O pio Erdogan esqueceu a modéstia e os turcos não lhe perdoaram
Fez das legislativas um referendo à sua ambição e agora o Presidente turco diz que nenhum partido pode governar sozinho. Os resultados falam por si, mas uma coligação com o AKP é quase impossível.
É pior do que previa Selvi. A Turquia acordou e o AKP (Partido da Justiça e do Desenvolvimento) perdeu a maioria e não tem com quem governar.
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É pior do que previa Selvi. A Turquia acordou e o AKP (Partido da Justiça e do Desenvolvimento) perdeu a maioria e não tem com quem governar.
O actual Presidente, primeiro-ministro até Agosto do ano passado, pedira uma “grande maioria”, “uma nova conquista”, aquela com que pretendia transformar de forma estrutural o equilíbrio de poderes, fazendo votar uma nova Constituição que substituísse o regime parlamentarista por um sistema presidencialista. Assim, poderia terminar o seu desígnio: “a nova Turquia”, que há anos repete estar a construir, cego pela popularidade que mantém entre as bases que desde 2002 e até domingo deram ao seu AKP sucessivas maiorias absolutas.
O AKP continua a ser, de longe, o partido mais votado. Não desce dos 40%, teve 41% e elegeu 258 deputados: são os turcos que viram a sua vida melhorar com Erdogan e que agora se indignam contra os “conspiradores” e “terroristas”, rótulos que o chefe de Estado usa para descrever opositores ou críticos.
Erdogan recusou-se a ver que o país estava a mudar, não percebeu que isso aconteceu por causa da sua arrogância. “A Turquia ainda é uma democracia, não é uma ditadura. A derrota do AKP é fruto das reacções aos protestos do Parque Gezi, em 2013, assim como das aspirações pessoais de Erdogan”, resume no Twitter Hannes Swoboda, ex-eurodeputado austríaco, especialista em política turca e política externa da União Europeia.
“Os que se viam como únicos proprietários da Turquia perderam”, disse na primeira conferência de imprensa depois do escrutínio Selahattin Demirtas, co-presidente do HDP (Partido Democrático do Povo), a formação que irrompeu na Grande Assembleia Nacional, com 13% e 80 lugares entre 550 deputados, roubando assim a maioria ao AKP. “Neste momento, as discussões sobre se a Turquia se vai tornar numa ditadura chegaram ao fim; felizmente, a Turquia deixou de estar à beira do precipício.”
Selahattin Demirtas, advogado de 42 anos, é o grande vencedor das legislativas. Curdo, como os restantes líderes do HDP, abriu o partido a democratas, ecologistas e reformistas de todas as idades e identidades, às minorias culturais e sexuais, ousou propor que nas escolas se deve ensinar a religião de cada um em vez do islão sunita de Estado. Arriscou tudo e venceu. Se o partido, que pela primeira vez concorreu em bloco, tivesse ficado uma décima abaixo dos 10% não entrava no Parlamento e os seus votos seriam repartidos pelas formações mais votadas, beneficiando o AKP.
Erdogan, que nem campanha deveria poder fazer mas que apareceu em público pelo menos duas vezes por dia, roubando sempre o palco ao primeiro-ministro, Ahmet Davotuglu, percebeu que Demirtas era o seu único obstáculo. Por isso, dedicou muito tempo a atacá-lo, ora sublinhando as suas alegadas ligações ao PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão), ora as suas credenciais pouco islâmicas. “Estas pessoas não têm nada a ver com o islão”, disse Erdogan, dias depois de ter levado um Corão em curdo para um comício. “Acredito que os meus pios irmãos curdos lhes vão dar a resposta necessária no dia 7 de Junho.”
O espírito de Gezi
Gezi aconteceu há exactamente dois anos: 3,5 milhões de turcos manifestaram-se em 79 das 81 províncias da Turquia a pedir a demissão do então primeiro-ministro, que denunciaram como um “ditador”.
Tudo começou com um pequeno protesto contra a demolição de um jardim no centro de Istambul. Os manifestantes foram expulsos das ruas, mortos (pelo menos oito), feridos (mais de 8000), detidos (às centenas), mas aquilo a que uns chamam “o movimento de resistência de Gezi” ou “o espírito de Gezi”, ficou. Erdogan é que não viu.
“A geração mais jovem só conhece o AKP e Erdogan. Gezi abriu-lhes os olhos”, sustenta Ismail Saymaz, jornalista do diário Hürriyet. A repressão aos protestos polarizou ainda mais o país. Há bairros de Istambul divididos ao meio, onde os habitantes de uma parte deixaram de ir à metade onde vivem os apoiantes do AKP, que se organizam em milícias para atacar qualquer protesto contra Erdogan. Gezi deixou tudo à vista e, assim “mudou tudo”, incluindo “a forma como os líderes vêem os turcos e a maneira como os turcos olham para os políticos”, diz o pintor Haydar Ozay, que passou Junho de 2013 acampado no parque. Com estes protestos, muita gente “começou a acreditar que podia determinar o seu futuro”.
O sucesso do HDP também é fruto deste espírito. Antes de Gezi, os protestos na Turquia eram sectários. Saíam à rua os curdos, os pró-islamistas, os nacionalistas contra os islamistas. Com Gezi, os turcos manifestaram-se juntos. Aqueles que agora tiraram a maioria absoluta ao AKP.
Com estes resultados, não há escolhas fáceis e antecipa-se um período de instabilidade – a bolsa turca abriu a descer 8% e a lira desvalorizou como nunca face ao dólar e ao euro.
A oposição tradicional conta pouco. Nem se alia a Erdogan nem negoceia com curdos. Os nacionalistas de centro-direita do CHP (Partido Republicano do Povo, fundado por Mustapha Kemal Atatürk), desceram de 26 para 25% dos votos, enquanto a extrema-direita do MHP subiu dos 13% de 2011 para 16%. Demirtas já garantiu que o seu HDP vai fazer oposição. Oficialmente, o AKP procura parceiro de coligação. Na realidade, sabe que nunca o encontrará. Ou Erdogan dá posse a um governo de minoria, que durará pouco, ou marca novas eleições nos próximos 45 dias.
“Acredito que os resultados, que não permitem a nenhum partido formar governo sozinho, vão ser séria e realisticamente avaliados por todos”, disse num comunicado Erdogan, já esta segunda-feira. Recuperando a modéstia perdida, sublinhou ainda que “a opinião da nação está acima de tudo”.