Lydia Davis: “Rebelo-me contra a visão americano-centrada do mundo”
As convenções não assentam na escrita breve de Lydia Davis, uma das mais prestigiadas e inventivas autoras de língua inglesa, tradutora de Proust e Flaubert. Dois anos depois de ter vencido o Man International Booker Prize e após publicar mais um livro de histórias em português, fala da sua escrita agarrada ao real, tão breve que pode assumir a forma de um poema.
Quer uma pausa antes de começar uma conversa sobre a sua escrita. Vencedora do Internacional Man Booker Prize em 2013, um dos prémios mais prestigiados da literatura, é considerada umas das escritoras mais inovadoras em língua inglesa. Natural de Massachusetts, onde nasceu em 1947, é uma autora concisa, irónica, uma observadora acutilante do real, escreve histórias tão breves quanto intensas, sempre numa relação muito próxima com o leitor. O seu livro mais recente, Não Posso Nem Quero (Relógio d’Água), foi publicado no início do ano em Portugal.
“Nunca estive em Portugal. Há pouco tempo estava em Barcelona e disseram-me que devia ir a Lisboa, que não estava ainda tomada por turistas.” Tradutora para inglês de Simenon, Blanchot, Proust e Flaubert reflecte sobre o modo como a tradução influencia o que escreve e como não estar centrada no inglês a torna contestatária de uma visão americana do mundo. Diz que tem Fernando Pessoa na sua estante. “Um jovem amigo falou-me dele de forma tão entusiástica. Mas ainda tão tive tempo de me dedicar”. Não será capaz de o ler em português, diz saber apenas o suficiente para “ler coisas simples”, mas já traduziu para inglês a história de uma favela do Rio de Janeiro. Está a horas de regressar de comboio à terra onde vive com o marido, o pintor Alan Cole, perto de Albany, a pouco mais de duas horas de Nova Iorque. Antes, foi casada com Paul Auster, com quem viveu em França, onde aprofundou os conhecimentos em francês. No fim da conversa, tira da mala uma caixa de chocolates. “São para si.”
Li recentemente um artigo em que se referia a si como a escritora mais concisa do mundo.
Oh meu Deus! (risos)
Acha estranha a definição?
Acho que faz sentido. Não sei em que termos seria dito, se conciso era ser curto. Uma vez estava a tentar chamar conciso a Proust porque associo ser conciso com ser económico e acho que ele é económico, não importa o quão longos são os seus livros ou longas as suas frases. Quando digo que Proust é económico significa que ele não diz mais do que tem para dizer. Eu também tento fazer isso. A maior parte das histórias do meu livro mais recente são muito curtas. Há uma, chamada Carta à Fundação, que se entende como uma ladainha, mais longa, mas com repetições. Para mim ela continua a ser económica porque está exactamente com era suposto. Não tem sobras. Eu queria que fosse repetitivo.
A capacidade de concisão foi uma das características mais sublinhas pelo júri que lhe atribuiu em 2013 o Man International Booker Prize. É possível falar de efeitos na sua carreira?
Os meus livros têm um maior interesse internacional. Eu era publicada em algumas línguas estrangeiras, mas isso aumentou.
Tem dito que prefere chamar aos seus contos apenas histórias. Na capa do seu último livro, Não Posso nem Quero, aparece essa palavra como complemento: histórias.
Sim, é verdade. Não há muita gente que dê pela diferença. A palavra ‘conto’ para mim significa algo na tradição do que escrevia Hemingway ou Fitzgerald, Updike, Cheever, Catherine Mansfield, Flannery O’Connor. Embora seja cultivado por muitos escritores diferentes, há uma forma aceite e uma espécie de extensão mínima. Algumas das minhas histórias obedecem a essa categoria, mas a maior parte não. Acho que a palavra ‘história’ é mais genérica, mais abrangente, permite maior liberdade. Pode ser um “deixe-me contar-lhe uma história sobre o que aconteceu ontem”, ou pode ser a história do Guerra e Paz.
Algumas dessas suas histórias têm a forma de poemas, outras são apenas uma frase. Como é que as trabalha, depurar até chegar à fórmula mínima?
