Os chimpanzés também bebem álcool como nós
Observações tiveram lugar na estação de investigação de primatas em Bossou, na Guiné-Conacri, entre 1995 e 2012. O que os cientistas foram vendo deixou-os impressionados.
Os habitantes (humanos) da aldeia de Bossou utilizam uma das espécies de palmeiras da ráfia (Raphia hookeri), que cresce em zonas alagadas sazonalmente, para recolher a sua seiva. Bem lá no alto, perto da coroa, na base das folhas e onde crescem as flores, fazem uma ferida e deixam um bidão de plástico a apanhar a seiva, tapado com folhas para evitar contaminações. Os açúcares presentes na seiva depressa fermentam e são transformados em etanol, ou álcool etílico. De manhã cedo ou ao final da tarde, sobe-se às palmeiras para se recolher a seiva fermentada, que geralmente é consumida nas 24 horas seguintes tal como está – uma bebida alcoólica esbranquiçada, muito apreciada pelas comunidades humanas locais.
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Os habitantes (humanos) da aldeia de Bossou utilizam uma das espécies de palmeiras da ráfia (Raphia hookeri), que cresce em zonas alagadas sazonalmente, para recolher a sua seiva. Bem lá no alto, perto da coroa, na base das folhas e onde crescem as flores, fazem uma ferida e deixam um bidão de plástico a apanhar a seiva, tapado com folhas para evitar contaminações. Os açúcares presentes na seiva depressa fermentam e são transformados em etanol, ou álcool etílico. De manhã cedo ou ao final da tarde, sobe-se às palmeiras para se recolher a seiva fermentada, que geralmente é consumida nas 24 horas seguintes tal como está – uma bebida alcoólica esbranquiçada, muito apreciada pelas comunidades humanas locais.
Mas os aldeões não estão o dia todo a guardar as palmeiras onde deixaram os bidões. É nessas alturas que os chimpanzés de Bossou – famosos por utilizarem pedras como ferramentas para partir nozes, mas também paus para recolher algas de charcos e galhos para pescar formigas – podem aproveitar-se do esforço dos humanos. “Os chimpanzés utilizam sempre uma ferramenta à base de folhas para beber, fazendo uma ‘esponja’ de folhas esmagadas ou dobradas com as folhas colocadas como cobertura protectiva pelos aldeões ou com as folhas de plantas nas redondezas”, explica o artigo na revista Royal Society Open Science, assinado ainda, entre outros, pela primatóloga portuguesa Susana Carvalho, da Universidade de George Washington (Estados Unidos) e da Universidade do Algarve, e por Tetsuro Matsuzawa, director do Instituto de Investigação de Primatas da Universidade de Quioto (Japão), que criou a estação de Bossou em 1976.
Depois, os chimpanzés mergulham a esponja de folhas no bidão e espremem-na na boca. Tiram as folhas da boca e repetem os gestos. “Os indivíduos podem beber ao mesmo tempo com outros, ensopando as suas esponjas de folhas de forma alternada na seiva fermentada das palmeiras, ou um indivíduo pode monopolizar o contentor enquanto outros esperam pela sua vez”, descreve ainda o artigo.
“O uso de esponjas de folhas pelos chimpanzés para beber água encontra-se em todas as comunidades de chimpanzés no estado selvagem e foi amplamente estudado por Cláudia Sousa [1975-2014] em Bossou. Na verdade, Cláudia partilhou os seus conhecimentos sobre este comportamento connosco para nos ajudar a escrever o artigo. Os chimpanzés de Bossou aplicaram os seus conhecimentos sobre como fazer e usar esponjas de folhas para explorar um novo recurso líquido, o vinho de palma”, diz-nos Kimberley Hockings.
Para se chegar à publicação destes resultados foram necessários muitos anos, porque ver os chimpanzés para beber vinho de palma, ainda que seja um comportamento constante ao longo do tempo, é muito pouco raro. “Apesar da ingestão de vinho de palma pelos chimpanzés de Bossou já ter sido mencionada nalguns artigos científicos e capítulos de livros, os investigadores de Bossou nunca tinham escrito um artigo centrado neste comportamento”, refere Kimberley Hockings. “Como é um comportamento bastante raro, exigiu observações de longa duração, para que os investigadores pudessem reunir os seus dados”, conta a investigadora, que no total os observou quatro vezes nessas festas. “Vi-os a beber vinho de palma em quatro ocasiões e fiquei fascinada com este comportamento.”
E nos 17 anos de observações, decorridos entre 1995 e 2012, os investigadores presenciaram 51 eventos (o registo de 51 chimpanzés a beber seiva fermentada), durante 20 dessas sessões de "festa". Nos 26 indivíduos adultos e jovens que fizeram parte da comunidade de chimpanzés de Bossou ao longo desses 17 anos, metade foi apanhada a beber. Os restantes 13 nunca foram vistos a ingerir vinho de palma, tal os chimpanzés pequeninos.
