O que a estrada nos faz

Admitamo-lo, todos nos tornamos australopitecos quando as nossas rodas pisam o asfalto

Foto
Eric Thayer/Reuters

Não existe qualquer circunstância no nosso dia-a-dia que se equipare aos minutos em que andamos de volante na mão. Nunca, em qualquer altura, é aceitável que se insulte a moça da caixa do supermercado por fazer aumentar a fila com o seu vagar exagerado, nem se compreende que se atirem ao ar palavrões desgovernados só porque alguém nos passou à frente no passeio. Mas os automóveis, armados em casulos à prova de bala, parecem trazer à tona a maior agressividade humana dos tempos modernos.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Não existe qualquer circunstância no nosso dia-a-dia que se equipare aos minutos em que andamos de volante na mão. Nunca, em qualquer altura, é aceitável que se insulte a moça da caixa do supermercado por fazer aumentar a fila com o seu vagar exagerado, nem se compreende que se atirem ao ar palavrões desgovernados só porque alguém nos passou à frente no passeio. Mas os automóveis, armados em casulos à prova de bala, parecem trazer à tona a maior agressividade humana dos tempos modernos.

A estrada está cheia de personagens — ora são os mitras que julgam que o acelerador providencia status social, ora são os taxistas armados em Colin-McRae-encyclopedia-Britannica-chico-esperto desta vida, ora são os galãs senhoriais que comprovam a teoria segundo a qual o tamanho do automóvel é proporcionalmente inverso à dimensão do que se traz dentro das cuecas. De todo o modo — admitamo-lo —, todos nos tornamos australopitecos quando as nossas rodas pisam o asfalto.

Logo para começar, a buzina é a moca dos tempos modernos. Com ela, podemos berrar, gritar, insultar tudo o que mexa. Fosse Marshall McLuhan vivo, e diria que a buzina é uma extensão do nosso punho fechado atirado às fuças de qualquer interlocutor. Mais: a buzina é também uma forma de piropo. Muitos são os grunhos que buzinam na direcção de uma giraça qualquer, num comportamento que me faz uma certa confusão. Homens que apitam às mulheres, digam-me cá: alguma delas já anotou a vossa matrícula e foi ao registo procurar o vosso contacto telefónico para marcarem um jantar romântico ou uma sessão de sexo louco num motel das redondezas?

Mas apitar é mais que isto. Imagine-se a situação: um automobilista tenta sair do seu lugar de estacionamento, entrando numa rua movimentada. Incontáveis são aqueles que, não querendo a mínima perturbação à sua viagem de dois quilómetros, buzinam, como quem diz, "olha aí que eu vou passar". Só se tira uma conclusão: a buzina é o novo travão. Também não deixa de ser um espanto, nestas coisas do automobilismo corriqueiro, que a Humanidade esteja prestes a colocar um dos seus espécimes em Marte e, mesmo assim, pouca gente saiba fazer uso conveniente de um pisca.

Além destas comuns faltas de civismo, a selva, perdão, a estrada também tem pessoas que são idiotas de propósito. São os que ultrapassam a julgar que o último a chegar àquela rotunda é um ovo podre, são os que esbracejam furiosos feitos putos mimados por haver gente que gosta de cumprir os limites de velocidade, enfim. Um manancial — já para não falar dos energúmenos que estacionam em lugares indevidos.

A estrada é uma tentativa de civilização: por mais liso que esteja o alcatrão, hão-de aparecer sempre meia dúzia de selvagens esgravatando por mais uma lasca de canibalismo.