Mustafa e Shena (e Christopher Hitchens)
1. A primeira vez que ouvi falar de Mustafa fiquei logo a saber que era ateu. Um xiita ateu de Bagdad, escreveu-me o nosso amigo em comum. “Xiita ateu” parece uma contradição mas é uma boa síntese. Num Iraque em que xiitas e sunitas vivem uma guerra latente, xiita é o contexto de onde Mustafá vem e ateu o que ele escolheu ser. À semelhança de qualquer ateu baptizado em criança que pode dizer, se lhe perguntarem a religião, ter sido criado como católico.
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1. A primeira vez que ouvi falar de Mustafa fiquei logo a saber que era ateu. Um xiita ateu de Bagdad, escreveu-me o nosso amigo em comum. “Xiita ateu” parece uma contradição mas é uma boa síntese. Num Iraque em que xiitas e sunitas vivem uma guerra latente, xiita é o contexto de onde Mustafá vem e ateu o que ele escolheu ser. À semelhança de qualquer ateu baptizado em criança que pode dizer, se lhe perguntarem a religião, ter sido criado como católico.
2. Em contextos muito religiosos é mais estranho, e portanto mais difícil, ser ateu do que de outra religião: um crente entende melhor outro crente, ainda que inimigo, enquanto o ateu gera um exterior do sistema, encarna o fora-da-lei. Não sendo essa a sua causa, será a sua consequência.
3. Havia, pois, pelo menos um xiita ateu em Sulaymanyiah, região curda de larga maioria sunita, tinha vindo para estudar na Universidade Americana, queria ser arqueólogo. O que eu só soube estando lá foi que Mustafa se descobriu ateu por causa de uma colega sunita ateia, leitora entusiasta de Christopher Hitchens. Sim, lá no Iraque.
4. Hitchens (1949-2011): jornalista, escritor, polemista americano, ateu militante, defensor da invasão americana do Iraque em 2003.
5. Mustafa faz-me um tour da Universidade Americana em Sulaymaniyah (na foto), cafetaria, auditórios, biblioteca, dormitórios, jardins, tudo novo. Os não bolseiros pagam 4000 dólares por semestre, Mustafa paga 500, menos do que algumas universidades públicas em Portugal. Está a acabar Relações Internacionais, mas com cadeiras de arqueologia, quer segui-la no mestrado, de preferência na Europa. Nos primeiros três semestres aqui só estudou inglês, que fala com a desenvoltura de quem tivesse morado na América. Na guerra Irão-Iraque, o pai foi capturado pelos iranianos. Um galã, nas fotografias entre guerras que Mustafa digitalizou, e tem no telemóvel. A família passou um mau bocado durante o regime sunita de Saddam. Em 2003, Mustafa, então com 11 anos, queria pilotar F16, como os americanos. Contou as horas para eles chegarem a Bagdad. “Toda a família detestava Saddam. Víamos filmes e pensávamos: eles têm uma vida e nós nesta ditadura.” Depois as ruas ficaram cheias de jipes e tanques americanos. Os xiitas ganharam poder, as retaliações deram em matança. “Em 2005 as ruas estavam cheias de corpos que ficavam lá uma semana, dez dias. Inchavam, cheiravam mal. Não havia polícia, os polícias escondiam-se nos muros das esquadras, protegidos pelos americanos.” Cabeças cortadas, amigos que nunca mais apareceram, quem sabe agora estão no “Estado Islâmico”, diz Mustafa. “Os extremistas sunitas achavam que nós éramos nojentos. Chamavam-nos xiitas adoradores de túmulos. E depois os xiitas começaram a matança em massa de sunitas. ‘Estás com a Al Qaeda’? E matavam a família toda. Carros explodidos, gente queimada. Nós víamos da janela.” Um amigo que morre nos braços. Um primo morto por um sniper. Bairros rodeados por muros, só com uma entrada e saída. Os demónios todos fora da caixa.
6. Estamos sentados em sofás, junto a uns janelões que trazem luz e verde, estudantes sobem e descem, raparigas de saia um palmo acima do joelho. Eu digo que nunca tinha visto mini-saias aqui. “Ah, mas aquilo não é uma mini-saia”, sorri Mustafa. “Havias de ver nas nossas festas.” E mostra-me as fotos da última.