Mas os investigadores queriam saber mais sobre a quantidade de álcool bebida pelos chimpanzés. Para este efeito, analisaram vídeos de 12 eventos, registados em sete sessões, tendo em conta as vezes que mergulhavam a esponja de folhas, a quantidade de líquido que as esponjas podiam conter e, ainda, o teor alcoólico do vinho de palma (em média, era de 3,1%, mas o máximo registado chegou aos 6,9%).
“O nosso artigo documenta a primeira avaliação quantitativa a ingestão de etanol por qualquer símio em estado selvagem”, resume Kimberley Hockings. “É a primeira vez que é registado o consumo de álcool/etanol por chimpanzés em habitat selvagem, de forma sistemática e ao longo de muitos anos”, sublinha por sua vez Susana Carvalho.
“Quando os vi pela primeira vez a beber vinho de palma, fiquei muito impressionada”, recorda igualmente Susana Carvalho. “Por vários motivos: o consumo de uma bebida alcoólica que eu não pensava estar no repertório de comportamento dos chimpanzés; o uso de ferramentas para beber o vinho de palma; o saberem quando se podem aproximar para beber, porque estão a 'roubar' o vinho aos humanos, e só o fazem durante as horas em que os humanos não recolhem o vinho. Mas, na realidade, depois pareceu-me quase normal: é uma fonte de calorias muito boa, de energia e saborosa!”, explica. “Mas é muito imprevisível, porque nunca se sabe, quando estamos a segui-los durante o dia, se vão passar em alguma palmeira que esteja a ser utilizada para o vinho.”
Bossou é então o único sítio conhecido onde os chimpanzés no seu habitat natural bebem álcool ou alguma coisa fermentada? “Sim, é o único sítio e este o único estudo que mostra isto em grandes símios [chimpanzés, bonobos, gorilas e orangotangos]”, responde Susana Carvalho.
Descanso logo após a "festa"
Claro que, neste momento, a pergunta que pode estar na cabeça de muitos é: e eles também se embebedam como nós? “Não sabemos se se embebedam como nós, sabemos é que têm a capacidade de processar etanol, ou seja, que o seu organismo está, de alguma forma como o nosso, adaptado há muito tempo para o consumo de alimentos que contem álcool”, responde Susana Carvalho.
É que este estudo reforça o trabalho de outra de equipa, publicado em 2014, de que o último antepassado comum aos actuais grandes símios africanos e humanos modernos sofreu, há dez milhões de anos, uma mutação genética que permite acelerar a metabolização do álcool etílico. “As nossas observações corroboram essa descoberta molecular”, explica Kimberley Hockings, que também diz não haver dados suficientes sobre o comportamento dos chimpanzés antes e depois de beberem álcool que permitam concluir que se embebedam como nós.
Mas a equipa não deixa de especular que algum efeito o álcool terá neles, até porque, como o bebem raramente, não estão habituados. “A quantidade de etanol que os chimpanzés terão ingerido nalguns eventos é suficiente para produzir mudanças comportamentais nos humanos, por isso é provável que aconteça o mesmo nos grandes símios não humanos”, refere a investigadora britânica. “Numa das ocasiões, observei que os chimpanzés foram descansar logo depois de terem bebido vinho de palma, o que nos pareceu na altura um efeito provável do vinho, embora seja complicado concluir isso”, descreve Kimberley Hockings. “Noutra ocasião, um macho adulto pareceu particularmente inquieto e, enquanto outros chimpanzés estavam a fazer os ninhos para dormir à noite, ele passou uma hora a andar de árvore em árvore de forma agitada”, conta-nos ainda. "Estimou-se que alguns indivíduos consumiram cerca de 85 mililitros de álcool e manifestaram sinais comportamentais de embriaguez", acrescentou a primatóloga britânica, agora citada num comunicado da Royal Society.
Se gostam da sensação que o álcool provoca, é algo que a equipa não se atreve a dizer. “Não podemos afirmar se o álcool na seiva das palmeiras atraia os chimpanzés. No entanto, os nossos dados mostram claramente que nesta comunidade de chimpanzés não existe aversão aos alimentos que contêm álcool. Será necessário fazer um teste experimental, permitindo que os chimpanzés tenham acesso a seiva fermentada e não fermentada, para ver se o etanol é ou não atractivo”, refere Kimberley Hockings. “Como se pode imaginar, obter dados experimentais sobre se os chimpanzés ‘gostam ou não de se sentir’ embriagados é extremamente difícil nas populações selvagens. Além disso, muitas das possíveis explicações para os chimpanzés beberem vinho de palma – medicinais, calóricas, sabor… – não se excluem mutuamente.”
Mas o que nos diz sobre os chimpanzés o facto de sabermos agora que eles também bebem álcool? “Diz-nos, mais uma vez, que somos muitos semelhantes, também deste ponto de vista. Mostra que o consumo de álcool não é algo exclusivo dos humanos modernos”, resume Susana Carvalho. “Teríamos agora de explorar todas a teorias que explicam o consumo de álcool em humanos, para entender em qual se colocaria este comportamento pelos chimpanzés.”