Máscaras gregas
O braço-de-ferro em curso não é sobre finanças, é de facto sobre política. É política pura e dura.
A ministra das Finanças voltou a fazê-lo. A propósito de um pagamento que Portugal irá antecipar ao FMI, Maria Luís Albuquerque voltou a atacar directamente a Grécia. "Enquanto nós antecipamos pagamentos, outros adiam-nos..." – atirou. Além do mau gosto diplomático de atacar um país-parceiro de Portugal – na União Europeia e na NATO – o governo dos cofres cheios parece não entender as graves consequências para Portugal de um colapso da Grécia e da sua saída do euro.
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A ministra das Finanças voltou a fazê-lo. A propósito de um pagamento que Portugal irá antecipar ao FMI, Maria Luís Albuquerque voltou a atacar directamente a Grécia. "Enquanto nós antecipamos pagamentos, outros adiam-nos..." – atirou. Além do mau gosto diplomático de atacar um país-parceiro de Portugal – na União Europeia e na NATO – o governo dos cofres cheios parece não entender as graves consequências para Portugal de um colapso da Grécia e da sua saída do euro.
O ódio a Atenas torce o pescoço à realidade: caso os mercados financeiros voltassem a entrar em ebulição na zona euro, o próximo alvo seria inevitavelmente Portugal. A visão mirífica das taxas de juro "históricamente baixas", ou negativas, faz esquecer as causas efectivas do retorno de Portugal aos mercados. Uma abertura fácil oferecida pelo programa de compra de dívida do BCE, iniciado há dois anos e reforçado com o chamado "canhão-Draghi" – o programa de "quantitive easing" da zona euro.
Pode o governo português sonhar com amanhãs que cantam e com uma zona euro livre do tumor grego. Contudo, a verdade é crua: o ‘rating’ da República Portuguesa, atribuído pelas três principais agências de notação mundiais – que de facto comandam os mecanismos de mercado – mantém-se no nível lixo. Os mercados conhecem bem a realidade. O crédito de Portugal foi salvo pela asa do BCE. Mas é óbvio que essa protecção não poderá durar sempre, nem muito mais tempo.
De facto, os programas de compra de dívida do BCE continuam a ser contestados pela Alemanha e pelos países da Europa do Norte. Responsáveis desses países, liderados pelo Bundesbank, forçaram o BCE a recusar desde 11 de Fevereiro último títulos soberanos da Grécia como garantia colateral. E puseram desde então a funcionar gota-a-gota o mecanismo de emergência do BCE, por forma a secar rápida e totalmente os cofres de Atenas.
Uma nova crise nos mercados provocada pela eventual saída da Grécia do euro seria o pretexto ideal para o BCE mudar de políticas, deixando de novo Portugal à mercê da especulação financeira e do ‘rating’ lixo.
Há algo de irracional na fúria portuguesa contra a Grécia. E revelam-se contornos de um cínico jogo de máscaras. Ao contrário do que afirmou a ministra das Finanças, no afã populista de atacar os gregos, Atenas não adiou pagamentos. Usou uma regra do FMI para fazer o ‘bundling’ dos pagamentos de Junho. Ou seja, agregar num só cheque os créditos do Fundo que se vencem até ao final do mês. É uma norma do FMI que o permite. Outros países-membros já a usaram.
Porém, a onda que o governo português ajudou a levantar na generalidade dos media é que Atenas teria falhado um pagamento no dia 5 de Junho. A ausência de rigor em relação à Grécia – e às finanças gregas – não é apenas um fenómeno português, é um vírus espalhado por quase toda a Imprensa global.
Há uma visão trágica que é repetida à exaustão. Os comentários afectos às instituições financeiras e aos governos conservadores da UE mandam cortar sambenitos e conduzir à fogueira os dirigentes gregos por duas magnas razões. Primeira: não se renderem a imposições externas destinadas a estropiar ainda mais a sociedade e a economia gregas. Segunda: pretenderiam receber da troika uma tranche-extra de 7.200 milhões de euros.
A verdade é que essa tranche reclamada pelos gregos não é extra, faz parte do último resgate. Sendo que inclui 3.500 milhões de euros que o FMI devia ter entregue à Grécia em 2014. E um pagamento a Atenas de 1.800 milhões de euros do Fundo Europeu de Estabilidade Financeira, que também está por fazer. E ainda um valor que o BCE tem vindo a reter em Frankfurt, após ter-se comprometido a devolvê-lo à Grécia: 1.900 milhões de euros em lucros obtidos pelos bancos do Eurosistema – só durante o ano de 2014 – com obrigações gregas.
Tudo somado, chega-se aos famosos 7.200 milhões de euros. Na verdade, um montante que o governo grego tem a haver das instituições. E é aqui que, em rigor, se deve falar de atraso. Não um atraso ocasional, mas sim, um atraso estratégico do FMI, Comissão Europeia e BCE nos pagamentos a Atenas.
Nada disto é explicado publicamente pelos altos responsáveis da UE. O paradigma é o da condenação preventiva da Grécia e liquidação do balanço de Atenas.
Existem na UE vários países que ameaçam rebentar pelas costuras se não for corrigido rapidamente o erro austeritário e retomada a trajectória original da construção europeia: a ‘pax’ fundada na correção de assimetrias, na coesão económico-social, no desenvolvimento, na diminuição de desigualdades, na solidariedade entre Estados.
Cresce um temor surdo que outros Estados deprimidos possam, a partir do exemplo grego, exigir maior flexibilidade e rejeitar certas imposições dos credores.
Por isso, o braço-de-ferro com Atenas não é sobre haver umas décimas a mais ou a menos de excedente primário, ou sobre as taxas de IVA, ou sequer sobre a extensão dos cortes nas pensões de reforma. Essa é a narrativa oficial. Mas o braço-de-ferro em curso não é sobre finanças, é de facto sobre política. É política pura e dura.
O sistema financeiro e os governos neoliberais europeus apostaram em derrotar a Grécia e o seu actual governo eleito. Não o tendo conseguido nas urnas, tentaram exaurir as finanças gregas, fazer capitular o executivo e forçar a demissão de Tsipras. Jogos de máscaras decorrem há quase cinco meses em diversos cenários. A Alemanha parece vacilar agora em assumir os custos da expulsão da Grécia do euro. Apesar de toda a crispação formal, parece existir espaço para desenhar uma fórmula de recurso que permita salvar a face alemã e dos países da linha dura, sem humilhar a Grécia. Se assim for o euro, os gregos e, principalmente os europeus, terão ganho esta batalha.
Jornalista