Morreu o Conde Drácula
Drácula, o monstro de Frankenstein, a Múmia, Sith, Saruman: de James Bond a Guerra das Estrelas, Christopher Lee, que morreu domingo, interpretou algumas das figuras mais conhecidas do lado negro do cinema.
Mesmo os filmes de Tim Burton, o cineasta contemporâneo que (assim como com Vincent Price) melhor o tratou, e em cujos filmes entrava regularmente desde os anos 90 (A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça), são adendas, que têm acima de tudo o mérito de confirmar a implantação de Christopher Lee num imaginário cinéfilo “trans-geracional”, e de atestar a sua vontade de não ficar quieto, continuar sempre a trabalhar e, como disse um dia, “morrer de botas calçadas”. Figuradamente, morreu calçado: as notícias dizem que ainda no mês passado tinha confirmado a sua participação num filme dinamarquês de elenco internacional, a rodar em breve.
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Mesmo os filmes de Tim Burton, o cineasta contemporâneo que (assim como com Vincent Price) melhor o tratou, e em cujos filmes entrava regularmente desde os anos 90 (A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça), são adendas, que têm acima de tudo o mérito de confirmar a implantação de Christopher Lee num imaginário cinéfilo “trans-geracional”, e de atestar a sua vontade de não ficar quieto, continuar sempre a trabalhar e, como disse um dia, “morrer de botas calçadas”. Figuradamente, morreu calçado: as notícias dizem que ainda no mês passado tinha confirmado a sua participação num filme dinamarquês de elenco internacional, a rodar em breve.
Christopher Lee morreu com 93 anos e uma filmografia enorme, com mais de 200 títulos, e fazia cinema desde o final dos anos 40. Ao contrário do que é costume com os actores britânicos, tinha pouca ou nenhuma formação teatral, a sua formação era militar – foi agente das forças especiais britânicas durante a II Guerra, e antes disso, com 18 anos apenas, estivera na Finlândia, como voluntário, a defender o país da invasão soviética. Foi depois da guerra que, sem nada para fazer profissionalmente que lhe cativasse o interesse, experimentou ser actor, contra os avisos de quem lhe dizia ser “alto demais” para a profissão. Estudou teatro uns meses, apenas o tempo necessário para perceber que não fora feito para os palcos. E tentou então a sua sorte nos plateaux de cinema... Os primeiros dez anos de carreira, passou-os essencialmente em papéis secundários, às vezes mesmo só com uma cena ou duas; mas ainda assim, em filmes tão marcantes e importantes como o Hamlet de Olivier, o Saraband for Dead Lovers de Basil Dearden, o Captain Horatio Hornblower de Raoul Walsh, o Moulin Rouge de John Huston, um par de Powells/Pressburgers (The Battle of the River Plate e I’ll Met by Moonlight), e sobretudo o Bitter Victory de Nicholas Ray.
Foi no mesmo ano do filme de Ray, 1957, que a sua carreira deu uma volta: entrou no seu primeiro produzido pelos britânicos estúdios da Hammer, The Curse of Frankenstein, dirigido por Terence Fisher, a fazer o papel do monstro. No ano seguinte propuseram-lhe o papel de Drácula no homónimo filme também realizado por Fisher. A maneira como Lee tomou conta da personagem, convertendo em elegância, aristocrática, sedutora e sinistra aquilo que noutras versões anteriores (o Max Schreck do Nosferatu, de Murnau, o Bela Lugosi do Dracula de Tod Browning) era sobretudo repelência e viscosidade, causou uma enorme impressão entre os espectadores contemporâneos – o filme foi um sucesso colossal – a ponto de praticamente ter redifinido a imagem cinematográfica do Conde Drácula: nos melhores (o “Dracula” de Coppola, por exemplo) como nos piores casos de revisitação posterior da personagem, o modelo é o Drácula de Lee, não o de Schreck nem o de Lugosi.
A partir daí não parou, na Hammer e fora dela, de ser um dos rostos mais reconhecíveis e apetecíveis para papéis e personagens na órbita do horror e do macabro, muitas vezes na companhia de Peter Cushing, com quem rodou mais de vinte filmes e com quem formou uma parelha lendária. Christopher Lee percebeu cedo o perigo que representava ficar colado à personagem de Drácula, e só renitentemente voltou a ela em 1966, para nova colaboração com Terence Fisher em Dracula: Prince of Darkness. Lee contou que só aceitou o papel em cedência à “chantagem” da Hammer, que já tinha vendido os direitos para a distribuição americana com a garantia de que seria ele a interpretar a personagem. Mas como também lhe disse então o seu vizinho e amigo Boris Karloff, outra lenda do terror e bem sabedor do que era ficar preso a uma imagem, “não te preocupes, os actores tipificados encontram sempre trabalho”.
E trabalho não faltou a Christopher Lee. Se Drácula e as suas variações, de Terence Fisher a Jess Franco, foi a figura que mais o celebrizou, também foi Fu Manchu, Rasputine, Sherlock Holmes (para Terence Fisher) e o seu irmão Mycroft (para Billy Wilder). Andou pelo peplum e pelo terror italiano, pela mão de outro grande cineasta dos géneros ditos menores, Mário Bava. Do seu trabalho em Espanha com Jess Franco saiu um par de filmes absolutamente excepcional, entre o making of e o palimpsesto, realizado pelo catalão Pere Portabella: Umbracle e Cuaudecuc, Vampir. Entrou num dos mais célebres cult movies do cinema inglês dos anos 70, The Wicker Man, de Robyn Hardy, e teve um papel nos divertidíssimos Três Mosqueteiros de Richard Lester. Ainda nessa década foi um dos mais lembrados vilões de 007, o Scaramanga de The Man With The Golden Gun. A partir do final dos anos 70, radicado nos EUA e já transformado em “ícone” da cinefilia, foram os realizadores cinéfilos que lhe dão os papeis simbolicamente mais significativos, de Spielberg (1941 Ano Louco Em Hollywood) a Tim Burton (vários filmes), passando por Joe Dante (Gremlins 2), antes do novo fôlego e da renovação da sua popularidade que advieram da sua participação em duas das mais populares séries das últimas décadas, a Guerra das Estrelas e os filmes baseados nos livros de J.R. Tolkien.. A sua prolífica carreira inclui dezenas de subprodutos, filmes lembrados apenas por ele ou esquecidos apesar dele. Certa vez, comentando o empenho que punha no seu trabalho mesmo nos filmes mais esfarrapados, disse algo como isto: “O filme pode ser uma bosta, mas a minha interpretação não tem que o ser”