Tem a ver como o modo como começam, quase sempre com material da vida real, e outras vezes da minha cabeça, de leituras que faço. Mas quase sempre da vida real. Tento ser sensível ao espaço de que essa inspiração original precisa. Se apenas necessita de uma pequena expressão então não tento torná-la maior. As coisas aparecem-me num modo muito breve mas completas, uns todos em fórmulas breves. Muitas vezes limito-me muitas vezes a tirar-lhes uma palavra ou duas. As maiores demoram-me mais porque há mais linguagem a trabalhar. Podem surgir um instante, mas tomam-me mais tempo.
E como é que tudo começa?
Começa com a realidade, com a vida real, ouvir pessoas, observar pessoas, quando viajo ou em casa. Estou sempre muito atenta.
Toma notas?
Sim. Tenho sempre um bloco de notas, escrevo as ideias o mais rápido que posso porque se perco a palavra exacta posso perder todo o sentido. As palavras exactas importam, mas geralmente são frases e padrões. Os padrões interessam-me muito. Há uns cinco anos contaram-me uma história que ficou na minha cabeça. Muito recentemente contaram-me outra história e essa mais antiga surgiu, muito clara. Eram sobre o mesmo tema. Claro que agora quero muito escrever sobre isso. Uma coisa muito curta, o suficiente para que essas duas histórias surjam com a força com que as recebi. É, de facto, o real que alimenta a minha ficção. Cada vez mais. Comecei por escrever ficção muito ficcionada e é cada vez mais menos ficção. Mas não se confunda, as minhas histórias não dizem a verdade, a verdade sobre uma situação ou sobre mim. Elas são verdadeiras em relação aos meus sentimentos, a verdade da minha visão. Tem a ver com honestidade também, mas há histórias que podem ter um narrador desonesto. É um território ardiloso. Como o caso da tal Carta à Fundação. É escrito por uma mulher que está próxima de mim, mas não soeu eu, que partilha alguns dos meus sentimentos, mas são tão exagerados que deixaram de ser meus. Estou a escrever em cima da minha experiência, mas não é um decalque. Alguns são factos da minha vida, outros não.
Escreveu um romance, um único. Foi uma escrita diferente?
Sim. Nesse caso posso escrever partes individuais num instante, mas o todo demora, demorou. Não é tão natural e mim.
Acha possível escrever a biografia de Lydia Davis de forma bastante completa apenas a partir da leitura do que escreveu?
Pode fazer uma leitura inteligente e escrever uma biografia que pode chegar muito perto, mas não seria nunca precisa, exacta.
Estamos sempre no campo da ilusão, muitas vezes como o leitor a achar que a conhece quando lê os seus livros, que é capaz de a entender e ser seu cúmplice?
Uma vez estive numa conversa sobre uma escritora a quem isso tenha acontecido. Ela respondeu a esse leitor: “não me conhece de todo”. Nunca tive essa experiência. Um disse-me que uma determinada história parecia escrita para ele. Acho que os meus leitores sentem a minha escrita de forma muito pessoal, mas acho que é impossível escrever para leitores. Escrevo para mim, para me satisfazer antes de mais, mas interiorizamos leitores e o que os leitores esperam. Não estou consciente disso, mas isso está cá. Há uma frase que li uma vez mas não sei de cor, de um fotógrafo que disse que tirava uma fotografia a algo para ver como esse algo ficava na fotografia. Gosto muito do modo como essa ideia é formulada porque é também como escrevo uma história. Escrevo para ver como é que uma ideia funciona enquanto história. Quero fazer dela uma história.
A ironia está em quase todas as suas histórias. É assim que olha o mundo, de forma irónica?
Sim, é. O que somos transparece na escrita por mais que o queiramos esconder o disfarçar ou censurar. Por isso costumo dizer aos meus alunos de escrita para se rodearam de coisas estimulantes, interessantes, para separarem as várias partes que compõem a sua escrita. Além de servir para se treinarem na língua, reconhecerem as suas nuances de forma muito precisa, tento que se cultivem a si mesmos, que sejam capazes de reconhecer as suas características. Peço-lhes para não verem programas de televisão aborrecidos ou estúpidos. Para cultivarem as suas mentes e os seus caracteres. O que vão escrever irá reflectir a sua vivência. E depois alertá-los sempre para a liberdade e a necessidade de expressarem o que são na sua escrita. Para mim as coisas funcionam assim. Se tenho ironia na escrita é porque isso faz parte de mim. Não é algo trabalhado, artificial.