7. Em casa dele, a religião nunca foi uma bandeira. “O meu pai bebe de vez em quando, acredita na liberdade, não vai à mesquita. Diz que as mesquitas de Bagdad são um lugar onde se enganam pessoas. Às vezes vai a Najaf.” Cem quilómetros a sul de Bagdad, a terceira cidade mais sagrada para os xiitas, lugar de peregrinação. “Acredita em Deus e no islão, mas não nas práticas de há centenas de anos.” E tu?, pergunto eu. “Eu sou ateu”, confirma ele. “Lembras-te daquela rapariga que encontrámos há pouco?” À entrada da biblioteca. “Ela emprestou-me aquele livro do Christopher Hitchens, Deus Não é Grande. E quando o li ia pensando: ‘Faz sentido, faz sentido, faz sentido…’ Mas ao mesmo tempo tinha medo de ir para o inferno. Isto foi há três anos. Então comecei a discutir com o meu pai. Ele dizia-me: ‘Não, o islão não tem de ser violento. Se as pessoas forem violentas, será violento.” Mustafa declara-se ateu desde então. “Mas fora da universidade não digo que sou ateu. É difícil aqui, as pessoas acham que somos estúpidos. Uma vez, numa viagem para Bagdad disse que era ateu e o condutor ficou furioso. Entretanto autoproclamou-se o “Estado Islâmico”, aqui ao lado. “São anos a construir estas pessoas”, diz Mustafa. “Na escola tínhamos de estudar a glorificação do islão, como se fôssemos espalhar a religião pela espada. Detesto tanto o xiismo como qualquer outra religião.” E além de ter uma origem xiita num contexto sunita, é árabe num contexto curdo. “Não é fácil. Os curdos distinguem-nos. Se eu quiser namorar uma rapariga curda, mesmo que ela goste de mim terá medo da família.” Mas tabu, tabu, seria dizer que é gay. “Aqui, ninguém pode dizer que é gay. Nem nesta universidade. Eu não me importaria se alguém me dissesse, mas os meus amigos contariam a toda a gente.”
8. Chega Shene, a leitora de Christopher Hitchens, cabelão aos caracóis, saia de pregas pelo joelho, figura de bailarina com uma delicadeza firme. Foi criada na Holanda, viveu em Londres, filha de muçulmanos “não muito religiosos”. Certo dia, um dos irmãos disse-lhe que não havia um deus. “Eu respondi: ‘Como podes dizer isso?’ Ele tinha lido Christopher Hitchens. Shena foi ler, descobriu-se ateia. Quando conheceu Mustafa, ele argumentou contra. Conversaram muito. Em geral, Shena não esconde o que pensa. “Só perante pessoas muito religiosas é que não digo que sou ateia. Seremos os primeiros a fazer diferença.”
9. O “Estado Islâmico” comprova isto, acredita ela. “Eles estão a matar gente em nome de deus, só isso prova o meu ponto. Se houvesse um deus, ele seria um criminoso, porque matam em nome dele. Religião é medo. As pessoas tornam-se mais frágeis, mais sujeitas ao medo.” Mas não é fácil estar fora disto. “Às vezes sinto-me um pouco sozinha aqui.” Não é só o que pensa, é o que isso significa no dia-a-dia. Oficialmente, aqui, rapazes e raparigas não namoram, são noivos. Se namoram é porque vão casar. Mas Shene diz que tem um namorado, não um noivo. “Ele pediu-me em casamento mas eu não quis ter um anel de noivado.” A única pessoa da família que sabe do namorado é o irmão ateu.
10. Quando o “Estado Islâmico” tomou Mossul, há um ano, e depois cercou a capital curda, Erbil, colegas de Mustafa e Shene que eram de fora deixaram os dormitórios, foram para Bagdad. “Eu pensei qual seria o meu esconderijo se eles entrassem na universidade”, conta Shene. E então? “É no telhado, numa entrada do ar condicionado.” Mas se fosse para lutar, lutaria. Pegaria numa arma? “Eu ando com uma arma. Uma pequena faca.”