Esta luz que me alumia

A primeira coisa que surpreende é a Catarina Furtado ser sempre a Catarina Furtado. Com a mãe, numa tarde de sol, a recordar o tempo em que foi filha, mantém a fisionomia, a cadência do discurso, o riso que conhecemos da televisão. Mas há um mundo anterior ao sorriso, que marca a atitude e que está na relação entre mãe e filha. Sem a Crinabel, não seria possível compreender a Corações com Coroa... Sem a Helena, não se compreenderia a Catarina.

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Os bastidores da entrevista: o pedido é feito ao assessor de Catarina Furtado. Hora e local combinados em função da disponibilidade da apresentadora, que anda pelo país a gravar um programa para a RTP. Mãe e filha chegam em separado. São calorosas, cúmplices, entregam-se à conversa. Catarina traz uma blusa cor de mostarda de Nuno Baltazar, o criador de moda que a veste há anos, e que põe para as fotografias. Está maquilhada, penteada, está a Catarina Furtado. Sabe evidentemente como posar, domina as questões da imagem. Evidentemente. O trabalho dela passa por aqui. Tem 42 anos e é desde os 19 um sorriso que todos os portugueses conhecem. Helena acabou de fazer 70. É fácil perceber como foi uma mulher bonita, o olhar profundo, a herança goesa. Mais do que tudo, fala embevecida da filha, das filhas, do marido. É uma mulher interessante, com um percurso social e familiar insólito. De certa maneira, parece encarnar a alegria que acompanha a filha. Na entrevista concordaram, discordaram, interpelaram-se, surpreenderam-se. Mais do que de televisão, falou-se da Catarina embaixadora de Boa Vontade do Fundo das Nações Unidas para a População, da vocação solidária que sempre teve, do ambiente em que nasceu e que permite identificar os pontos nucleares do percurso, da estrutura. O Que Vejo e Não Esqueço, o livro que convoca a experiência de Catarina em acções de solidariedade e voluntariado, a ser lançado amanhã, não estava sobre a mesa. Helena ainda não o tinha visto.

Ocorre-lhe alguma carta que a Catarina tenha escrito, daquelas cartas que as crianças escrevem à mãe?
HELENA Furtado — Ocorre. Aquela que escreveste de Bruxelas.
CATARINA Furtado — Dessa falo no livro.
HELENA — Ainda não li o livro, não sei o que diz... Tenho a carta muito presente. Senti um orgulho por, com aquela idade, escrever uma carta com aquelas referências. Eu tinha um irmão que tinha umas possibilidades económicas muito maiores do que as nossas e que levou a Catarina a passar férias com ele.
CATARINA — Eu tinha 14 ou 15 anos.
HELENA — E tudo era muito fácil. Comprava-se tudo. Os condomínios eram os melhores, as melhores habitações.
CATARINA — Era mais das compras nas lojas que eu falava.
HELENA — Falaste de tudo. O sítio onde estavam, que era maravilhoso. E depois dizias: “Agradeço a forma como me educaram, porque é uma maneira melhor.”
CATARINA — “Porque assim não se dá valor ao que se compra.”
HELENA — Mesmo que se possa, a vida não deve ser assim tão fácil, dar às crianças tudo o que elas querem.

Lembra-se bem desta carta, tanto que a incluiu no livro.
CATARINA — Não fui eu que me lembrei de a pôr no livro. Foi o meu pai.
HELENA — O pai sentiu-se um bocado vaidoso. Sem ter estado a martelar, a Catarina e a Marta absorveram princípios que ele achava que eram os correctos. E eu também.
CATARINA — Não tinha consciência de que a tinha escrito. Fui recuperá-la no baú das coisas do meu pai. O meu pai guarda tudo.
HELENA — O pai deu-lhes um dossier, a cada uma, no Dia do Pai, com tudo, tudo.
CATARINA — Desde o primeiro desenho.
HELENA — Aconselho os pais a fazerem isso, a guardarem tudo. Parece que não é nada, mas é muito importante para ver a evolução.

