Ninguém lhes tira a rua
Numa zona de Lisboa onde a invasão turística entrou em aceleração, a presença de companhias como a RE.AL e a Cão Solteiro garante uma vitalidade cultural que de outra forma não existiria. Pela primeira vez, não receberam apoio da DGArtes. Fomos ter com eles à Rua do Poço dos Negros.
Passa pouco das 11 da manhã, uma caixa de esferovite com chocos gelatinosos repousa sobre o balcão, mas, para já, são dois cafés, por favor.
“Então já não fala a ninguém?”, pergunta uma voz vinda do aquário que é a cozinha.
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Passa pouco das 11 da manhã, uma caixa de esferovite com chocos gelatinosos repousa sobre o balcão, mas, para já, são dois cafés, por favor.
“Então já não fala a ninguém?”, pergunta uma voz vinda do aquário que é a cozinha.
“Vocês estão sempre tão atarefadas”, defende-se João Fiadeiro.
“Nem seria o Zapata se não fosse assim”, diz a cozinheira.
O coreógrafo conhece o Zapata do tempo em que o Zapata era só um balcão e três mesas – “era mesmo tasca-tasca” –, antes do TripAdvisor, antes do Airbnb, antes da invasão de turistas, antes dos prédios devolutos do bairro estarem a ser transformados em hotéis de cinco estrelas.
Há dez anos, a companhia de dança contemporânea de Fiadeiro instalou-se num prédio a precisar de obras na Rua do Poço dos Negros, 30 metros abaixo do Zapata. Era a primeira vez que a RE.AL passava a ter um espaço a que podia chamar seu, depois de em 2002 a companhia ter sido expulsa do Espaço A Capital, no Bairro Alto, juntamente com os Artistas Unidos. Na década anterior, tinha partilhado o Centro Cultural da Malaposta com o grupo de teatro residente e o Espaço Ginjal com o Olho.
“Depois de 15 anos de uma programação mais nómada, a passar de espaço em espaço, e a perder muito material – no Ginjal, metade do meu arquivo de vídeo acabou a boiar no Tejo porque o rio subiu –, havia uma sensação de que não conseguíamos acumular, preservar, inscrever”, diz João Fiadeiro, 50. “No Atelier Real é a primeira vez que somos nós que acolhemos, não somos acolhidos. Entrámos para aqui num momento em que achámos que tínhamos de criar condições para haver uma continuidade.”
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A RE.AL negociou um contrato de arrendamento do novo espaço – um antigo depósito dos Armazéns Conde Barão – por 15 anos. Entrevistado para um programa de divulgação cultural da SIC Notícias em 2005, quando acabara de se mudar para a Rua do Poço dos Negros, Fiadeiro antecipa um futuro mais estável e sustentado para a companhia. “Agora é que a gente vai começar. A casa, o espaço vai dar-nos a segurança de que precisávamos.”
O programa era patrocinado pelo Instituto das Artes, antecessor da actual Direcção-Geral das Artes (DGArtes), organismo do Estado responsável pelo financiamento público das artes. Há duas semanas, a DGArtes divulgou os resultados do último concurso de apoios anuais e bienais, correspondente ao período de 2015 e 2016, e pela primeira vez companhias como a RE.AL e o Teatro Cão Solteiro viram o seu financiamento ser reduzido a zeros.
Também pela primeira vez num concurso destes, a DGArtes decidiu dispensar um mecanismo legal que permitia aos candidatos contra-argumentarem e solicitarem uma revisão do seu processo – a chamada “audiência de interessados” –, tornando os resultados definitivos. Estruturas como o Atelier Real, que já se encontravam numa situação de esforço financeiro para sustentar a sua actividade regular – em virtude do enorme atraso do concurso, que abriu quando as verbas deveriam estar a ser atribuídas aos contemplados – viram-se num ponto de não-retorno.
Nos últimos dias, João Fiadeiro teve de dispensar pessoas e comunicar a artistas interessados que o programa de residências gratuitas no Atelier Real chegou ao fim. Dois dos cinco quartos que até agora se destinavam a acolher artistas vão passar a ser alugados numa lógica mais comercial. Duas salas do edifício estão disponíveis para aluguer a partir de Julho – desde Setembro que uma outra sala do espaço está a ser alugada por quatro designers. “Neste momento, o que precisamos é de alugar as salas, não é de uma programação”, diz Fiadeiro. A RE.AL manterá um escritório a funcionar numa pequena sala. Uma outra, que actualmente serve de arquivo, vai ser esvaziada para receber os novos inquilinos. O estúdio e três quartos disponíveis para residências manterão “um pequeno balão de oxigénio”.
