Santos e fantasmas

Longe do melhor de Apichatpong, é o mais sereno, o mais chill out zone, dos seus filmes.

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Embora os pontos de contacto com esse filme sejam fortíssimos, Mekong Hotel é estruturalmente bastante distinto dele, resolvendo-se de forma mais esparsa e, por certo, muito menos espectacular. Continua a haver “fantasmas”, como há sempre em Apichatpong, mas o filme é ele próprio um “filme-fantasma” (como os célebres filmes “desaparecidos” de Jacques Rivette), eco tardio, ou salvação tardia, de um filme que o tailandês começou a rodar em 2002 mas que não concluiu. Embora, segundo as informações que encontramos, tudo em Mekong Hotel tenha sido rodado contemporaneamente, o essencial do que nele se vê é um regresso a cenas, diálogos, ideias, desse filme de 2002 (que se teria chamado Jardim do Êxtase). Com o rio Mekong como leitmotiv visual, quase sempre em fundo, a sua placidez hipnótica a “ensopar” (é o termo) o ambiente do filme, Mekong Hotel constrói-se basicamente a partir de um conjunto de cenas de diálogos entre gente alojada num hotel à beira-rio, em conversas onde as ressonâncias históricas (a história recente da Tailândia, como no Tio Boonmee) se casam com um imaginário cultural e folclórico vindo do mais fundo dos tempos, e onde o presente aparece como ameaça – a previsão de uma cheia que virá inundar a região. Uma das personagens está aparentemente “morta”, é um “fantasma”, o que justifica os planos mais bizarros e “viscerais” do filme, como se por trás da serenidade do Mekong pudesse sempre aparecer um terror gore, mas de origem mágica. O movimento hipnótico do rio é acompanhado pelo som de guitarra que ocupa, quase sempre, a banda sonora, e que tem uma explicação “diegética”. E tudo isto junto origina de facto um feitiço: o espectador perde-se, lentamente, dentro do Hotel Mekong, vai sendo conquistado e a certa altura, quando chega o final deste filme bastante curto (uma hora), descobre com algum espanto que era capaz de ficar ainda mais algumas horas só a olhar para o rio, para os barcos que nele evoluem, enleado pela música. Longe do melhor de Apichatpong, é o mais sereno, o mais chill out zone, dos seus filmes.

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Embora os pontos de contacto com esse filme sejam fortíssimos, Mekong Hotel é estruturalmente bastante distinto dele, resolvendo-se de forma mais esparsa e, por certo, muito menos espectacular. Continua a haver “fantasmas”, como há sempre em Apichatpong, mas o filme é ele próprio um “filme-fantasma” (como os célebres filmes “desaparecidos” de Jacques Rivette), eco tardio, ou salvação tardia, de um filme que o tailandês começou a rodar em 2002 mas que não concluiu. Embora, segundo as informações que encontramos, tudo em Mekong Hotel tenha sido rodado contemporaneamente, o essencial do que nele se vê é um regresso a cenas, diálogos, ideias, desse filme de 2002 (que se teria chamado Jardim do Êxtase). Com o rio Mekong como leitmotiv visual, quase sempre em fundo, a sua placidez hipnótica a “ensopar” (é o termo) o ambiente do filme, Mekong Hotel constrói-se basicamente a partir de um conjunto de cenas de diálogos entre gente alojada num hotel à beira-rio, em conversas onde as ressonâncias históricas (a história recente da Tailândia, como no Tio Boonmee) se casam com um imaginário cultural e folclórico vindo do mais fundo dos tempos, e onde o presente aparece como ameaça – a previsão de uma cheia que virá inundar a região. Uma das personagens está aparentemente “morta”, é um “fantasma”, o que justifica os planos mais bizarros e “viscerais” do filme, como se por trás da serenidade do Mekong pudesse sempre aparecer um terror gore, mas de origem mágica. O movimento hipnótico do rio é acompanhado pelo som de guitarra que ocupa, quase sempre, a banda sonora, e que tem uma explicação “diegética”. E tudo isto junto origina de facto um feitiço: o espectador perde-se, lentamente, dentro do Hotel Mekong, vai sendo conquistado e a certa altura, quando chega o final deste filme bastante curto (uma hora), descobre com algum espanto que era capaz de ficar ainda mais algumas horas só a olhar para o rio, para os barcos que nele evoluem, enleado pela música. Longe do melhor de Apichatpong, é o mais sereno, o mais chill out zone, dos seus filmes.

A sessão inclui uma curta de João Pedro Rodrigues, Manhã de Santo António. A manhã de Santo António segue-se à noite de Santo António, e é dessa noite que vêm as personagens, regressando a casa depois da festa. Sem diálogos, vemos gente a cambalear, a interromper o trânsito, a urinar, a vomitar, num estado de atordoamento geral que João Pedro Rodrigues filma como se estivesse a pensar na Noite dos Mortos-Vivos de George Romero. Ou num bailado bêbedo mas perfeitamente coreografado, incluindo composições com automóveis e aviões a caminho do aeroporto. A figura de estilo dominante é o plongé, como se tudo fosse dado a partir do ponto de vista da estátua de Santo António na Praça de Alvalade. Mas o que pensa Santo António do espectáculo que lhe é dado a ver, isso o filme não explica: apenas uma quadrinha melancólica de Fernando Pessoa, e é tudo.