E há, parece-me, uma grande consciência de si. O olhar crítico e irónico sobre si própria.
Acho que sim. Estou sempre a questionar-me e a analisar o que me rodeia e eu em ralação a isso, não tomar nada por garantido. Estou sempre aberta a outras possibilidades.
Traduziu Blanchot, Proust, mais recentemente Flaubert. Como é que trabalho de tradução afecta a sua escrita?
Não tenho ideia. Faz-me ficar mais alerta para o inglês. Quando pego numa palavra em alemão vejo a relação que ela tem com outra palavra em inglês. Isso aprofunda o meu entendimento e a relação com a minha língua. Além disso, não estou bem certa da influência. Acho que ler outros escritores nas suas próprias línguas me dá uma visão global diferente de como se pode escrever. Não me limito ao ponto de vista americano ou ao ponto de vista inglês. Dá-me uma maior abrangência.
Há uma perspectiva americana de fazer literatura?
Talvez não. É difícil de generalizar. Há tantas Américas e escritores americanos tão diferentes. Talvez essa multiplicidade. Eu sempre me rebelei e rebelarei contra qualquer tipo de isolamento, ou seja uma perspectiva americano-centrista, qualquer postura que ache que as culturas distantes da americana são menos importantes.
Não falta quem a ache próxima da chamada literatura europeia. O que acha disso?
E o que é isso também? Não sei. Durante algum tempo muitos críticos localizavam-me na Europa. Como se o meu trabalho pudesse ter sido escrito numa outra língua e depois traduzido para inglês, uma apreciação que não me agrada particularmente. Mas houve um crítico que não apenas me colocou entre os escritores decisivos para a história da literatura americana como me considerou dos inventores ou artífices dessa literatura. Fiquei muito feliz por ser recolocada na América. Eu sou americana e gosto de ser identificada com o meu país. Acho que o facto de me ligarem a outras culturas ou o modo como as outras culturas me afectam tem que ver com a minha longa experiência como tradutora. Nesse campo parte da minha cabeça está na Europa.
A escrita aconteceu na sua vida depois da música.
Eu gostava muito de música, mas isso não significa que algum tinha tivesse sonhado em fazer da música a minha profissão. Muitos escritores já escreviam quando eram crianças e o que mais gostavam era de irem para o quarto escrever, trabalhar no seu romance (risos). Eu não era um deles. A minha actividade preferida era tocar piano, ouvir música.
Os seus pais escreviam.
Sim, eram os dois escritores e isso estava sempre nas conversas. No liceu comecei a ter um diário. Tinha uns 12 anos. Aquela coisa muito convencional: um tio oferecer um diário à menina no aniversário. E resolvi escrever. Comecei de forma muito irregular mas pouco depois já tinha cadernos com notas, enchia blocos. A escrita despertou nesses anos e nunca mais me abandonou.
E, enquanto adulta, andou sempre a par com a tradução.
As primeiras traduções aconteceram na universidade. Depois da universidade havia esse problema, o que é que eu iria fazer? Nunca pensei na escrita como um meio de ganhar a vida. Nunca pensei em ser jornalista. O que me restava? Traduzir tornou-se muito óbvio. Comecei a traduzir para ganhar dinheiro. Não pagavam muito bem. Blanchot foi dos autores que vieram mais cedo, mas as primeiras traduções foram guiões de cinema, catálogos de arte, era um pouco o que aparecia. Houve muitos livros que traduzi apenas por dinheiro, como a História da China ou a biografia de Mao Tse Tung. Foi um treino, acho.
Divide a sua rotina entre a tradução e a escrita de ficção?
Raramente trabalho com uma agenda rígida em relação à minha escrita. Mesmo quando estou a traduzir vou escrevendo histórias. Mas como a tradução é por dinheiro e tenho de cumprir contactos, traduzo com uma rotina apertada, regular, das dez às três todos os dias. Com Proust e Flaubert tem de ser diário.
Falava no início da clareza de Proust. Como é traduzir pensamentos tão longos mantendo essa clareza, não se perdendo no sentido, não confundido identidades, ser Lydia e ser Proust?