Na noite anterior, João Fiadeiro leu poemas de José Tolentino Mendonça e Manuel Zimbro em voz alta – um gladiador de costas para a rua, com o eléctrico 28 a passar rente. Como a t-shirt preta de Fiadeiro, que tinha impressa a frase EU SOU REAL, o momento era simbólico: as pessoas que ali estavam sabiam que estavam a assistir ao fim de qualquer coisa. Era a primeira sessão da Poesia na RE.AL desde o anúncio dos resultados do concurso da DGArtes e tinha subitamente sido anunciada como a penúltima sessão deste ciclo de leituras públicas que o poeta e recitador Nuno Moura vinha organizando no Bar da Real desde Outubro do ano passado, sempre com convidados diferentes.
Fiadeiro leu dois poemas surpreendentemente cândidos, telúricos. A seguir, sem dramatismos nem pressa, comentou os resultados do concurso da DGArtes. “Ainda estamos em estado de choque. Embora seja tentador pensar em teses de conspiração, eu acho que não. O que existe é um desleixo e uma desatenção. Uma insensibilidade perante aquilo que acontece nas entrelinhas, nos lugares que não estão necessariamente a exibir e a entreter. Trabalhamos no silêncio. Trabalhamos entre as certezas. Sem nunca nos deixarmos apanhar pela ilusão de que estamos no caminho certo. É um lugar com que o poder tem muitas dificuldades em se relacionar.”
Depois de anos a abrir-se ao exterior, a olhar para fora, seja acolhendo outros artistas e projectos, seja dinamizando uma zona da cidade em termos de programação cultural, a RE.AL vê-se agora sem outra opção senão fechar-se sobre si própria. “Temos de voltar ao nosso centro, temos de voltar à dança. Se nos comem aí, se nos impedem de fazer isso, então ganham”, disse Fiadeiro. Uma nova criação, eloquentemente intitulada O Que Fazer Daqui Para Trás, estreia em Novembro no Teatro Maria Matos.
Pela primeira vez, a companhia RE.AL e o Atelier Real concorreram enquanto entidades separadas, até porque cada uma tem “uma dimensão muito própria”: a RE.AL é um colectivo de dança, o atelier é uma estrutura de acolhimento artístico e programação que, “de dança tem pouco”. “A verdade é que nunca esperei que as duas não fossem apoiadas”, admite Fiadeiro. A companhia tem mais recursos do que o atelier, diz, graças às co-produções e à visibilidade do seu trabalho e método de improvisação (Composição em Tempo Real) que garantem uma intensa agenda de workshops internacionais.
“Tenho um dossier pronto para concorrer aos [apoios] pontuais mas não vou apresentar. O meu primeiro reflexo foi: preciso de dinheiro para fazer este projecto. Mas estaria a concorrer com pessoas que todos os anos me pedem cartas para serem apoiados – artistas emergentes para os quais os pontuais foram criados, que estão fora de um circuito de continuidade. Eu pensava que estava num circuito de continuidade”, diz Fiadeiro. “E depois lembraram-me que quando estreasse um espectáculo teria de ter o logótipo da DGArtes e frase ‘Projecto apoiado pela DGArtes’ na folha de sala. Mas não estamos a ser apoiados pela DGArtes; estamos a ser destruídos pela DGArtes.” O coreógrafo pondera avançar com uma acção judicial contra o Estado, mas ainda não decidiu se o vai fazer. “Pode criar jurisprudência que venha a ser útil para mudar o sistema. O problema é saber se ainda tenho energia para essa luta interminável.”
O Bar da Real, aberto em Setembro do ano passado no rés-do-chão do edifício, corre o risco de encerrar, a menos que a concessão do espaço seja transferida para terceiros. Bastaria uma proposta voluntariosa que se dispusesse a cobrir a renda de 500 euros mensais, anunciou Fiadeiro no final da sessão de poesia que entretanto se convertera numa reunião deliberativa. Natxo Checa, fundador e director da Galeria Zé dos Bois, lembrou que quando a ZdB abriu, em 1994, um grupo de 14 pessoas assumiu o compromisso de contribuir com 50 euros por mês. “Era a garantia de podíamos subsistir sem a preocupação da renda.”
E se, como notou alguém, isso for visto como uma prova de que as estruturas culturais conseguem trabalhar sem apoios públicos?
“Vou dizer-te uma coisa muito sincera”, diz Natxo Checa ao Ípsilon, mais tarde. “As pessoas pensam que a música da ZdB é auto-sustentável. Não é. Nada de qualidade é auto-sustentável. A não ser que seja massivo. Este tipo de cultura que fazemos é crítica. É para se pensar, não é para entreter.”
