As belas canções sem medo de Márcia
Usando cada disco como um momento gerador de mudança na sua vida, Márcia fez de Quarto Crescente um motivo para arrumar fantasmas e espantar medos. Ao terceiro álbum, é cada vez mais uma voz solitária na música portuguesa. Ninguém mais canta assim.
Com ela estava tudo bem, tinha sido mãe, planeava o casamento, passara a viver da música, tudo corria tranquilamente e sem grandes atropelos. A resposta do amigo, talvez daquelas que pegam em lugares-comuns quando as palavras estão perras e pouco há a dizer, foi um “Estás boa? E vais escrever um disco? Já não vais conseguir, és feliz!” Desde Tolstoi e Anna Karenina que se sabe que “todas as famílias felizes se parecem; cada família infeliz é infeliz à sua maneira”. Ou seja: que isso da felicidade é muito bom para a vida mas muito pouco útil para a arte. Márcia estaria, por isso, a caminho de uma normalização que lhe adormeceria o ímpeto criativo. “Ainda me lembro disso porque fiquei danada”, conta ao ÍPSILON agora que o seu terceiro álbum, Quarto Crescente, está prestes a tornar-se público ( vai ser editado a 15 de Junho, mas entre 5 e 8 pode ouvi-lo grátis no site do jornal). “Era o que faltava não poder ser feliz para conseguir escrever canções.”
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Com ela estava tudo bem, tinha sido mãe, planeava o casamento, passara a viver da música, tudo corria tranquilamente e sem grandes atropelos. A resposta do amigo, talvez daquelas que pegam em lugares-comuns quando as palavras estão perras e pouco há a dizer, foi um “Estás boa? E vais escrever um disco? Já não vais conseguir, és feliz!” Desde Tolstoi e Anna Karenina que se sabe que “todas as famílias felizes se parecem; cada família infeliz é infeliz à sua maneira”. Ou seja: que isso da felicidade é muito bom para a vida mas muito pouco útil para a arte. Márcia estaria, por isso, a caminho de uma normalização que lhe adormeceria o ímpeto criativo. “Ainda me lembro disso porque fiquei danada”, conta ao ÍPSILON agora que o seu terceiro álbum, Quarto Crescente, está prestes a tornar-se público ( vai ser editado a 15 de Junho, mas entre 5 e 8 pode ouvi-lo grátis no site do jornal). “Era o que faltava não poder ser feliz para conseguir escrever canções.”
Márcia ficou danada porque, sem que o diga claramente, tal sugestão tocava-lhe numa fraqueza. Sempre que chega a altura de começar a compor para um álbum, passa infalivelmente por um momento de pânico ao achar que não tem nada de novo para dizer ao mundo. “Isso é que não é novo”, admite, “passo sempre por isso. Mas depois é como uma onda – começo a escrever e, de repente, já tenho muito material.” Em Quarto Crescente esse material tinha por onde se espraiar. Graças às maravilhas da tecnologia, das aplicações e dos tablets, a cantora ganhou destreza no programa GarageBand e foi laborando ideias a partir de ritmos ou linhas de baixo, coisa inédita no seu percurso, e que nunca tinha arriscado por ficar sempre à espera de uma colaboração que abrisse esse alçapão. “Só que isso acaba por nunca acontecer”, conclui, “porque acho que sou muito solitária a compor.”
Talvez seja essa solidão que, aliada à sua vida actual pouco atormentada, convida à visita de fantasmas que Márcia assume povoarem as canções do novo álbum. “São memórias, impressões que infelizmente ficam no nosso corpo para sempre”, descreve. E cita o filme 20 000 Days on Earth, o documentário contaminado pela ficção em que Iain Forsyth e Jane Pollard espreitam para dentro do mundo de Nick Cave, como uma referência apaziguadora ao identificar-se fortemente com aquilo que Cave desvenda sobre os seus próprios demónios interiores. Diz ela: “Os fantasmas vêm sempre, deixam-se ficar, vai-se escrevendo sobre eles, vão-se abandonando e são matéria bruta. Mesmo se não os procurar. Mas também não tento muito fugir.”
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A profecia do amigo esboroa-se sem resistência, portanto. Não faltaram temas novos ao terceiro álbum de Márcia – são 11, escolhidos a partir de uma colheita de 18 – e não se vislumbra por aqui qualquer comprazimento flácido em nome próprio. Basta determo-nos por momentos no single falsamente radioso “Insatisfação” para sabermos que a escrita não resvalou para esses territórios. Ninguém canta “Quase nada / nunca me conforta / a insatisfação / nunca me abandona” refém do seu bem-estar quotidiano. Aliás, desta sua permeabilidade a memórias emocionais que emergem do passado, resulta uma canção tão melancólica como Havia, causadora de uma reacção com que a cantora não contava – “É uma sensação estranha sentir-me trespassada por uma música que escrevi.”