Perco-me num sentido muito agradável. Uma das coisas de que gosto mais no processo de tradução é deixar-me para trás e entrar totalmente no pensamento de Proust tanto quanto me é possível. Por outro lado tenho esse problema: como vou estruturar aquela frase tão longa em inglês? Onde está o esqueleto da frase? É um desafio de que gosto. Entre camadas, encontramos a base, a frase principal. “Todos os domingos saía para um passeio”, por exemplo. A partir dessa frase simples constrói-se uma enorme estrutura. “Todos os dias, chovesse ou fizesse sol… ” Isso também alimenta o modo como ensino, apercebo-me que os estudantes podem não ser capazes de chegar à essência da frase se for complicada. Quando perguntamos a estudantes de anos avançados qual é o sujeito principal, a acção principal, muitos não chegam lá, muitos simplesmente não sabem analisar uma frase.
Prout escreve muito com imagens, longas descrições. É raro encontrar isso na sua escrita. É menos visual e mais rítmica. Acha que é um efeito da música?
Sim, não faço muitas descrições. O romance tem algumas e gosto de escrever descrição. Mas o romance tinha porque parte do que estava a escrever estava ligado à paisagem, então vou para algo mais visual. Se estou a escrever sobre uma ideia ou uma conversa é quase sempre sobre a linguagem e os seus recursos. Estou sempre muito alerta para a artificialidade de algumas convenções. Não escrevo algo só porque tecnicamente é suposto.
Também é raro ter nomes. As suas personagens quase nunca são nomeadas.
Acho que mais uma vez é sobre a artificialidade de algumas convenções. Não dou nomes só porque sim, não tenho de o fazer. Dou quando isso tem algum sentido específico.
No início de outra história, A Escrita, escreve que a vida é demasiado séria para querer continuar a escrever. Este ‘eu’ é a Lydia? Não acha a escrita uma actividade assim tão séria?
Foi um estado de alma momentâneo. Provavelmente nunca irei deixar de escrever desde que fisicamente o possa fazer. Não sou exactamente eu a falar, é um narrador com esse estado de espírito. Acho que essa frase vem de algo que qualquer artista mais cedo ou mais tarde sente. O que é que estou aqui a fazer sentada à secretária a escrever sobre insectos? Não devia estar na rua a manifestar-me, a correr para o escritório, a escreve cartas para os governantes? Não deveria estar lá fora no mundo a fazer qualquer coisa?
Sente esse impulso, de sair e se manifestar?
Sim, estou muito mais envolvida com a minha comunidade do que alguma vez estive. Já tive este debate que muitas pessoas tiveram, se sou mais útil ao mundo a escrever o que escrevo ou a ser mais uma pessoa a marchar nas ruas? Não sei.
Não tem uma resposta?
Posso dizer que acho que sou mais útil a escrever, mas também tenho algumas boas ideias e acho que isso podia fazer alguma diferença, que podia sair para o mundo, ajudar de forma mais directa.
Isso leva-nos ao papel do escritor actualmente. Acha que o escritor perdeu poder sobre a opinião pública?
Acho que perdeu, mas isso difere de país para país. Tenho andado a ler literatura norueguesa, e um escritor mais especificamente. Ele escreveu um romance muito político no anos oitentas e isso foi tão poderoso e importante que o ministro dos Negócios Estrangeiros da Noruega escreveu sobre o livro. Isso não aconteceria aqui. Se Philip Roth ou Don DeLillo escrevessem um romance político nenhum governante iria escrever sobre isso. Tem a ver não apenas com os países mas com o tempo que cada país vive.
Fala norueguês?
Não falo. Sei dizer uma frase: Jeg kan ikke snakke norsk. [i.e Não sei falar norueguês] Consigo ler mas isso é muito difícil de entender a falar ou falar.
O que é que gosta de ler actualmente?
As minhas leituras andam por muitos lados. Ando os ensaios de Grace Paley (1922-2007), Just As I Thought (McMillan, 1999). Gosto muito da ficção dela. Estes ensaios são conversas muito pessoais. Estou a ler um livro em alemão de um escritor suíço, Peter Bichsel (1935). Descobri-o na minha última viagem à Suíça, Alemanha e Áustria. Estou a gostar muito e provavelmente vou traduzi-lo. E estou a ler em norueguês o quarto romance de Dag Solstad (1941). Não é muito falado actualmente, mas é o mais importante escritor dos últimos 40 anos na Noruega. Aprendi norueguês a lê-lo. Era dele que estava a falar há pouco.
Acompanha as traduções dos seus livros?