Quando olha para essas cartas e desenhos, quando olha para os seus anos de formação, o que é que aparece mais flagrantemente?
CATARINA — O meu pai guardou todas as folhas da escola primária, onde aparecem os comentários sobre a aluna. A timidez, o ser atenta aos outros. No livro falo de um colega por quem a professora tinha um carinho especial, que vinha de um meio difícil. Ele desenhava superbem. (A professora também era especial. Assim como a minha mãe, como professora foi sempre especial.) Essa professora tinha a capacidade de olhar para ele e de lhe dar aquilo de que ele precisava, enquadrá-lo. Nunca mais o vi. E não é que o encontro na semana passada? “Nélson, passaram 30 e tal anos.” Ele disse: “Sabes o meu nome! Foste tão importante, tu e a professora.”

Vamos ao princípio, ao momento em que conheceu o pai da Catarina. A história começa aí.
HELENA — Conheci o pai da Catarina só pela voz. Tinha tido um acidente a cavalo, estava numa clínica e ouvi uma voz. Viro-me para o José Nuno Martins e digo: “De quem é esta voz tão gira que apareceu agora?” “É um puto que entrou para a rádio este ano. Vais ver que vai ser alguém.”
CATARINA — “Vai ser alguém” é uma expressão tão tola. A pessoa já é alguém.
HELENA — Alguém na rádio.

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Conhecia o José Nuno Martins e o meio da rádio porquê?
HELENA — Porque andei na Rádio Universidade e o Zé Nuno também.
CATARINA — A minha mãe, vinda da família tradicional, cheia de recursos, brasonada, saiu uma grande rebelde. Mas porque é que a mãe quis ir para a rádio?
HELENA — Porque era giro.

Como é que era a sua família?
HELENA — Era muito conservadora. Supercatólicos.
CATARINA — Havia aulas de Piano e Francês em casa.
HELENA — A minha mãe foi uma das primeiras pessoas a tirar Belas-Artes. E o meu pai também. Era suposto terem uma abertura. Os filhos podiam fazer a vida que quisessem, mas as filhas, não. Iam levar-nos à escola. Iam buscar-nos à escola.
CATARINA — Esperavam que a mãe fizesse o quê, na vida?
HELENA — Esperavam que tirasse o curso de Pintura. E, quando chegasse a idade, casasse. Éramos sete irmãos, seis foram para Pintura e Escultura. Só o mais velho é que foi para Medicina.

A riqueza da família...
HELENA — Era dos meus avôs, quer de uma parte quer da outra.
CATARINA — A parte da minha avó vem de Goa. A parte do meu avô vem do Norte.

Como é que foi a sua infância?
HELENA — Foi muito feliz, cortada pela censura do meu pai. Vou mostrar-lhe esta fotografia...
CATARINA — A minha mãe é esta. Esta é a piscina em casa dos meus avós. Uma beleza de Hollywood.
HELENA — Vivíamos em Lisboa num prédio que o meu avô tinha comprado. Um andar para cada filho. Um jardim enorme por cada andar.

Porque é que a Helena ficou tão exterior a esse ambiente?
HELENA — O pai [Joaquim Furtado] tem a mania que foi pela presença dele, mas não. Já antes de o conhecer andei em coisas irreverentes. Na Tarantela (um café) convivi com pessoas da Rádio Universidade, quando ainda frequentava a António Arroio. O Quim muito chateado porque tudo girava à minha volta.

Era especialmente bonita. Quando se vêem as fotografias desse tempo, é como se se estivesse a olhar para a Catarina.
CATARINA — É mais a minha irmã.
HELENA — Eu tinha noivo, para casar. Olhei para o Quim: “É giro. Pena ser tão novo.” Ele é três anos mais novo que eu.
CATARINA — Ele está mais bonito agora do que antes. 

O que é que foi tão atraente no Joaquim quando o conheceu? Além de ser bonito e novo.
HELENA — Era a forma de ele ser.

Imagino que se distinguisse do seu noivo, conservador, com um perfil adequado à expectativa do seu pai.
HELENA — A minha mãe já tinha ido escolher as alcatifas ao Rossio para a casa que íamos habitar [risos]. Era um chalé no Campo Grande.
CATARINA — Depois foram para umas águas-furtadas de uma assoalhada, quase. Estou a brincar, mas o contraste...
HELENA — Não me arrependo de nada.

O que é que sabe da história de amor dos seus pais?
CATARINA — Sei mais pela minha mãe do que pelo meu pai. O meu pai não conta muito. O meu pai vem de um meio mais humilde. Isso deu-me os ingredientes complementares. Se tivesse só [o estilo de vida] de uma família tradicional como a da minha mãe, apesar de a minha mãe ser rebelde, tolerante... Há questões muito evidentes na sua educação que se mantêm.

