Horários de trabalho actuais são uma forma de "nova escravatura"
O que o surpreendeu mais nos resultados deste estudo?
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
O que o surpreendeu mais nos resultados deste estudo?
A carga horária de alguns médicos é espantosa. Nos internos, são 19% os que trabalham mais do que 60 horas por semana. Actualmente, em várias actividades profissionais, há a crença de que prolongar o horário e a permanência no local de trabalho corresponde a um maior compromisso e produtividade, mas esta ideia é errada. Isto é uma nova escravatura. Acho que o horário deve ser diversificado, não exclusivamente assistencial, e que o limite devem ser as 40 horas semanais, mas o ideal seriam as 35 horas.
Por que motivo é que neste trabalho foi analisada também a empatia na relação médico-doente?
A empatia na relação médico-doente tem consequências para o próprio, mas repercute-se também na qualidade do serviço. A disponibilidade para acolher o sofrimento do doente fica comprometida com o excesso da carga horária. Há um aumento do erro, isso está demonstrado, o número de queixas e a conflitualidade têm vindo a aumentar.
Este desgaste extremo pode ser prevenido e tratado?
O burnout pode ser prevenido e tratado num certo sentido, com medidas a nível individual e definidas pelas organizações. Como? Criando formas de as pessoas participarem em decisões, reconhecendo devidamente o valor do trabalho e fazendo com as remunerações sejam adequadas e alocadas à produtividade.
Mas isso não é o contrário do que está a verificar-se nas unidades de saúde?
O que acontece hoje é que se exerce uma grande pressão em termos de números, de quantificação de produtividade, de carga horária. Os números tomaram conta da gestão hospitalar e da medicina e a qualidade acaba por ser posta em causa. Devido a à sangria dos recursos humanos, com as reformas antecipadas e a emigração, quem está trabalha mais.Pede-se a muita gente que preencha buracos, falhas. Mas isto é um mito. Este estudo comprova que médicos com carga horária mais elevada são os que estão em maior risco de burnout. E o burnout aumenta o absentismo e faz diminuir a produtividade.
O burnout não é um exclusivo da profissão médica, apesar de esta ser uma das mais afectadas. Nos últimos dias, tem sido muito mediatizada a situação dos técnicos de emergência médica, que dizem chegar a trabalhar mais de 20 dias seguidos...
Acho que é isso uma violência. Só quem desconhece a natureza humana pode aceitar e permitir uma coisa destas. Todos nós temos um limite físico e psicológico, e, se os ultrapassarmos, há consequências e isso reflecte-se também no atendimento aos doentes. Este problema não está a ser valorizado, não aparece no discurso dos responsáveis políticos, porque não está quantificado. Um dos aspectos importantes deste estudo é qem demonstrar que é possível quantificar estes fenómenos.
Como consequência do burnout, há profissionais que começam a pensar em desistir da profissão, que emigram. Por que é que isso acontece?
A falta de valorização profissional origina sentimentos de impotência e de fracasso. A pessoa anda num estado de maior stress e de conflitualidade e podem surgir manifestações psicossomáticas, além de dependência e abuso de substâncias. Em situações-limite isto pode levar ao aparecimento de pensamentos suicidas. Há todo um percurso para um quadro depressivo, ansioso e para doenças não só físicas mas também psiquiátricas. Estas pessoas estão em risco. Uma pessoa que trabalha imenso, faz imensos turnos, a determinada altura, para se manter acordada, recorre à cafeína, a medicamentos, há alterações gastrointestinais, úlceras...
Na prática, isto significa que os profissionais que têm a responsabilidade de tratar doentes acabam por ficar doentes?
Ficam doentes. O culminar do burnout é a doença física e psíquica. Até valia a pena perguntarmos: afinal de contas, quem cuida dos cuidadores?
Não se ganhou nada, então, com o aumento das 35 para as 40 horas semanais na Função Pública?
Não se ganhou nada. Do meu ponto de vista, perdeu-se. Isto não tem sentido, é uma medida anti-natalidade. Uma das formas de incentivar a natalidade passa por diminuir a carga horária no trabalho. O que este trabalho prova também, curiosamente, é que ter filhos funciona como um factor protector para o burnout. Mas isto dava outro estudo….