Sim, presto atenção. Leio críticas, mas tenho de ter cuidado com isso porque não quero ficar demasiado insegura. Por vezes pego em páginas de traduções e vejo se me reconheço, se me consigo ler noutra língua.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Quer uma pausa antes de começar uma conversa sobre a sua escrita. Vencedora do Internacional Man Booker Prize em 2013, um dos prémios mais prestigiados da literatura, é considerada umas das escritoras mais inovadoras em língua inglesa. Natural de Massachusetts, onde nasceu em 1947, é uma autora concisa, irónica, uma observadora acutilante do real, escreve histórias tão breves quanto intensas, sempre numa relação muito próxima com o leitor. O seu livro mais recente, Não Posso Nem Quero (Relógio d’Água), foi publicado no início do ano em Portugal.
“Nunca estive em Portugal. Há pouco tempo estava em Barcelona e disseram-me que devia ir a Lisboa, que não estava ainda tomada por turistas.” Tradutora para inglês de Simenon, Blanchot, Proust e Flaubert reflecte sobre o modo como a tradução influencia o que escreve e como não estar centrada no inglês a torna contestatária de uma visão americana do mundo. Diz que tem Fernando Pessoa na sua estante. “Um jovem amigo falou-me dele de forma tão entusiástica. Mas ainda tão tive tempo de me dedicar”. Não será capaz de o ler em português, diz saber apenas o suficiente para “ler coisas simples”, mas já traduziu para inglês a história de uma favela do Rio de Janeiro. Está a horas de regressar de comboio à terra onde vive com o marido, o pintor Alan Cole, perto de Albany, a pouco mais de duas horas de Nova Iorque. Antes, foi casada com Paul Auster, com quem viveu em França, onde aprofundou os conhecimentos em francês. No fim da conversa, tira da mala uma caixa de chocolates. “São para si.”
Li recentemente um artigo em que se referia a si como a escritora mais concisa do mundo.
Oh meu Deus! (risos)
Acha estranha a definição?
Acho que faz sentido. Não sei em que termos seria dito, se conciso era ser curto. Uma vez estava a tentar chamar conciso a Proust porque associo ser conciso com ser económico e acho que ele é económico, não importa o quão longos são os seus livros ou longas as suas frases. Quando digo que Proust é económico significa que ele não diz mais do que tem para dizer. Eu também tento fazer isso. A maior parte das histórias do meu livro mais recente são muito curtas. Há uma, chamada Carta à Fundação, que se entende como uma ladainha, mais longa, mas com repetições. Para mim ela continua a ser económica porque está exactamente com era suposto. Não tem sobras. Eu queria que fosse repetitivo.
A capacidade de concisão foi uma das características mais sublinhas pelo júri que lhe atribuiu em 2013 o Man International Booker Prize. É possível falar de efeitos na sua carreira?
Os meus livros têm um maior interesse internacional. Eu era publicada em algumas línguas estrangeiras, mas isso aumentou.
Tem dito que prefere chamar aos seus contos apenas histórias. Na capa do seu último livro, Não Posso nem Quero, aparece essa palavra como complemento: histórias.
Sim, é verdade. Não há muita gente que dê pela diferença. A palavra ‘conto’ para mim significa algo na tradição do que escrevia Hemingway ou Fitzgerald, Updike, Cheever, Catherine Mansfield, Flannery O’Connor. Embora seja cultivado por muitos escritores diferentes, há uma forma aceite e uma espécie de extensão mínima. Algumas das minhas histórias obedecem a essa categoria, mas a maior parte não. Acho que a palavra ‘história’ é mais genérica, mais abrangente, permite maior liberdade. Pode ser um “deixe-me contar-lhe uma história sobre o que aconteceu ontem”, ou pode ser a história do Guerra e Paz.
Algumas dessas suas histórias têm a forma de poemas, outras são apenas uma frase. Como é que as trabalha, depurar até chegar à fórmula mínima?
Tem a ver como o modo como começam, quase sempre com material da vida real, e outras vezes da minha cabeça, de leituras que faço. Mas quase sempre da vida real. Tento ser sensível ao espaço de que essa inspiração original precisa. Se apenas necessita de uma pequena expressão então não tento torná-la maior. As coisas aparecem-me num modo muito breve mas completas, uns todos em fórmulas breves. Muitas vezes limito-me muitas vezes a tirar-lhes uma palavra ou duas. As maiores demoram-me mais porque há mais linguagem a trabalhar. Podem surgir um instante, mas tomam-me mais tempo.
