada como ler Um Estado Selvagem e partilhar uma conversa longa onde se fala de quase tudo. É uma tentativa para chegar ao indizível, ao impossível de escrever de que trata no seu romance.
Qual é a sua relação com o Haiti?
Os meus pais são haitianos, passei todos os meus Verões de infância no Haiti. Sou haitiano-americana. Cresci com uma identidade haitiana e isso é muito importante para mim. Mas como nasci nos Estados Unidos e sou muito americana, reclamo ambas as identidades. Quando era criança adorava o Haiti, achava que era um paraíso maravilhoso. Era muito bonito. À medida que fui crescendo, fui-me apercebendo de que há um outro lado do paraíso, de uma pobreza extrema, e comecei a sentir-me culpada e privilegiada por poder ir à praia, ter pessoas à minha espera com casa e comida. Este romance está muito próximo disto que descrevo; escrevi-o um pouco para reflectir sobre a cultura política e económica do país. Há coisas fantásticas, mas há também verdades muito difíceis acerca das quais é preciso falar.
Como esta informação que o romance nos dá acerca do momento em que a protagonista, Mireille, é raptada, no ano de 2008: “O Haiti havia ultrapassado a Colômbia como a capital mundial dos raptos”. Descreve uma epidemia de sequestros, uma quase doença nacional. Isso é próximo, conhece alguém vítima deste terror?
Infelizmente, depois de ter vendido o romance, a minha tia foi raptada e eu senti-me horrível; nunca teria escrito o livro depois disso. O maior ou menor volume de raptos depende do estado do país; quanto mais desafiantes estão as condições de vida em Port-au-Prince, mais raptos acontecem. Há um desespero crescente. O rapto da minha tia durou um dia e meio. Ela tem 60 anos e acha que a idade ajudou a que não fosse tão abusada, mas emocionalmente ficou muito afectada, até agora. Mas no geral, como o chefe dos raptores diz no início do romance, é uma transacção comercial. Os raptores levam uma pessoa, alguém paga, e eles devolvem a pessoa.
Mas pelo que escreve não é assim tão simples. Mireille é raptada e fica refém 13 dias.
Sim, é especialmente difícil no caso de mulheres jovens. Não sei se existem estatísticas oficiais, mas a percentagem das pessoas sexualmente abusadas em rapto é talvez de 40%. Uma vez que se ultrapassa essa barreira, há pouco a recuar e os crimes sucedem-se.
Fala das desigualdes. Sem querer desvendar, há um momento em que Mireille, filha de emigrantes ricos, corre por um bairro de lata e conclui: “Este é o Haiti que nunca vi ou conheci”.
Uma das coisas mais aflitivas em Port-au-Prince são as contradições: pessoas que têm os seus negócios e casas enormes ao pé de bairros de lata, casas feitas com pedaços de cartão, restos de chapas de carros... As pessoas constroem casas muito precárias com o que conseguem apanhar. Especialmente nos bairros de lata, assaltam-se postes de electricidade e é incrível ver as redes de fios eléctricos. Em certos sítios essas redes são tão cerradas que não se consegue ver o sol. A rua do romance é imaginada. Tentei imaginar o que seria percorrer uma rua dessas a correr, em que ela via uma parte de Port-au-Prince que nunca tinha visto.
Outra vez as clivagens entre ricos e pobres.
Estou muito interessada nessas clivagens. Até hoje não entendo como é que quem tem meios vive tão calmamente ao lado de quem não tem nada e age como se o outro não estivesse lá. Mas é um problema tão devastador que não sabemos o que fazer e então temos de proteger-nos um pouco. O meu romance põe a questão: o que acontece quando não podemos proteger-nos e temos de nos confrontar com a questão? Essas clivagens e a violência que elas provocam estão por todo o lado. Aqui, nos Estados Unidos. Odeio quando as pessoas dizem que é um problema do Terceiro Mundo. Não é, é global.
Como chegou a esta protagonista, Mireille Duvall?
Começou com um conto, Things I Know about Fairy Tales. Era uma história muito breve, mas a personagem não me abandonava, estava sempre a pensar no que poderia acontecer se uma mulher fosse raptada em Port-au-Prince. E continuava: o que seria ainda pior do que ser raptada? E se o pai se recusasse a pagar o resgate, mas não porque não tivesse o dinheiro? Depois de o conto ter sido publicado, achei que precisava de fazer alguma coisa com aquela personagem e decidi escrever o romance porque queria contar mais dessa história, mais do antes e do depois do rapto, e explorar a família e os raptores, imaginar como seriam.
Quanto tempo passou com Mireille?
Um Verão. Escrevia umas dez horas por dia durante quase quatro meses.
Isso parece obsessivo, tratando-se do livro que é.