Por exemplo.
CATARINA — A nível religioso. A minha mãe só viveu dificuldades já casada com o meu pai — o que demonstra uma coragem muito grande. É uma das coisas que mais admiro na minha mãe. Isto são provas muito evidentes de que o amor salva. O amor reorganiza, abana e acrescenta. A minha mãe ficou acrescentada e o meu pai ficou acrescentado. Não só pelo que viveram, mas pelas vidas que trouxeram um ao outro. Têm raízes completamente diferentes. O meu pai tem muito mais medo de arriscar do que a minha mãe. E tem que ver com isso.

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Helena Furtado com as filhas e o marido, Joaquim Furtado. Catarina nasceu em 1973, Marta em 1977

Há uma confiança de base em relação à vida quando se nasce bem — é isso?
HELENA — Tenho uma posição muito positiva. Acho sempre que vamos ultrapassar [as dificuldades].
CATARINA — Tenho a certeza de que este meu olhar atento aos outros tem que ver com estes dois pólos antagónicos.

A Catarina e a Marta cresceram sempre em contacto com esses dois mundos.
CATARINA — Sempre.

De um modo geral, as pessoas têm pudor em falar de dinheiro e de como isso marca as suas expectativas e percursos. Em Portugal, o preconceito de classe era vincado quando casaram. Nos nossos dias, apesar dos passos dados, as pessoas continuam, de uma maneira geral, a casar com os do seu meio.
CATARINA — E quem não o faz tem de atravessar [um deserto].

O pai do Joaquim era bombeiro.
CATARINA — Mas o meu avô até sabia ler e escrever. A minha avó, não. Fruto das circunstâncias do tempo, da desigualdade com base no género, nunca aprendeu. E é das pessoas mais inteligentes que conheci até hoje. Com as características que tinha, se lhe tivessem sido dadas oportunidades, podia ter sido o que quisesse. Isto é uma das coisas que me fazem mais confusão.

Imagino que a Helena tenha tido de lutar contra esse preconceito generalizado. Como é que foi?
HELENA — No primeiros anos, foi difícil. Não tanto para mim. Julgo que até mais para o meu marido.
CATARINA — Comigo nunca falou de nada.
HELENA — Falava. Contigo não, mas falava. Havia aquelas festas na casa da minha mãe...
CATARINA — O meu pai também nunca se calava. Se se falava de Deus, o meu pai punha imensas questões. Se se falava de política, o meu pai punha imensas questões.
HELENA — Eu dava-lhe muitos pontapés debaixo da mesa [risos]. Depois, foi o maior amigo da minha mãe. Engraçado. A minha mãe adorava-o. A minha mãe passou meses em minha casa e ele sempre muito preocupado com o bem-estar dela.

Por mais irreverente que fosse, para olhar e se apaixonar desta maneira, o Joaquim tinha de ter qualquer coisa especial. Que é que era? Há pouco foi sumária na descrição.
HELENA — Coisas que as pessoas não sabem muito bem dizer. Tinha um olhar. Era sedutor. E era uma pessoa com uns princípios claros e definidos que me encantaram.
CATARINA — Não foi o sentido de humor?
HELENA — Muito, também. E a poesia. Ele nunca publicou, mas tem cadernos de poesia.
CATARINA — Agora tenho de ser eu a roubar aquilo lá em casa. Esta carta que o pai lhe escreveu ontem [pelos 70 anos de Helena] foi poesia?
HELENA — Foi. Vamos fazer 44 anos de casados.
CATARINA — Isso é maravilhoso. Está a ver? Tem de se portar melhor, a mãe porta-se muito mal.

Quando é que a Catarina começou com isto de a repreender?
CATARINA — Sou a conservadora lá de casa.
HELENA — É desde sempre. Não me deixava fumar. Tomava sempre a parte do pai.
CATARINA — Não é verdade, não tomo sempre a parte do pai.