E como é que tudo começa?
Começa com a realidade, com a vida real, ouvir pessoas, observar pessoas, quando viajo ou em casa. Estou sempre muito atenta.
Toma notas?
Sim. Tenho sempre um bloco de notas, escrevo as ideias o mais rápido que posso porque se perco a palavra exacta posso perder todo o sentido. As palavras exactas importam, mas geralmente são frases e padrões. Os padrões interessam-me muito. Há uns cinco anos contaram-me uma história que ficou na minha cabeça. Muito recentemente contaram-me outra história e essa mais antiga surgiu, muito clara. Eram sobre o mesmo tema. Claro que agora quero muito escrever sobre isso. Uma coisa muito curta, o suficiente para que essas duas histórias surjam com a força com que as recebi. É, de facto, o real que alimenta a minha ficção. Cada vez mais. Comecei por escrever ficção muito ficcionada e é cada vez mais menos ficção. Mas não se confunda, as minhas histórias não dizem a verdade, a verdade sobre uma situação ou sobre mim. Elas são verdadeiras em relação aos meus sentimentos, a verdade da minha visão. Tem a ver com honestidade também, mas há histórias que podem ter um narrador desonesto. É um território ardiloso. Como o caso da tal Carta à Fundação. É escrito por uma mulher que está próxima de mim, mas não soeu eu, que partilha alguns dos meus sentimentos, mas são tão exagerados que deixaram de ser meus. Estou a escrever em cima da minha experiência, mas não é um decalque. Alguns são factos da minha vida, outros não.
Escreveu um romance, um único. Foi uma escrita diferente?
Sim. Nesse caso posso escrever partes individuais num instante, mas o todo demora, demorou. Não é tão natural e mim.
Acha possível escrever a biografia de Lydia Davis de forma bastante completa apenas a partir da leitura do que escreveu?
Pode fazer uma leitura inteligente e escrever uma biografia que pode chegar muito perto, mas não seria nunca precisa, exacta.
Estamos sempre no campo da ilusão, muitas vezes como o leitor a achar que a conhece quando lê os seus livros, que é capaz de a entender e ser seu cúmplice?
Uma vez estive numa conversa sobre uma escritora a quem isso tenha acontecido. Ela respondeu a esse leitor: “não me conhece de todo”. Nunca tive essa experiência. Um disse-me que uma determinada história parecia escrita para ele. Acho que os meus leitores sentem a minha escrita de forma muito pessoal, mas acho que é impossível escrever para leitores. Escrevo para mim, para me satisfazer antes de mais, mas interiorizamos leitores e o que os leitores esperam. Não estou consciente disso, mas isso está cá. Há uma frase que li uma vez mas não sei de cor, de um fotógrafo que disse que tirava uma fotografia a algo para ver como esse algo ficava na fotografia. Gosto muito do modo como essa ideia é formulada porque é também como escrevo uma história. Escrevo para ver como é que uma ideia funciona enquanto história. Quero fazer dela uma história.
A ironia está em quase todas as suas histórias. É assim que olha o mundo, de forma irónica?
Sim, é. O que somos transparece na escrita por mais que o queiramos esconder o disfarçar ou censurar. Por isso costumo dizer aos meus alunos de escrita para se rodearam de coisas estimulantes, interessantes, para separarem as várias partes que compõem a sua escrita. Além de servir para se treinarem na língua, reconhecerem as suas nuances de forma muito precisa, tento que se cultivem a si mesmos, que sejam capazes de reconhecer as suas características. Peço-lhes para não verem programas de televisão aborrecidos ou estúpidos. Para cultivarem as suas mentes e os seus caracteres. O que vão escrever irá reflectir a sua vivência. E depois alertá-los sempre para a liberdade e a necessidade de expressarem o que são na sua escrita. Para mim as coisas funcionam assim. Se tenho ironia na escrita é porque isso faz parte de mim. Não é algo trabalhado, artificial.
E há, parece-me, uma grande consciência de si. O olhar crítico e irónico sobre si própria.
Acho que sim. Estou sempre a questionar-me e a analisar o que me rodeia e eu em ralação a isso, não tomar nada por garantido. Estou sempre aberta a outras possibilidades.
