O estalinista e a sua musa
A crítica mais ilegítima e intolerável que se pode fazer a um escritor é a de ter apagado, rasurado, modificado ou reescrito o que antes tinha publicado. Ainda que haja a generalizada convicção de que isso pode ter sido mau ou até desastroso para a sua obra, ninguém tem o direito de querer limitar a soberania de um autor, que às vontades e caprichos dos leitores e do público em geral deve responder à César Monteiro: “Eu quero que o público se foda”. Seria esta a resposta mais adequada a uma acusação de que José Saramago tem sido alvo: até há poucos dias de maneira informal, na semana passada, em letra de forma e de jornal online, o Observador, num longo artigo intituladoIsabel da Nóbrega, a musa que Saramago apagou da (sua) história, da autoria de Joana Emídio Marques. O motivo é este: na primeiras edições de Memorial do Conventohavia uma dedicatória “À Isabel, porque nada perde ou repete, porque tudo cria e renova”. A Isabel a quem é dedicado o livro é a escritora Isabel da Nóbrega, que viveu com José Saramago mais de uma dezena de anos. A partir de uma das reedições, essa dedicatória desapareceu. Ecoando a indignação de gente impoluta, a jornalista diz que muitos classificam este acto como “estalinista”, e ela própria acha que “Saramago tentou obliterá-la para todo o sempre, o que terá sido mais terrível”. Segundo esta lógica, uma dedicatória é um testemunho e uma verdade irrevogáveis e inalteráveis, como um arquivo histórico, e suprimi-la é produzir uma mentira. Não será antes o contrário? Manter uma dedicatória que diz a verdade, na circunstância em que foi escrita, mas que passado algum tempo soa como mentira, ou apenas irrelevante e não pertinente, a quem a escreveu, isso sim, é uma insuportável mentira. Quem pôs uma dedicatória é livre de a retirar. E só poderia ser acusado de uma acto de obliteração estalinista se mandasse – no caso de ter poder para tal - apagar a dedicatória nos livros que foram depositados nos arquivos e nas bibliotecas públicas. Ora, não consta que Saramago tivesse assaltado as bibliotecas. De dedicatórias que desapareceram dos livros está a literatura cheia. Pela lógica inadmissível e infamante deste artigo, um terrível estalinista, muito pior do que Saramago, é Joaquim Manuel Magalhães, que em Um Toldo Vermelho fez desaparecer todas as dedicatórias dos seus poemas. Desse livro, ergue-se um coro de decapitados, suprimidos e obliterados. Uni-vos! Tendo uma vez entrevistado Joaquim Manuel Magalhães, perguntei-lhe porque é que havia um verso num dos seus livros onde se lia “Podei as sardinheiras de dois anos” e numa edição posterior esse verso já era “Podei as sardinheiras de seis anos”. A resposta foi categórica: “Porque, entretanto, já se tinham passado mais quatro anos. A única coisa que isso nos faz descobrir é que o tempo passou”. A quem acha que as dedicatórias dos livros de Saramago é um património público sobre o qual o autor não pode interferir sem cometer um crime, deve-se responder: “Descubram que o tempo passou, e que toda a gente tem o direito de agir em conformidade com a passagem do tempo”. O artigo do Observador tinha um outro objectivo que não era pura e simplesmente o de acusar Saramago de um apagamento, sub specie “estalinista”: resgatar do esquecimento público a escritora Isabel da Nóbrega. Mas nenhuma justiça lhe pode ser feita se essa evocação faz dela a “musa” caída de Saramago; e se o assunto acaba por ser as “pernas bonitas” os “incríveis olhos”, e a superioridade de classe de Isabel da Nóbrega. Que venha agora alguém e a salve dos seus salvadores.
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A crítica mais ilegítima e intolerável que se pode fazer a um escritor é a de ter apagado, rasurado, modificado ou reescrito o que antes tinha publicado. Ainda que haja a generalizada convicção de que isso pode ter sido mau ou até desastroso para a sua obra, ninguém tem o direito de querer limitar a soberania de um autor, que às vontades e caprichos dos leitores e do público em geral deve responder à César Monteiro: “Eu quero que o público se foda”. Seria esta a resposta mais adequada a uma acusação de que José Saramago tem sido alvo: até há poucos dias de maneira informal, na semana passada, em letra de forma e de jornal online, o Observador, num longo artigo intituladoIsabel da Nóbrega, a musa que Saramago apagou da (sua) história, da autoria de Joana Emídio Marques. O motivo é este: na primeiras edições de Memorial do Conventohavia uma dedicatória “À Isabel, porque nada perde ou repete, porque tudo cria e renova”. A Isabel a quem é dedicado o livro é a escritora Isabel da Nóbrega, que viveu com José Saramago mais de uma dezena de anos. A partir de uma das reedições, essa dedicatória desapareceu. Ecoando a indignação de gente impoluta, a jornalista diz que muitos classificam este acto como “estalinista”, e ela própria acha que “Saramago tentou obliterá-la para todo o sempre, o que terá sido mais terrível”. Segundo esta lógica, uma dedicatória é um testemunho e uma verdade irrevogáveis e inalteráveis, como um arquivo histórico, e suprimi-la é produzir uma mentira. Não será antes o contrário? Manter uma dedicatória que diz a verdade, na circunstância em que foi escrita, mas que passado algum tempo soa como mentira, ou apenas irrelevante e não pertinente, a quem a escreveu, isso sim, é uma insuportável mentira. Quem pôs uma dedicatória é livre de a retirar. E só poderia ser acusado de uma acto de obliteração estalinista se mandasse – no caso de ter poder para tal - apagar a dedicatória nos livros que foram depositados nos arquivos e nas bibliotecas públicas. Ora, não consta que Saramago tivesse assaltado as bibliotecas. De dedicatórias que desapareceram dos livros está a literatura cheia. Pela lógica inadmissível e infamante deste artigo, um terrível estalinista, muito pior do que Saramago, é Joaquim Manuel Magalhães, que em Um Toldo Vermelho fez desaparecer todas as dedicatórias dos seus poemas. Desse livro, ergue-se um coro de decapitados, suprimidos e obliterados. Uni-vos! Tendo uma vez entrevistado Joaquim Manuel Magalhães, perguntei-lhe porque é que havia um verso num dos seus livros onde se lia “Podei as sardinheiras de dois anos” e numa edição posterior esse verso já era “Podei as sardinheiras de seis anos”. A resposta foi categórica: “Porque, entretanto, já se tinham passado mais quatro anos. A única coisa que isso nos faz descobrir é que o tempo passou”. A quem acha que as dedicatórias dos livros de Saramago é um património público sobre o qual o autor não pode interferir sem cometer um crime, deve-se responder: “Descubram que o tempo passou, e que toda a gente tem o direito de agir em conformidade com a passagem do tempo”. O artigo do Observador tinha um outro objectivo que não era pura e simplesmente o de acusar Saramago de um apagamento, sub specie “estalinista”: resgatar do esquecimento público a escritora Isabel da Nóbrega. Mas nenhuma justiça lhe pode ser feita se essa evocação faz dela a “musa” caída de Saramago; e se o assunto acaba por ser as “pernas bonitas” os “incríveis olhos”, e a superioridade de classe de Isabel da Nóbrega. Que venha agora alguém e a salve dos seus salvadores.