O ogre
À mesa da minha casa um homem perguntou à própria esposa se queria que lhe batesse outra vez. Os arranjos de flores que a minha mãe fez, os naperons delicados da dona Maria do Carmo, da dona Luísa e da Olga, as almofadas coloridas que trouxe do Vietname, o desenho que o Dudu me ofereceu aos três anos de idade, nada foi suficiente para explicar que ali a vida é preparada com outro cuidado, com outro respeito. Senti que a casa se ofendeu. A casa falhou. Eu, definitiva e aflitivamente, falhei.
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À mesa da minha casa um homem perguntou à própria esposa se queria que lhe batesse outra vez. Os arranjos de flores que a minha mãe fez, os naperons delicados da dona Maria do Carmo, da dona Luísa e da Olga, as almofadas coloridas que trouxe do Vietname, o desenho que o Dudu me ofereceu aos três anos de idade, nada foi suficiente para explicar que ali a vida é preparada com outro cuidado, com outro respeito. Senti que a casa se ofendeu. A casa falhou. Eu, definitiva e aflitivamente, falhei.
Só sei cozinhar frango com caril, o arroz sai-me sempre sem sal, mas separado, compro vinho sem que o beba, faço saladas exuberantes com abacates e tâmaras que são o meu verdadeiro orgulho, ponho a tocar na televisão discos da Cecilia Bartoli porque me parece que, assim, a noite vira um baile fino entre cavalheiros e damas. Entendo perfeitamente que quase tudo quanto prepare tenha a premissa da ilusão mas, de verdade, não podia ter mais genuínas intenções, mais sinceros sonhos de que as pessoas estejam bem, sejam felizes, gostem umas das outras e entendam isso. Custa-me que, ao menos por uma noite, quando tudo induz à mais prazerosa conduta, um ogre seja um ogre e não consiga deixar de revelar, diante de todos, que bate na mulher.
Eu não bato em ogres, mas adorava ser musculado e com o dobro do tamanho para espanar uns mosquitos da cabeça de esterco de um tipo assim. Até o caril se azedou de vinagre, e eu nunca uso vinagre, odeio, abomino o sabor antipático de tal coisa. Pensei nas senhoras todas que me amaram e amam, pensei de facto nos bordados pacientes, no arranjo dos cortinados, nas jarras, em como certos objectos chegaram a mim por um sossego feminino, uma criatividade esperançada, a generosidade imensa de quererem garantir que o meu lugar não é um abandono de mau gosto e canastrice. Quando escutamos um homem, por causa de rigorosamente nada, perguntar à mulher se quer que lhe parta outra vez as trombas ali mesmo, todas as coisas do mundo se envergonham. Sentem uma vergonha alheia, insuportável, que espalha vinagre pelos poros de todas as matérias, até pelos insondáveis poros de quem tenha alma.
Tenho uma fotografia do casamento dos meus pais num porta-retratos. É uma imagem a preto e branco que mostra a família com trajes de época na escadaria da casa da minha avó. Todos sorriem numa elegância qualquer. Bem comportados. A olhar para mim, para o futuro, como se já soubessem que eu estaria ali, de alguma maneira encarregue deles. A quietude das fotografias talvez nos sugira a estabilidade dos sentimentos. Julgamos uma fotografia por uma vida. Queremos pensar que o baile fino segue pelo quotidiano, com a Cecilia Bartoli em toda a parte, em colunas discretas, cúmplices. O que creio é que a família tem de ser um abrigo absoluto. Um espaço onde caber a salvo, como se nos ajudasse contra todos os perigos ou, ao menos, contra os perigos desnecessários, injustos, e tanto quanto nos desrespeite.
Se algum dia vos acontecer de, por demorar dois segundos a passar uma colher de queijo, assistirem à humilhação completa de um ser humano por parte de quem o prometeu amar, talvez morram um tempo. As palavras parvas que dizemos são inúteis para uma ressurreição imediata. Perspectivamos o horror da vida de alguém e ele é subitamente tão ostensivo que tudo é horror, como se urgíssemos em fugir, para fugirmos de algo impossível, porque amar um ogre, viver submissa a um ogre é impossível para a dignidade de se ser gente.
Há dias tristíssimos que nos atiram as mariquices todas ao lixo. Ficamos apenas como carnes cruas, feios, empurrados pelo tempo para diante como um assunto pragmático se despacha. O termos cultura, sermos sensíveis, nutrirmos um sonho e saudades, não significa mais nada nesses dias. Parece que, à queima-roupa, somos obrigados a negar tudo isso e a responder como animais desvitalizados, vazios de nós mesmos, ninguém.
Demorarei um tempo a regressar aos bailes. O vinagre ainda exala de minha casa, mesmo que areje no bom tempo desta Primavera e que o sol me queira convencer de que todas as lágrimas secam. Por algum tempo, a Cecilia Bartoli não vai ser igual.