Traduziu Blanchot, Proust, mais recentemente Flaubert. Como é que trabalho de tradução afecta a sua escrita?
Não tenho ideia. Faz-me ficar mais alerta para o inglês. Quando pego numa palavra em alemão vejo a relação que ela tem com outra palavra em inglês. Isso aprofunda o meu entendimento e a relação com a minha língua. Além disso, não estou bem certa da influência. Acho que ler outros escritores nas suas próprias línguas me dá uma visão global diferente de como se pode escrever. Não me limito ao ponto de vista americano ou ao ponto de vista inglês. Dá-me uma maior abrangência.
Há uma perspectiva americana de fazer literatura?
Talvez não. É difícil de generalizar. Há tantas Américas e escritores americanos tão diferentes. Talvez essa multiplicidade. Eu sempre me rebelei e rebelarei contra qualquer tipo de isolamento, ou seja uma perspectiva americano-centrista, qualquer postura que ache que as culturas distantes da americana são menos importantes.
Não falta quem a ache próxima da chamada literatura europeia. O que acha disso?
E o que é isso também? Não sei. Durante algum tempo muitos críticos localizavam-me na Europa. Como se o meu trabalho pudesse ter sido escrito numa outra língua e depois traduzido para inglês, uma apreciação que não me agrada particularmente. Mas houve um crítico que não apenas me colocou entre os escritores decisivos para a história da literatura americana como me considerou dos inventores ou artífices dessa literatura. Fiquei muito feliz por ser recolocada na América. Eu sou americana e gosto de ser identificada com o meu país. Acho que o facto de me ligarem a outras culturas ou o modo como as outras culturas me afectam tem que ver com a minha longa experiência como tradutora. Nesse campo parte da minha cabeça está na Europa.
A escrita aconteceu na sua vida depois da música.
Eu gostava muito de música, mas isso não significa que algum tinha tivesse sonhado em fazer da música a minha profissão. Muitos escritores já escreviam quando eram crianças e o que mais gostavam era de irem para o quarto escrever, trabalhar no seu romance (risos). Eu não era um deles. A minha actividade preferida era tocar piano, ouvir música.
Os seus pais escreviam.
Sim, eram os dois escritores e isso estava sempre nas conversas. No liceu comecei a ter um diário. Tinha uns 12 anos. Aquela coisa muito convencional: um tio oferecer um diário à menina no aniversário. E resolvi escrever. Comecei de forma muito irregular mas pouco depois já tinha cadernos com notas, enchia blocos. A escrita despertou nesses anos e nunca mais me abandonou.
E, enquanto adulta, andou sempre a par com a tradução.
As primeiras traduções aconteceram na universidade. Depois da universidade havia esse problema, o que é que eu iria fazer? Nunca pensei na escrita como um meio de ganhar a vida. Nunca pensei em ser jornalista. O que me restava? Traduzir tornou-se muito óbvio. Comecei a traduzir para ganhar dinheiro. Não pagavam muito bem. Blanchot foi dos autores que vieram mais cedo, mas as primeiras traduções foram guiões de cinema, catálogos de arte, era um pouco o que aparecia. Houve muitos livros que traduzi apenas por dinheiro, como a História da China ou a biografia de Mao Tse Tung. Foi um treino, acho.
Divide a sua rotina entre a tradução e a escrita de ficção?
Raramente trabalho com uma agenda rígida em relação à minha escrita. Mesmo quando estou a traduzir vou escrevendo histórias. Mas como a tradução é por dinheiro e tenho de cumprir contactos, traduzo com uma rotina apertada, regular, das dez às três todos os dias. Com Proust e Flaubert tem de ser diário.
Falava no início da clareza de Proust. Como é traduzir pensamentos tão longos mantendo essa clareza, não se perdendo no sentido, não confundido identidades, ser Lydia e ser Proust?
Perco-me num sentido muito agradável. Uma das coisas de que gosto mais no processo de tradução é deixar-me para trás e entrar totalmente no pensamento de Proust tanto quanto me é possível. Por outro lado tenho esse problema: como vou estruturar aquela frase tão longa em inglês? Onde está o esqueleto da frase? É um desafio de que gosto. Entre camadas, encontramos a base, a frase principal. “Todos os domingos saía para um passeio”, por exemplo. A partir dessa frase simples constrói-se uma enorme estrutura. “Todos os dias, chovesse ou fizesse sol… ” Isso também alimenta o modo como ensino, apercebo-me que os estudantes podem não ser capazes de chegar à essência da frase se for complicada. Quando perguntamos a estudantes de anos avançados qual é o sujeito principal, a acção principal, muitos não chegam lá, muitos simplesmente não sabem analisar uma frase.