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A Catarina é muito maternal, o que se exprime de diferentes maneiras, também nesta do tomar conta. Sendo mais disciplinadora ou mais terna.
CATARINA — A minha mãe diz que sou muito autoritária.
HELENA — Pode ser, um bocadinho [risos]. Mas tenho a noção completíssima de que é por julgar que é o meu bem.
CATARINA — Por julgar não: por ter a certeza. [risos]
HELENA — Temos assim alguns arrufos. Sei que o faz pelo meu bem-estar, mas às tantas penso: “Tenho 70 anos!”
CATARINA — Há diferenças em nós. E há muitas coisas que nos unem. Até escolhas. O exemplo que a minha mãe teve com o meu pai é o exemplo que tenho com o meu marido.

No fundo, é um replicar da história de amor com que cresceu.
CATARINA — Sim, e inconscientemente. Temos em comum a tolerância e o combate à discriminação. Se há coisa que os quatro temos, é uma alergia à injustiça.
HELENA — Desde criança, com a minha mãe, desagradava-me a maneira como ela tratava as empregadas. “Criadas”, na altura. Despedia-as por nada, não se importando com a relação que tínhamos com elas. Eram mais que mães para mim.
CATARINA — O meu pai é um humanista por natureza. E um feminista. E o João [Reis, marido de Catarina, actor] também. A coisa que mais nos diferencia e que justifica esta tendência para o autoritarismo (às vezes sou até manipuladora) é a minha mãe não ter força de vontade nenhuma.

Para quê?
HELENA — Para as dietas [risos].
CATARINA — Não é só para as dietas. É para tomar conta de si. São as coisas que lhe fazem mal à saúde — e a minha mãe está-se nas tintas. Os comprimidos não são tomados até ao fim. É preciso fazer exercício e não faz.

Porque é que desistiu de tomar conta de si?
HELENA — Não desisti. Até fiz duas operações. Tenho dor de cabeça diária. Não há dia nenhum em que não acorde cheia de dores de cabeça. Mas não desisti. De vez em quando, tenho umas fases... Apetece-me um doce, pronto. Gosto de comer bem.
CATARINA — Todas as pessoas da minha família materna são pessoas grandes. Têm o culto da mesa.
HELENA — Está no ADN, também.
CATARINA – No meu, felizmente, não está.
HELENA — É sorte.

A Helena começou a engordar com que idade? Tinha a idade da Catarina?
HELENA — Não, muito depois.
CATARINA — Não foi nada, mãe. Foi antes.
HELENA — Amor, a tua idade foi a minha melhor idade. Até aos 50, foi a minha melhor idade.
CATARINA — Ontem, encontrei uma professora minha do ballet. Foi uma emoção. De repente, vejo a minha filha, com nove anos, no Conservatório onde andei toda a vida, com a mesma professora. “Catarina, estás na melhor idade de todas. A partir dos 50, tudo cai.”
HELENA — Ainda ontem o pai disse isso. Dos 40 aos 50, sentia-me bem, bonita. Isto é um disparate! [riso]

Há uma fotografia do Facebook da Helena e da Catarina em que se percebe como era. Bonita e elegante.
HELENA — Nessa fotografia, a Catarina tem seis. Eu tinha 32 anos. A Marta nasceu em 1977.
CATARINA — Nessa fotografia, vê-se bem que o João Maria [filho] sou eu.
HELENA — Também dizem que é a Beatriz [filha].

Começou a desenvolver esse sentido maternal muito cedo. Quando é que quis ter filhos?
CATARINA — Sempre achei que ia ter filhos.
HELENA — Todos os meus sobrinhos têm uma adoração por ela, todos.
CATARINA — E eu tenho uma coisa muito especial por todos eles. Alguns até são mais velhos do que eu. Os filhos: não sei, desde sempre. Se estivermos a analisar, deep, deep, deep, esta vocação foi muito potenciada pelo facto de a minha mãe ter enxaquecas desde sempre. Não me lembro da minha mãe sem enxaquecas. A minha mãe passava muito tempo na cama e nós não podíamos fazer barulho. A partir do momento em que a minha irmã nasce, comecei a tomar conta dela. Mas aquilo para mim era natural. Não foi uma coisa que os meus pais me tivessem dito para fazer.
HELENA — A Marta só vestia, só calçava o que a Catarina lhe dizia. “Tu não sabes, a Catarina é que sabe.”
CATARINA — Sempre quis ter imensos filhos. Mas nunca pensei na questão do casamento.
HELENA — O casamento pela igreja foi mais por mim, tenho a impressão. Por mim e pelos avós.
CATARINA — Acho que não. Se tivesse de repetir, repetia tudo. Tirava os paparazzi e a avioneta a sobrevoar!