Foi obsessivo. Sou professora e sabia que se não aproveitasse aquele período para escrever sem ser interrompida seria complicado fazê-lo. Foi uma imersão. E escrevi, escrevi, escrevi. Foi difícil, mas escrevi o livro que queria ter escrito. Gostei de estar esse tempo comigo e isso ajudou a escrever sobre temas tão brutais. Mas houve momentos em que dizia “ó Roxane, algo de errado se passa contigo”, e tinha de parar e fazer outra coisa: caminhar, limpar a cabeça, respirar ar fresco. As partes mais negras do rapto, quando ela está a ser violada e desfeita... Eu queria ser explícita, mas tinha também de respirar e de encontrar momentos em que deixasse o leitor respirar. Eram paragens em que tentava a reposta à pergunta: como continuar a partir deste momento?
A sua personagem também corre quando tem de resolver coisas importantes.
É verdade. Eu não sou uma corredora, sou uma caminhante. Quando estou a caminhar costumo ter boas ideias. Ouço a minha música e muitas peças do puzzle começam a encaixar-se. Foi um Verão trabalhoso mas divertido.
Nessa escrita de sexo e violência estamos num território delicado onde uma palavra a mais pode comprometer tudo. Como foi?
Pensei no modo como a violência sexual é tradicionalmente escrita, muitas vezes demasiado estilizada ou limpa. Não queria isso. Decidi que iria escrever de forma explícita e não olharia para trás. Queria sim que o leitor olhasse para trás, que ficasse tão horrorizado que pousasse o livro. Queria uma reacção visceral. Não é uma coisa que se possa ler sem ser de forma visceral. Queria que o leitor tivesse o sentido do trauma. É algo que qualquer mulher pode imaginar. Mas não queria, jamais, que isso fosse ou parecesse gratuito, [que parecesse] o espectáculo da violência. Nada disso. Foi uma linha muito fina, aquela por onde tive de caminhar.
Li num artigo que neste livro havia muito de catarse pessoal.
Há. Escrever sobre stress-pós traumático e mostrar que há consequências da violência que nunca se apagarão é uma forma muito boa de arrumar a cabeça. Muitas vezes, quando vemos violência na televisão ou no cinema, parece um processo muito limpo: uma coisa que acontece mas que acaba quando saímos. Não é de todo como funciona na vida. Muitas vezes o trauma fica para sempre. Foi muito catártico dizer que muitas vezes acontecem coisas muito más e que elas não te vão deixar nunca.
Há um antes e depois muito marcados. É um antes e depois pessoal, mas também colectivo: o trauma do rapto e o trauma de um terramoto. Uma pessoa e um país.
Sim, ainda que o terramoto colectivo não tenha sido o tema, mas ele está lá porque seria impossível não estar num romance como este em que a cronologia passa pela cronologia do terramoto. Sobre o depois dela, ela não tem escolha. Tem um instinto de sobrevivência e ama a família que a faz tentar um modo de regressar a si mesma. Demora, mas ela quer viver. Ela seria uma sobrevivente, isso sempre foi muito claro para mim. É uma mulher forte e eu queria explorar essa valentia, mostrar também que, mesmo que sejamos fortes, a fraqueza visita-nos. Por isso muitas vezes ela tomas as decisões erradas.
Ela diz de si mesma que é uma mulher difícil de amar.
Eu amo-a [risos], talvez ser alguém que baseei em mim. Acho-a fácil de amar. Isto é como eu sou, é pegar ou largar. Felizmente ela tem alguém que lhe pegou, que a ama. Ele também não é perfeito. Na minha cabeça eles funcionam como um conjunto.
Fala de Michael, o marido americano que parece perfeito.
Queria que parecesse. A minha escrita é negra, mas gosto de contos de fadas. E ele é uma espécie de príncipe perfeito, mas não há um guia de comportamento sobre o que fazer quando a nossa mulher for raptada. Ele erra. Eu queria um final feliz, mas a felicidade é mesmo muito mais difícil de escrever, pelo que se pode ver pela oferta ou na ficção mais popular. No início, o livro era muito mais negro. Depois a minha editora disse-me que o leitor estava numa jornada muito dura com a Mireille. O que é que eu fazia? Pensei muito e decidi que este era um livro sobre esperança e quis escrever o fim tão esperançoso quanto possível, sem negar a dificuldade daquilo por que ela passou.
E escolheu uma linguagem muito clara.
Sim, queria escrever com frases muito curtas e cruas, tentando captar o seu estado de espírito. Não queria que houvesse ambiguidade no que eu estava a dizer. Queria dizer mesmo o que se estava a passar, sem jogos ou mensagem subliminares. Tentei escrever da forma mais clara que consegui.