Prout escreve muito com imagens, longas descrições. É raro encontrar isso na sua escrita. É menos visual e mais rítmica. Acha que é um efeito da música?
Sim, não faço muitas descrições. O romance tem algumas e gosto de escrever descrição. Mas o romance tinha porque parte do que estava a escrever estava ligado à paisagem, então vou para algo mais visual. Se estou a escrever sobre uma ideia ou uma conversa é quase sempre sobre a linguagem e os seus recursos. Estou sempre muito alerta para a artificialidade de algumas convenções. Não escrevo algo só porque tecnicamente é suposto.
Também é raro ter nomes. As suas personagens quase nunca são nomeadas.
Acho que mais uma vez é sobre a artificialidade de algumas convenções. Não dou nomes só porque sim, não tenho de o fazer. Dou quando isso tem algum sentido específico.
No início de outra história, A Escrita, escreve que a vida é demasiado séria para querer continuar a escrever. Este ‘eu’ é a Lydia? Não acha a escrita uma actividade assim tão séria?
Foi um estado de alma momentâneo. Provavelmente nunca irei deixar de escrever desde que fisicamente o possa fazer. Não sou exactamente eu a falar, é um narrador com esse estado de espírito. Acho que essa frase vem de algo que qualquer artista mais cedo ou mais tarde sente. O que é que estou aqui a fazer sentada à secretária a escrever sobre insectos? Não devia estar na rua a manifestar-me, a correr para o escritório, a escreve cartas para os governantes? Não deveria estar lá fora no mundo a fazer qualquer coisa?
Sente esse impulso, de sair e se manifestar?
Sim, estou muito mais envolvida com a minha comunidade do que alguma vez estive. Já tive este debate que muitas pessoas tiveram, se sou mais útil ao mundo a escrever o que escrevo ou a ser mais uma pessoa a marchar nas ruas? Não sei.
Não tem uma resposta?
Posso dizer que acho que sou mais útil a escrever, mas também tenho algumas boas ideias e acho que isso podia fazer alguma diferença, que podia sair para o mundo, ajudar de forma mais directa.
Isso leva-nos ao papel do escritor actualmente. Acha que o escritor perdeu poder sobre a opinião pública?
Acho que perdeu, mas isso difere de país para país. Tenho andado a ler literatura norueguesa, e um escritor mais especificamente. Ele escreveu um romance muito político no anos oitentas e isso foi tão poderoso e importante que o ministro dos Negócios Estrangeiros da Noruega escreveu sobre o livro. Isso não aconteceria aqui. Se Philip Roth ou Don DeLillo escrevessem um romance político nenhum governante iria escrever sobre isso. Tem a ver não apenas com os países mas com o tempo que cada país vive.
Fala norueguês?
Não falo. Sei dizer uma frase: Jeg kan ikke snakke norsk. [i.e Não sei falar norueguês] Consigo ler mas isso é muito difícil de entender a falar ou falar.
O que é que gosta de ler actualmente?
As minhas leituras andam por muitos lados. Ando os ensaios de Grace Paley (1922-2007), Just As I Thought (McMillan, 1999). Gosto muito da ficção dela. Estes ensaios são conversas muito pessoais. Estou a ler um livro em alemão de um escritor suíço, Peter Bichsel (1935). Descobri-o na minha última viagem à Suíça, Alemanha e Áustria. Estou a gostar muito e provavelmente vou traduzi-lo. E estou a ler em norueguês o quarto romance de Dag Solstad (1941). Não é muito falado actualmente, mas é o mais importante escritor dos últimos 40 anos na Noruega. Aprendi norueguês a lê-lo. Era dele que estava a falar há pouco.
Acompanha as traduções dos seus livros?
Sim, presto atenção. Leio críticas, mas tenho de ter cuidado com isso porque não quero ficar demasiado insegura. Por vezes pego em páginas de traduções e vejo se me reconheço, se me consigo ler noutra língua.