Na sua carreira, nos vários programas que foi fazendo, assumiu muitas vezes a atitude daquela que toma conta. Toma conta dos candidatos que vão prestar provas.
CATARINA — Sim. Vou tendo afilhados, pessoas que tenho debaixo da minha asa. Os miúdos da culinária, os da dança..., tomo conta. Mesmo ao longe.
HELENA — Vai sendo madrinha.

E de quem é afilhada? Quem são as pessoas a quem se entrega para que tomem conta de si?
CATARINA — Não tenho muito jeito para que tomem conta de mim, tenho mais jeito para tomar conta. Pessoas de quem gosto e que tomem conta, mesmo que eu não precise e que faça a pessoa acreditar que está a tomar conta? O Diogo Infante. Era um sonho que tinha desde sempre, ter um irmão mais velho. Adoptei-o.

Quando baixa a guarda, quem é que toma conta de si? A sua mãe, o seu pai? 
HELENA — Eu, um bocadinho, em certos aspectos.
CATARINA — Acho que são os meus filhos — sem perceberem que são eles. Quando estou em momentos mais frágeis, ou de maior instabilidade, são eles. Não há nada mais arrebatador do que o amor que sinto pelos meus filhos. Ali está tudo certo. Normalmente, não preciso muito de desabafar, falar. Pergunto imenso, mas há um momento em que decido, mesmo contra todas os conselhos que me dão.

Os filhos é que são a passagem da menina para a mulher?
CATARINA — [pequena pausa] Não.
HELENA — Eu acho que sim.
CATARINA — Acha?
HELENA — O teu comportamento mudou. Passou tudo a ser em função dos filhos, tudo.
CATARINA — Há 15 anos que sou embaixadora das Nações Unidas. As minhas duas gravidezes coincidiram com algumas viagens. Na primeira viagem que fiz [para a gravação do programa] Príncipes do Nada ainda não tinha feito os três meses de gravidez. Fui sem ninguém saber, a não ser o meu médico e o João. Muito francamente, penso que são as vivências a que tenho assistido ao longo destes anos que me fizeram, em tudo, mulher. A entender as mulheres. Mulher a entender-me a mim. Mulher a defender as mulheres. Muito mais do que ser mãe.

O que é que a Helena nota de diferente no comportamento da sua filha?
CATARINA — Eu sei. Passei a arriscar menos.
HELENA — Era muito aventureira e deixou de ser tanto.
CATARINA — Por eles. Por pensar que se me acontecer alguma coisa… Nas viagens, na forma de viver. Apesar de não ser muito radical, era destemida.

Isso surpreende. Tem a imagem da menina bem-comportada. Onde é que está esse lado destemido, aventureiro?
CATARINA — Toda a gente diz isso. Ser bem-comportada é uma coisa que foi mudando. Tinha muito mais pudor em dizer o que pensava. Sempre numa perspectiva de que havia alguém que podia não concordar e ficar ferido. Hoje não me incomoda nada dizer o que penso.
HELENA — Mudaste muito desde o primeiro Príncipes do Nada. Ela vinha completamente transtornada.

De repente, tinha encontrado a vida em cru, depois de anos vividos sob o estrelato. Contraste absoluto.
CATARINA — Tinha consciência desse mundo. Apesar de viver no estrelato — cá para fora —, dentro da minha casa sempre se falou de desigualdade. O meu pai, jornalista, sempre trouxe o mundo real. O impacto resulta de ver com os meus olhos. O verdadeiro impacto resulta de estar tempo com as pessoas e não passar por elas [de raspão]. E sentir que todos nós, em cada uma das nossas funções, pode fazer muito mais do que fazemos. Isso deixou-me, nos primeiros tempos, quase paralisada.

Com a sensação de que tinha estado a desperdiçar tempo para trás?
CATARINA — Sim. E a pensar que tem de haver uma fórmula de isto ficar mais equilibrado. Foi tudo muito inquietante. O maior impacto de todos — isso sim, mudou-me radicalmente — foi ver mortes evitáveis. Fazia o paralelismo constantemente.
HELENA — Como ela tinha tido as crianças e os partos foram tão assistidos...
CATARINA — Aí dá uma revolta. E todas as vezes que vou, volto muito revoltada.
HELENA — Ela ficou com uma criança nas mãos [cuja] mãe morreu. Também julgo que a tua sensibilidade partiu um bocado da Crinabel.

