Histórias de guerra

Anthony Doerr mostra-se um brilhante contador de histórias, num romance caleidoscópico vencedor do último Pulitzer

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Anthony Doerr: a fúria assustadora da Segunda Guerra Mundial ISABELLE SELBY

Panfletos esvoaçam e caem sobre os telhados do lugar fortificado de Saint-Malo. 7 de Agosto de 1944. A cidade está ainda ocupada pelas tropas do Terceiro Reich. O Dia D foi há dois meses. Metade da França Ocidental está livre, mas não esta cidadela na orla do continente, os alemães ainda ocupam a sua derradeira posição na costa da Bretanha. O fim da guerra está próximo. Mas bombardeiros americanos aproximam-se para o que se prevê seja a destruição da cidade. A população civil foi avisada pelos panfletos para se retirar para campo aberto. Poucos são os que ficaram; uma delas é Marie-Laure, uma rapariga de dezasseis anos, cega, que vive num sexto andar, a casa de um tio-avô que saiu no dia anterior e não voltou. No quarto em que está há uma maquete da cidade, construída pelo pai para que ela aprenda a orientar-se por entre as casas. Chegaram ambos de Paris, refugiando-se naquele apartamento, há quatro anos. O zumbido dos aviões cresce. O bombardeamento está para breve, toda a cidade será inundada de fogo, que trará “toda a luz que não podemos ver”, pensará a rapariga cega mais tarde. “Quatro anos de ocupação, e o rugido da aproximação de bombardeiros é o rugido de quê? Da salvação? Do extermínio?”

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Panfletos esvoaçam e caem sobre os telhados do lugar fortificado de Saint-Malo. 7 de Agosto de 1944. A cidade está ainda ocupada pelas tropas do Terceiro Reich. O Dia D foi há dois meses. Metade da França Ocidental está livre, mas não esta cidadela na orla do continente, os alemães ainda ocupam a sua derradeira posição na costa da Bretanha. O fim da guerra está próximo. Mas bombardeiros americanos aproximam-se para o que se prevê seja a destruição da cidade. A população civil foi avisada pelos panfletos para se retirar para campo aberto. Poucos são os que ficaram; uma delas é Marie-Laure, uma rapariga de dezasseis anos, cega, que vive num sexto andar, a casa de um tio-avô que saiu no dia anterior e não voltou. No quarto em que está há uma maquete da cidade, construída pelo pai para que ela aprenda a orientar-se por entre as casas. Chegaram ambos de Paris, refugiando-se naquele apartamento, há quatro anos. O zumbido dos aviões cresce. O bombardeamento está para breve, toda a cidade será inundada de fogo, que trará “toda a luz que não podemos ver”, pensará a rapariga cega mais tarde. “Quatro anos de ocupação, e o rugido da aproximação de bombardeiros é o rugido de quê? Da salvação? Do extermínio?”

Este é o cenário do romance do norte-americano Anthony Doerr (n. 1973), vencedor do último prémio Pulitzer. Uma história sobre a fúria assustadora da Segunda Guerra Mundial, vista de perspectivas diferentes, e contada de maneira caleidoscópica em cenas (capítulos) muito curtos que alternam pontos de observação e que por vezes recuam muito no tempo para o passado das personagens. Os jovens Marie-Laure, francesa, e o soldado alemão Werner Pfenning, especialista em rádios, são os protagonistas que vão servir a Doerr para retratar vários aspectos da guerra, entre eles a resistência francesa, as dificuldades da população judaica, os rígidos métodos educacionais dos nazis com as humilhações diárias a que os educandos estavam expostos, e como a ideologia e os propósitos nazis eram inculcados nas cabeças dos jovens (por exemplo, através de peças teatrais, como a que esteve em cena em Berlim no Outono de 1936: “Na peça, os invasores desempenham os papéis de armazéns de nariz aquilino, joalheiros desonestos, banqueiros desonrosos; vendem lixo reluzente; deixam no desemprego os comerciantes da aldeia.”

Werner Pfenning, o “soldado de cabelos brancos”, tem dezoito anos e foi criado num orfanato na região mineira do Ruhr. Desde cedo conheceu a miséria e a fome, chegando a alimentar-se apenas de “bolos feitos de sementes de mostarda moídas e água”. Esperava-o uma vida de mineiro, como a que o pai teve, não fosse o seu talento intuitivo para os rádios. A escola militar da Juventude Hitleriana descobrira-o anos antes e, obviamente, esse talento foi posto ao serviço do Reich. Fazendo parte de uma unidade da Wehrmacht que ocupava Saint-Malo, a sua missão era interferir e descobrir as comunicações da Resistência na cidade. É nessa demanda que se cruza com Marie-Laure, heroína silenciosa, filha do serralheiro-mor do Museu Nacional de História Natural, em Paris. Ela cegou lentamente. As cores e as formas passaram a ser uma reminiscência. É com os livros em Braille de Júlio Verne, entre outros exercícios, que o pai (que acaba por ser preso pelos alemães) a ajudou a adaptar-se à nova situação. Quando fugiram para Saint-Malo levaram com eles um segredo, talvez a peça mais valiosa do museu. Isso leva a que Reinhold, um dos maiores peritos de obras de arte do Terceiro Reich, entre também na trama.

Anthony Doerr, que se mostra neste romance ser um brilhante e eloquente contador de histórias, tece uma trama aparentemente simples, mas que no entanto é de complexa arquitectura, com múltiplas perspectivas e histórias que acabam por encaixar umas nas outras de maneira perfeita sem nunca deixarem o leitor perdido. Um dos aspectos mais impressionantes do livro é a sua linguagem, trabalhada e cuidada, adjectivada de maneira a dar uma sensação quase táctil às inúmeras descrições detalhadas. Nisto, Toda a Luz Que Não Podemos Ver é um romance “pouco americano”, aproximando-se muito de um outro autor que assume as influências europeias da sua escrita, Philipp Meyer. Há no entanto um ponto que, por ser desnecessário, desvaloriza um pouco livro: o autor não foi capaz de resistir à tentação de captar o “grande público” utilizando um argumento à Indiana Jones, um diamante, o “mar de chamas”, amaldiçoado e que não pode cair nas mãos do Terceiro Reich. O romance não precisava disto para nada.