Apesar da designação, o Bar da Real tem sido menos um bar do que um espaço com uma agenda regular de concertos, performances, leituras de poesia, lançamentos de livros, exposições e conferências, que muitas vezes transborda para a rua. O que não passou despercebido à população local. Quando Fiadeiro informa Adriano Filipe, proprietário da Fotografia Triunfo, uma loja ao lado, de que vão ter de deixar o bar, a sua reacção é: “Ai é? Isso é que é pena. Havia aqui muitos jovens...”
O senhor Adriano assistiu ao espectáculo que Fiadeiro apresentou em Novembro, o tal que mencionava o polvo à lagareiro do Zapata e “o telão de paisagem ajardinada” que ocasionalmente é resgatado para poses no estúdio da Fotografia Triunfo.
“Qualquer trabalho que envolva uma comunidade local e um cruzamento de mundos que estão tradicionalmente separados precisa de duração, de confiança”, nota Fiadeiro.
“Não se pode dizer que existe reciprocidade. Eu vou mais vezes ao Zapata do que o Zapata vai à RE.AL.”
A RE.AL não está sozinha. A proximidade com outras estruturas, como o Teatro Cão Solteiro, no número 120 da Rua do Poço dos Negros, e o Teatro Praga, no número 6 da Rua das Gaivotas, deu forma a uma comunidade artística que se vê como um contrapeso ao êxodo e gentrificação deste triângulo entre a Assembleia da República, o Bairro Alto e a Bica. As marcas de invasão turística são cada vez mais galopantes. O aluguer temporário de apartamentos a estrangeiros generalizou-se. “São pessoas que estão aqui dois, três dias. Franceses, espanhóis, alemães. É um sai e entra, sai e entra, não se conhece ninguém”, diz Adriano Filipe.
O comércio tradicional e de estrutura familiar tem vindo a desaparecer até ao ponto da quase extinção. Em 2007, o Teatro Cão Solteiro instalou-se no espaço de uma antiga loja de roupa, com montra para a rua e grade de correr. Suprema ironia, para uma companhia com este nome: dois gatos habitam a montra em permanência.
Durante muito tempo, a Cão Solteiro resistiu à ideia de ter um espaço próprio. “
“Interessavam-nos os espaços alternativos. Muito por influência do Nuno Carinhas, com quem trabalhámos muito, a arquitectura dos espaços teve sempre uma grande importância para nós”, diz Paula Sá Nogueira, co-fundadora e actriz da companhia que ainda hoje mantém com a irmã, Mariana, cenógrafa. “O nosso trabalho era site-specific. Interessava-nos trabalhar dentro de um espaço sem aniquilá-lo. O espaço era determinante não só para a cenografia como para a construção do espectáculo.”
A mudança para os 45 metros quadrados na Poço dos Negros alterou a maneira de pensar os espectáculos. “Vínhamos de espaços gigantes e até de privilégio. O Armazém do Ferro tinha 1000 metros! Vimo-nos aqui numa coisa que parecia uma caixa de fósforos. Começámos a trabalhar em espectáculos que eram muito mais próximos do público. Se já gostávamos de representação detalhada isso passou a ser ainda maior.”
Curiosamente, foi depois dessa mudança que a companhia, que sempre recusara espaços convencionais, passou a apresentar-se em palco. “Aqui fazemos espectáculos para 20 pessoas, mas também fazemos espectáculos que enchem a Culturgest”, diz Paula Sá Nogueira. “Na verdade, não escolhemos o palco à italiana, mas as parcerias vêm com palco à italiana”, nota Mariana.
A maior parte dos espectáculos apresentados na loja são intransponíveis para um palco, como aquele em que era obrigatório o consumo de cerveja (Enciclopédia: X).
“Uma das paredes da loja é uma montra e dá para a rua. Quer queiramos, quer não, a rua começou a interferir nos espectáculos.” Em 2008 apresentaram Aqui Também Acabou, onde se expunham os sintomas de um comércio tradicional em agonia, e cujo título vinha de um comentário feito por uma senhora diante da montra da loja: “Olha, aqui também acabou!”
Enquanto esta conversa decorre, vão chegando cada vez mais pessoas à loja. Actores e criadores de estruturas emergentes – Medalha d’Ouro, Plataforma 285 -, entre outros, que se auto-denominam “filhos desta companhia”.
“Temos uma longa tradição de acolher companhias no nosso espaço, ceder materiais, etc”, diz Paula Sá Nogueira. “No fundo, somos uma espécie de prolongamento da escola de teatro, dando os meios e a possibilidade de fazer.” E é isso que, com o anúncio dos resultados do concurso da DGArtes, poderá ter de ficar em stand-by.
“Há poucos sítios fora de Lisboa onde isto podia acontecer, cederem-nos espaço sem fazer perguntas”, diz Raimundo Cosme, da Plataforma 285. “O que nós fazemos deve-se à Cão Solteiro. Isto é que é serviço público.”