No dia da inauguração desta exposição, Delfim Sardo afirmou que não era possível escrever a história da arte portuguesa a partir da década de 90 sem falar da Colecção António Cachola. E, de facto, assim é. O coleccionador soube reunir nas duas últimas décadas um acervo representativo do que foi e do que é a prática artística em Portugal. Com uma colecção exposta em permanência no Museu de Arte Contemporânea de Elvas — MACE, Cachola é também um caso único: alguém que sem possuir os meios financeiros de outros coleccionadores conseguiu reunir um número de obras impressionante e de qualidade muito homogénea.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
No dia da inauguração desta exposição, Delfim Sardo afirmou que não era possível escrever a história da arte portuguesa a partir da década de 90 sem falar da Colecção António Cachola. E, de facto, assim é. O coleccionador soube reunir nas duas últimas décadas um acervo representativo do que foi e do que é a prática artística em Portugal. Com uma colecção exposta em permanência no Museu de Arte Contemporânea de Elvas — MACE, Cachola é também um caso único: alguém que sem possuir os meios financeiros de outros coleccionadores conseguiu reunir um número de obras impressionante e de qualidade muito homogénea.
Agora, a Colecção António Cachola chega ao Chiado 8, em Lisboa, através de uma série de pequenas exposições monográficas da responsabilidade curatorial de Delfim Sardo. O coleccionador, aliás, tem também sabido congregar alguns dos mais importantes comissários portugueses actuais, de João Pinharanda a João Silvério. Sardo, cujas áreas de interesse passam pelo cruzamento entre a arquitectura e as artes plásticas, ou pela produção em múltiplos feita por artistas portugueses contemporâneos, imprime, como é óbvio, uma tónica muito diferente daquela que estávamos habituados a ver em Elvas. Logo à partida, a selecção de Onofre marca a opção por um núcleo de artistas que privilegia as chamadas novas técnicas, mesmo que afinal elas já não sejam assim tão novas, como o vídeo, em vez da pintura ou da escultura; e a reflexão sobre a pertinência da prática artística na sociedade actual, ao invés da apropriação contemporânea e acrítica de estilos ou formas artísticas historicamente definidas. É o caso de Onofre, mas também de Ângela Ferreira, que se lhe seguirá, e em menor grau de Fernanda Fragateiro, a terceira artista desta série.
E Onofre é, no que toca ao vídeo, um mestre. Incluídos nesta exposição estão três trabalhos de importância inegável: um Sem Título de 1999, um outro Sem Título (We will never be boring) de 1997, o primeiro que o artista realizou; e o seu mais recente filme, Tacet, de 2014. Qualquer uma destas peças é exemplar pela moderação dos processos empregues para chegar ao resultado final. Se nas duas primeiras um casal interage sem jamais se cruzar — num caso em saltos violentos de dois lados opostos do ecrã; noutro caminhando em passadeiras de ginástica frente a frente —, levando-nos a deduzir daqui uma interpretação sobre a dificuldade ou a impossibilidade da comunicação, já em Tacet assistimos a uma reinterpretação da famosa peça 4’33’’, que John Cage compôs em 1951, em que uma orquestra em silêncio numa sala de concertos dava a atenção ora aos sons que vinham do público presente, ora ao virar rítmico das páginas das pautas nas estantes de música. Onofre mostra-nos um piano que é incendiado, literalmente, por um actor vestido de músico. E durante o tempo regulamentar para a peça de Cage apenas ouvimos o crepitar das chamas num cenário vazio de orquestra e de público.
Como o comissário afirma a dado ponto do seu texto, perpassa uma melancolia quase benjaminiana que se relaciona, como sempre sucede, com o isolamento do actor e com a imagem que ele nos devolve de nós próprios, em loop, sistematicamente, num movimento sisifiano interminável. É também por esta razão que a obra em vídeo de João Onofre acaba por instituir-se como a mais emblemática dos anos 1990, os mesmos que foram pródigos na prática desta disciplina. Justamente por este motivo, a inclusão de duas outras obras na exposição deixa-nos perplexos perante a pertinência dessa escolha. Trata-se de um Sem Título (Isto fica entre nós), um anúncio inserido nas páginas de classificados do PÚBLICO em 2004, e de Universal Declaration of Human Rights and an image of beauty converted into binary code, uma série de aguatintas sobre papel penduradas na parede. Em ambos os casos, sobressai a questão do código — uma obra de arte não tem habitualmente como suporte um jornal diário, e algo que se pretende universal, quer seja um manifesto, quer seja um modelo estético, deve ser veiculado em linguagem também universal, mesmo que ela acabe por ser acessível apenas a uma máquina; contudo, a distância entre estas duas peças e os trabalhos filmados é suficientemente larga para causar interrogações sobre a sua associação no espaço pequeno da Chiado 8. Ficamos com a sensação de que falta algo — algo que, muito simplesmente, talvez não exista ainda na colecção de António Cachola. Ou, hipótese também a considerar, que o espaço disponível é afinal exíguo para a ambição da exposição.