Ainda não falámos da Crinabel, uma escola de ensino especial, onde a Helena trabalhou anos e de que foi fundadora.
HELENA — Eu era professora do ensino oficial, mas escolhi ir dar aulas para a Crinabel. As minhas filhas foram para lá muito cedo. A Marta tinha três meses.

Dava aulas de Desenho?
HELENA — De EVT, Educação Visual e Tecnológica. Depois criei um atelier de Artes Plásticas. Fizeram coisas maravilhosas, os alunos. Nos meses de férias, em que era preciso ir para a praia, e como tinha o problema das enxaquecas, a Catarina começou a ajudar-me a fazer o meu papel. Tinha para aí uns nove anos. “A mãe vai, fica à sombra.” E ela entretinha os miúdos, que gostavam muito mais de brincar com ela do que comigo, evidente. Ela conseguia jogar, brincar, levá-los à água. Havia lá um miúdo que andava sempre com um rádio. Naquele dia não pôde levar o rádio e ouviu um casal que estava a ouvir rádio. Chegou-se para lá para ir buscar o rádio. Tinha a mania de cumprimentar todas as pessoas, todos muito simpáticos... Mas a senhora disse para a Catarina: “Tire-me isso daqui!”

Começa o livro por este episódio. A Catarina conta que cuspiu à senhora por esta se referir ao menino como “isso” e pedir que lho tirasse dali.
HELENA — Foi de tal maneira que [aquele casal] foi pedir à capitania para nos obrigar a ir para outro sítio.

Fale da importância que a Crinabel teve para si. Foi uma primeira forma de lidar com o diferente.
CATARINA — Com a discriminação.

Eram sobretudo meninos com Trissomia 21?
HELENA — E com autismo e problemas cerebrais.
CATARINA — Havia também crianças com dificuldades de aprendizagem.

Sentia-se afortunada porque as suas filhas não tinham nenhum daqueles problemas?
HELENA — Eu sentia-me muito agradecida, todas as noites. É muito duro para os pais. Íamos de propósito fazer uma semana fora com eles para que os pais tivessem uns dias [de descanso].
CATARINA — Eu não me sentia afortunada porque não tinha essa consciência. Quando fazia o voluntariado, com esta idade, não sentia diferença. Para mim, era muito estranho alguém estar a apontar. Só sabia que eram alunos da minha mãe. OK, não eram exactamente iguais a mim, mas nunca os vi como menores ou diminuídos. Nunca. O que sentia pairar no ar, porque a minha mãe devia falar sobre isso, era a ideia de que os pais iam morrer.

E que aqueles meninos iam ficar desamparados?
CATARINA — A Trissomia 21, agora não tanto, estava muito associada a mães mais velhas. Havia uma nuvem negra e pensava: “Coitadinhos, vão ficar sem os pais.”

Quais eram os seus medos de infância?
CATARINA — Só tinha um medo: morrer. Ainda é o mesmo, ainda não o resolvi.
HELENA — Muito, muito.

Falava nisso?
CATARINA — Sim, tinha pânico de morrer. Não me imaginava a morrer de nenhuma forma concreta, nem de doenças. Mas imaginava que um dia isto acaba. É a frase que me tem perseguido.
HELENA — O pai dela também tem isto. Eu não.
CATARINA — O medo intensificou-se. Porque tenho os filhos. Um dia não vou ver mais os meus filhos? E os meus pais? Fico sem chão. Viro a menina não-mulher. Uma criança autêntica. Não consigo resolver isto. Ninguém dá uma resposta.

Voltemos lá atrás. Muito rapidamente, a Catarina transformou-se no fenómeno que todos conhecemos. Temeu por ela, que o estrelato a desestabilizasse demasiado?
HELENA — Não. Tinha tanta confiança nela, na força dela. Só fiquei muito triste quando decidiu ir para Londres.

Era uma miúda de 19 anos apontada como “a namoradinha do país”. Uma pessoa está ainda a formar-se, é muito fácil perder o pé.
CATARINA — Sim, vemos tantos exemplos.

