Adesão à CEE teve de derrubar tratado entre Salazar e Franco sobre pescas
Três décadas depois, o responsável técnico das negociações, equiparado a secretário de Estado, recorda vicissitudes internas e externas da negociação com Bruxelas. Foi um tempo de mobilização e aposta, que o levou a trabalhar com três executivos de duas cores e três ministros das Finanças diferentes
“Nas pescas, havia um tratado assinado no tempo de Salazar e renovado com Marcello Caetano, segundo o qual a Espanha podia pescar até à costa portuguesa. Se não o denunciássemos, passava a vigorar como direitos históricos”, recorda António Marta que, entre 1981 e 86, dirigiu tecnicamente o processo de adesão. A aplicação do tratado era particularmente prejudicial para Portugal: na década de 80 do século passado, a frota pesqueira espanhola era a terceira maior do mundo depois dos barcos fábrica da então União Soviética e do Japão.
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“Nas pescas, havia um tratado assinado no tempo de Salazar e renovado com Marcello Caetano, segundo o qual a Espanha podia pescar até à costa portuguesa. Se não o denunciássemos, passava a vigorar como direitos históricos”, recorda António Marta que, entre 1981 e 86, dirigiu tecnicamente o processo de adesão. A aplicação do tratado era particularmente prejudicial para Portugal: na década de 80 do século passado, a frota pesqueira espanhola era a terceira maior do mundo depois dos barcos fábrica da então União Soviética e do Japão.
Com os processos de adesão português e espanhol a decorrerem paralelamente, e perante a delicadeza do tema, Bruxelas remeteu-o para a esfera bilateral. “Duas cimeiras realizadas em Março de 1985 não permitiram acabar as negociações e houve uma proposta sui generis que remetia para os dois países a discussão da questão”, prossegue. “O primeiro-ministro de então, Mário Soares, telefonou ao seu homólogo espanhol, Felipe González, do qual era amigo, e foi claro”, recorda.
“Vou-te enviar um emissário para denunciar o acordo”, disse Soares a González. O efeito pretendido foi imediato: “Voltámos à estaca zero”. E sem a espada de Dâmocles dos espanhóis - poderem invocar, de acordo com os seus interesses de política interna, direitos históricos que inquinariam o tratamento daquele dossier e que dificultariam as relações entre os dois países -, tudo passou a ser mais simples.
“Na negociação bilateral conseguiu-se o que pretendíamos, dentro das seis milhas ninguém pescava, nem portugueses nas águas de Espanha nem espanhóis nas águas de Portugal, até às 200 milhas, a zona económica exclusiva, havia cotas de pesca por barcos e espécies”, relembra. António Marta refere, ainda, um caso particular: “Nos Açores só era livre a pesca do atum voador, de resto vigorava também a contingentação.”
“As negociações [globais] demoraram nove anos, o que foi uma brutalidade, por causa da Espanha, pelo que havia gente que já não acreditava, embora para a maioria aquela [a adesão] fosse uma aposta motivadora”, sintetiza. O modus operandi limitava o espaço de manobra das negociações. “Portugal não tinha o direito de iniciativa, só podíamos esperar pelas propostas da Comissão para responder”, lamenta.
A tradução prática desta realidade colocava os candidatos ao sabor das conjunturas políticas internas dos Estados membros, nomeadamente dos seus ciclos eleitorais. “Quando havia eleições em França, as negociações sobre a agricultura paravam pois é conhecido o valor da Política Agrícola Comum para os franceses, o mesmo se passava com as pescas se a Irlanda ia às urnas, e quando os luxemburgueses entravam em campanha eleitoral as questões sociais e da imigração eram travadas”, exemplifica. “As coisas andavam aos soluços”, refere.
Como compensação, o ex-presidente da Comissão de Integração Europeia, anota, contudo, um factor positivo: A tentativa falhada de golpe de Estado em Espanha de 23 de Fevereiro de 1981. A imagem de António Tejero Molina, tenente-coronel da Guardia Civil, a entrar no hemiciclo do Parlamento de Madrid pistola em punho, as rajadas de tiros contra os deputados e a agressão física ao ministro da Defesa, Gutierrez Mellado, trouxeram à Europa a sombra ameaçadora de involuções ao estilo da América Latina.
“Ambos, Portugal e Espanha, queriam entrar na CEE, e a aventura do 23 de Fevereiro acabou por acelerar as negociações”, reconhece. “Havia motivações económicas na apresentação dos pedidos de adesão e passou a haver um motivo muito grande do ponto de vista político, que era a consolidação da democracia”, afirma.
Há 30 anos, as assinaturas da adesão dos dois parceiros ibéricos ocorreram no mesmo dia, separadas por escassas horas. “Queriam fazer uma assinatura conjunta, o Governo português disse que não e passou a vigorar o regime de precedência”, explica: “Portugal tinha solicitado primeiro, a assinatura foi primeiro no Mosteiro dos Jerónimos, que estava espectacular, almoçámos e à tarde assinámos em Madrid, com o Rei no Palácio Real, por entre um calor infernal e um protocolo disparatado”, recorda. “À noite foi tudo para o tablado [sala de espectáculos de flamengo].”
Estava previsto que António Marta assinasse o documento de adesão dos Jerónimos: “Era para assinar, depois de Mário Soares, Jaime Gama e Ernâni Lopes, mas acabou por assinar Rui Machete.” A assinatura do então vice-primeiro-ministro deu por encerrado o conflito no PSD, que estava no executivo. “As vozes que diziam [no PSD] que Portugal ia ser contribuinte liquido da CEE, quando estava mais provado que não o era, fizeram bluff, ainda hoje assim o considero”, diz. “Se tivesse havido um adiamento, teríamos perdido mais do que ganhado”, sentencia.
António Marta não esquece a sua peculiar situação. Equiparado a secretário de Estado, foi um técnico que passou por três Governos de duas cores – dois liderados por Pinto Balsemão e um por Mário Soares -, e colaborou com três ministros das Finanças diferentes, Álvaro Barreto, João Salgueiro e Ernâni Lopes. “Esta solução foi deliberada e um elemento crucial para a negociação, em cada ministério havia um vogal da comissão de integração europeia e 99% dos conflitos eram redimidos nesta comissão”, relata. A manutenção das mesmas caras foi essencial: “os interlocutores já nos conheciam, havia mais confiança.”
Por fim, António Marta destaca o profissionalismo com quem trabalhou. “Nada tinha a ver com a Função Pública, mas trabalhei com gente muito competente. As ajudas da Função Pública não davam, em Bruxelas, para um quarto com casa de banho, hoje não sei se as pessoas estariam dispostas.”
Da sua experiência, tira outra conclusão: “Pensei que as questões técnicas eram mais importantes, hoje sei que o aspecto político é mais decisivo.” Não evita constatações. “Hoje já não há uma Europa do interesse comum, provavelmente deixou de existir após a entrada do Reino Unido, mas há os interesses de cada Estado membro”, lamenta. No final, o balanço é positivo: “foi extremamente importante para a estabilização das regras em Portugal, claro que fomos afectados pela globalização, mas é tão difícil sair, que ninguém sai.”