Também na descrição dos lugares. “Muitas vezes, o Aeroporto Internacional de Miami parece-se com Port-au-Prince: cheio de gente, quente e sempre em obras, embora nada dê a impressão de mudar. Toda a gente anda irritadiça, suada e a falar demasiado alto, muitas vezes a tentar levar demasiado para algum país empobrecido onde as pessoas têm demasiadas carências”; ou “O Aeroporto de Miami era um sítio horrível, concluiu, sempre a mandar pessoas para sítios de sofrimento ou a recebê-las de sítios desses.” Esta passagem vem de experiência pessoal?
Sim. Quando eu era criança houve um tempo em que vivíamos no Nebraska e íamos para Miami apanhar o avião para Port-au-Prince. Ficava sempre espantada com a quantidade de pessoas que ia e vinha para a América do Sul, para as Caraíbas. Chegavam e partiam com malas gigantes, malas que eram maiores do que eu os meus irmãos. Mais tarde entendi o que eram aquelas malas: levamos o que temos para aqueles que não têm. E quis captar aquele aeroporto como um lugar de transição, com as pessoas a levarem o pouco que têm para os que têm ainda menos.
Este romance saiu quase em simultâneo com um livro de ensaios sobre o seu modo feminista de viver e de pensar. E é impossível não estabelecer algumas ligações entre ambos na denúncia de abusos, de preconceito. Chamou-lhe Bad Feminist e diz que escolheu o adjectivo bad (mau) porque se falha enquanto ser humano também falha enquanto feminista. Quando diz que é feminista, o que é que quer dizer?
Que as mulheres são iguais aos homens e merecemos ter o mesmo papel no mundo. Livres de assédio sexual, sem legislação sobre os nossos corpos e sobre as nossas opções reprodutivas, igualmente pagas por um trabalho igual... Nos Estados Unidos, por cada dólar que um homem ganha, uma mulher branca ganha em média 0,77. Se for uma mulher negra, a média baixa para 0,60 dólares. Se for uma asiática, sobe para 0,97 dólares. Isto é agora, na América. Tenho de continuar a lutar por estas coisas e de esperar que algo mude. Muita gente ouve a palavra feminista e ouve raiva. E muitos homens sentem-se culpados porque sentem que devem pedir desculpas pelo facto de terem nascido homens. Ninguém lhes pede para pedir desculpas. É uma palavra muito provocadora por alguma razão.
Escreve crítica. Ser escritor profissional e leitor profissional, uma coisa ajuda na outra?
Não sei. Mas é uma actividade que me toma tempo. Leio e sento-me com as palavras que li e penso sobre o que gostaria de dizer com o que acabei de ler, sobre como fazê-lo de forma a que seja útil para o leitor. Tento distanciar-me do crítico tradicional que diz “este é um livro bom e aqui está a razão pela qual acho isso”. Quero um ângulo mais interessante, por exemplo tentar enquadrá-lo um contexto social, ou numa história mais pessoal: “adoro ovos e este livro sobre ovos é muito bom”. A academia é importante e as teorias e os princípios da academia podem ser aplicados numa crítica que consiga servir os leitores e ser apelativa. Não é vergonha. Mostrar que se tem um vocabulário académico só prova que se é capaz de memorizar palavras. Usem bem essas palavras e então fico impressionada. Há muita discussão agora acerca do papel da crítica. Rio-me. Não tenho qualquer interesse nessa discussão. Há mais quem queira falar disso, eu vou continuar a fazer o que estou a fazer. Até posso entender que esses debates intelectuais sejam muito interessantes para algumas pessoas, mas aborrecem-me.
Até que ponto a escrita se pode ensinar?
Não se ensina talento natural, mas ensinam-se regras básicas e procedimentos. Com os meus alunos, lemos muito e escrevemos muito. A minha função é dizer-lhes que têm de trabalhar, que não há outro modo, e se há é a excepção. Tento atraí-los lançando-lhes desafios e eles parecem gostar. Tento mostrar uma variedade de narrativas e de estilos, dou-lhes ficção contemporânea. Fico sempre surpreendida quando me dizem que não lêem ficção contemporânea.
O seu romance foi publicado no Haiti?
Não. A França não o publicou e estas coisas vêm de lá. Há versões em muitos países, mas não em França.
Porquê?
Complexo de culpa. Colonizadores [gargalhada]! Não sei porquê, a edição em França é complexa. Mas saiu na Turquia, e isso foi uma surpresa boa. Sei que alguns haitianos já leram o livro. A primeira pessoa a quem o enviei foi Edwidge Danticat. Se ela não gostasse, não havia modo de eu ser publicada. Ela ajudou-me com o crioulo. Gostou do romance e isso significou muito para mim. Ela é “a” escritora haitiana. O meu principal receio era o que poderiam pensar os haitianos, mas até agora os que leram gostaram.