Há um processo de passagem do tempo que é feito à vista de todos. Pode ser cruel. É seguramente difícil de gerir.
CATARINA — É violento.
HELENA — Nunca tive medo. Ela não procurou a glória.
CATARINA — Glória: que palavra antiga e bonita. Não sou nada ambiciosa, é verdade.
HELENA — Não queria nada dar nas vistas.
CATARINA — É curioso, ninguém acredita nisso [risos].
HELENA — Mas eu sei que é assim. Fomos uma vez para a casa da minha irmã, para uma praia deserta, entre rochas: “Pronto, aqui estás segura, aqui estás bem.” Ela tinha essa preocupação, não queria que as pessoas se metessem.
CATARINA — Não é que se metessem, com isso não tenho problema nenhum.
HELENA — Tu falas com as pessoas. Se forem velhotes e criancinhas, estás na maior.
CATARINA — Se for a minha geração, tenho menos paciência.

“E se não gostarem de mim amanhã? E se não tiver audiências e perder a graça?” Teve este fantasma? Uma parte do sucesso tem que ver com a juventude, com a graciosidade.
CATARINA — Tem. Mas até nisso as coisas têm sido harmoniosas. Não tenho hoje a audiência que tinha há uns tempos.
HELENA — Também por conta do trabalho que fazes.
CATARINA — Há coisas que são opções minhas, outras não. Tenho tido o privilégio de poder fazer escolhas. A passagem da SIC para a RTP ainda vem no apogeu de formatos como o Dança Comigo, que foi top de audiências. Na RTP, baixaram as audiências, não só as minhas. Sei que é uma coisa com a qual tenho de lidar todos os dias. Vou lidando porque encontrei um caminho onde me sinto completamente feliz, que é este meu lado [solidário]. Não sei se consigo sobreviver dele. Por enquanto, tenho conseguido conciliá-lo [com outros formatos e projectos]. O facto de saber muito bem o que quero, onde me sinto bem, dá-me essa tranquilidade.

Como é que se fez tão segura de si, tão a saber o que quer?
CATARINA — Não sei. Há aqui uma coisa importante. Não quero um império Catarina Furtado. Nunca quis. A descentralização é o segredo para a minha tranquilidade. Não vivo mesmo a pensar em mim. Preocupo-me com o meu projecto profissional, sou muito obstinada, muito trabalhadora.

Toda a gente diz que chega sempre a horas, é dedicada, profissionalíssima. Não se permite não ser assim?
CATARINA — Nem o permito aos que trabalham comigo. Sou muito exigente comigo e sou muito exigente com os outros. Só assim alguém pode dar passos seguros em qualquer profissão. Mas as coisas não estão no meu umbigo. Não é o meu umbigo que dita os meus passos.
HELENA — Sempre deste passos com os outros. Isto leva a que não tenhas preocupações excessivas contigo própria.
CATARINA — Não foi premeditado. Foi natural ter criado a [associação] Corações com Coroa. Não seria nada natural construir um emprego à volta da minha imagem. Não me sentiria realizada. Isso sim, trar-me-ia muitas inseguranças.
HELENA — A segurança dela é inata.
CATARINA — Mãe, não é verdade. Em criança, não era nada segura. Era tímida, e a timidez passa por uma certa insegurança.
HELENA — Eras tímida até certa altura.
CATARINA — Até entrar no Conservatório. Mais do que segura, adoro andar cá. Adoro pessoas, adoro lidar com pessoas. Gosto muito de viver, gosto muito de rir. Sempre fui assim.
HELENA — Nesse aspecto, sais a mim.

Então, sai mais a si ou ao Joaquim?
HELENA — Vou ser muito franca. O rigor, a disciplina, algum pessimismo: sai ao pai. O rir, a alegria, é mais eu.
CATARINA — Sou uma boa mistura.

Ele vai divertir-se se ler isto?
CATARINA — Vai censurar. O meu pai sempre afirmou o que pensava, mesmo que isso significasse um despedimento logo a seguir. O não ter medo vem dele. Isto deu-me um mundo enorme.

Querem dizer uma última palavra? Uma palavra para a sua mãe.
CATARINA — Luz.

Uma palavra para a sua filha.
HELENA — Tudo.
CATARINA — Oh, querida.
HELENA — É mesmo.