A queda de um homem
Bem-Vindo a Nova Iorque, de Abel Ferrara, sai em DVD. O filme também é de Gérard Depardieu, que poderá não ser o maior actor do mundo mas aqui se converte no actor mais corajoso do mundo.
É Bem-Vindo a Nova Iorque, o filme inspirado nas desventuras de Dominique Strauss-Kahn (DSK), director do FMI, putativo candidato às presidenciais francesas, cuja reputação implodiu de um dia para o outro, na sequência de uma acusação de violação de uma empregada de um hotel novaiorquino, a que se seguiram as revelações de que, na sua vida, o “deboche” e os abusos eram um condimento quase quotidiano. Embora o filme tome as suas distâncias, Ferrara nunca escondeu o “modelo”, o que foi suficiente para entrar em imbróglios jurídicos (com o próprio DSK) e para que se tenham levantado uma série de “barreiras invisíveis” à circulação internacional do filme. Em Portugal, por exemplo, ficou por estrear comercialmente em sala – é a primeira ficção de Ferrara sem distribuição portuguesa desde os anos 80... - mas aparece agora em edição DVD. Em boa hora, ainda assim: é um excelente filme, que facilmente entraria num “top 10” dos melhores de 2014.
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É Bem-Vindo a Nova Iorque, o filme inspirado nas desventuras de Dominique Strauss-Kahn (DSK), director do FMI, putativo candidato às presidenciais francesas, cuja reputação implodiu de um dia para o outro, na sequência de uma acusação de violação de uma empregada de um hotel novaiorquino, a que se seguiram as revelações de que, na sua vida, o “deboche” e os abusos eram um condimento quase quotidiano. Embora o filme tome as suas distâncias, Ferrara nunca escondeu o “modelo”, o que foi suficiente para entrar em imbróglios jurídicos (com o próprio DSK) e para que se tenham levantado uma série de “barreiras invisíveis” à circulação internacional do filme. Em Portugal, por exemplo, ficou por estrear comercialmente em sala – é a primeira ficção de Ferrara sem distribuição portuguesa desde os anos 80... - mas aparece agora em edição DVD. Em boa hora, ainda assim: é um excelente filme, que facilmente entraria num “top 10” dos melhores de 2014.
Mas é preciso esquecer Strauss-Kahn, porque Bem-Vindo a Nova Iorque não é um filme de “imprensa de escândalos”, não contém “revelações”, não tem nenhuma verdade factual a propor, apenas artística e ideológica. Ideológica porque, na visão de Ferrara, entre a cúpula da alta finança e o território do lumpen tão habitual nos seus filmes a diferença não é de monta: são o espelho um do outro (as cenas de encontros “oficiais”, as “negociações” podiam vir tal e qual de um filme de gangstersmanhosos), o topo do mundo e o submundo tocam-se, vivem nos mesmos corredores esconsos e quartos mal iluminados (o hotel de luxo é filmado como um subterrâneo), e estão em contacto permanente – contacto literal (e sexual) personificado pelas prostitutas que o protagonista recebe na sua suite.
Dizíamos: esquecer DSK, e ficar com o seu duplo, o Devereux a que Gérard Depardieu dá corpo, e a expressão nunca foi tão apropriada. O filme também é dele, que poderá não ser o maior actor do mundo mas aqui se converte no actor mais corajoso do mundo – como Harvey Keitel no Tenente sem Lei que Ferrara assinou há vinte e tal anos, e que Bem Vindo a Nova Iorque, de várias maneiras, tanto faz lembrar. Depois de uma cena introdutória destinada a baralhar as pistas (uma conferência de imprensa em que não é claro se Depardieu faz de si próprio ou se já é Devereux), tudo se concentra naquele ponto de encontro obrigatório entre actor e personagem: o corpo, aquela massa de carne disforme que é o corpanzil de Gérard. As cenas de sexo são em primeiro lugar esse choque, entre o corpo velho (e “lucianfreudesco”, como alguém lembrou) de Depardieu e a juventude escultural das suas parceiras, em cenas puxadas ao limite da suportabilidade, cheias de roncos e resfolegares (na banda de som, a grande protagonista do filme é a respiração de Gérard) mas que encontram nesse limite (como nalgumas coisas de Pasolini, objecto seguinte de Ferrara) o seu sentido: não estamos muito longe da “decadência do império romano”, do tu-cá-tu-lá entre as orgias e as grandes decisões político-económicas.
É preciso passar por aí para que depois se sinta bem a descida aos infernos, a fabulosa sequência da prisão, onde Ferrara se demora a dar todos os procedimentos da praxe policial, a humilhação, a marcha pelos corredores (sempre cheia de roncos ofegantes), os rituais da detenção e do interrogatório, o despir e o vestir. Mas nessa espécie de franqueza, de honestidade, com que se filma um homem caído do seu píncaro revela-se o ethos de Ferrara: pode detestar o correspondente real do seu Devereux, mas Devereux é a sua personagem, e Ferrara não é homem para filmar contra as suas personagens. No fim do último acto – quando o filme se converte em “drama doméstico”, Devereux a aparar a frustração e a raiva da mulher (Jacqueline Bisset, magnífica) – não há nenhuma salvação, nem mesmo sacrificial, a propor para esta figura caída aos trambolhões do topo do mundo. Mas fica-se com um homem, só, e com um homem só: bem-vindo a Nova Iorque, bem-vindo ao mundo real.