É um dos temas em que Márcia se vê confrontada com alguém que já foi, deixou de ser, mas que cumprem uma fundamental função de a ajudar a largar algum peso para poder seguir caminho. Um pouco à semelhança de um balão que se eleva deitando fora sacos de areia, Márcia assume que canções como Linha de Ferro ou A Urgência a ajudam a deixar para trás pessoas, situações, casas que o tempo lhe revelou serem nocivas. “Tenho muito essa sensação ao longo das letras de que há um trajecto para seguir, um caminho crescente, e que há certas coisas que tenho de largar”, reforça. “Desligamo-nos das pessoas e da importância que damos a certas coisas – e isso também é crescimento.” Afectada também pelas histórias daqueles que lhe confidenciam situações problemáticas das quais não se conseguem libertar, Márcia canta então “Não meço o amor que mereço / mas nunca mantenho quem não me agasalha / a pedra do chão que tropeço / removo se sinto que só me atrapalha.”
“Temos de ter esse desprendimento na vida e procurarmos sempre estar melhor”, acredita. Daí que se diga num permanente estado de alerta, atenta à leitura de cada situação, irritando-se quando percebe que falha nessa leitura. Esteja diante do seu público, de um professor ou de um pediatra. “Para mudarmos temos de estar atentos para sabermos o que queremos mudar”, insiste. “Para isso, temos de saber o que está mal. E eu sou uma grande apologista da mudança. Mas não gosto de me centrar no mal, gosto de pensar no que poderia mudar para melhorar a minha vida.” A música faz parte desse esquema de mudança na sua vida. Continua a ser uma alavanca para a catarse. Márcia receia até que um dia possa deixar de ser. Despida dessa função, teme poder encontrar na música apenas uma obrigação profissional – seca, desnutrida, baça.
O cinzento da cidade
Depois de Casulo, Quarto Crescente leva Márcia a identificar na “força para seguir em frente” e na determinação em não se deixar manietar pelo medo um fio condutor nas suas canções. Dar a volta, chama-lhe, convocando a ideia da superação. Mas para que o trabalho não se esgote no momento da escrita, a cantora vai também deixando recados a si mesma, post-its em forma de canção para não se esquecer das armadilhas no caminho. “Se o medo se encaixa lá no fundo / conquistando um bom lugar para se inspirar / vai varrer o pó da esperança num segundo / sentando-se em tudo / fingindo descansar”, canta em Bem Amargo.
Aquilo que mais imediatamente se identifica como diferente em Quarto Crescente, em relação aos anteriores Casulo e Dá, é a imagem que Márcia escolhe para a capa. Até agora sempre se tinha escondido por detrás de uma ilustração; desta vez achou que tinha chegado a hora de colocar uma fotografia sua, a preto e branco, registada pelo também músico David Fonseca. As cores esbateram-se, a vontade de ir viver para o campo que antes escorregava pelo interior das canções desapareceu. “Uma vontade um pouco idealizada porque tem-se a noção de que o campo pode ser muito solitário”, concede. “A cidade também é solitária, ainda mais, porque conseguimos sentir-nos ainda mais esmagados pelo betão e pelo cinzento da cidade. Quis assumir esse cinzento da cidade.” Por baixo do cinzento em que Márcia ensopa as canções e que foi traduzido no preto e branco das fotos, fervilha uma analogia entre aquilo que as pessoas vivem no seu dia-a-dia e o estado comatoso que tomou conta do país. “O país está na crise e na merda”, desabafa. E isso vê-se. E ouve-se.
Não há, no entanto, uma ditadura desse cinzentismo em Quarto Crescente. Ou não afirmasse ainda que as pessoas “são flores que nascem no betão”. Dar a volta é isso: intimar o cinzento mas depois, num golpe de asa, emprestar uma leveza redentora que eleva cada canção quando se aproxima do fim. Ou até, como acontece com Insatisfação, ao contrariar a letra assumidamente. “Lembro-me de ter ficado muito feliz ao conseguir fazer uma música que me parecia muito fresca e saltitante por ter aquele ritmo”, diz. Às vezes, Márcia gostava até de tirar mais uma ou outra Cabra-Cega (um dos seus temas mais borbulhantes, incluído no primeiro álbum) da cartola. Com este disco, pensou inclusivamente em arriscar a insistência no registo e achava mesmo que “ia fazer um disco nesse sentido”. Só que depois, ao escolher as canções, preocupada em obter “um disco inteiro”, sem ser um retalhado conjunto de canções com arestas e em atropelo, percebeu que, afinal, o resultado tinha sido bem diverso. Sem outras Cabra-Cega.
Em ambas as decisões – a “Insatisfação” saltitante, o alinhamento menos “arriscado” – foi fundamental a opinião do produtor brasileiro Dadi Carvalho, antigo membro dos grupos Novos Baianos e A Cor do Som, músico a que Márcia chegou pelo trabalho com Caetano Veloso, Marisa Monte e Tribalistas. Foi Dadi quem forçou o contraste entre letra e música de “Insatisfação”, desencontro que lembra à cantora temas como (I Can’t Get No) Satisfaction dos Rolling Stones ou Every Breath You Take de Sting. Até mesmo a sua A Pele que Há em Mim, o tema que a notabilizou e que leva 2,3 milhões de visualizações no YouTube (na versão em dueto com JP Simões), lhe lembra a distância entre aquilo que a letra diz e a forma como é ouvido. No caso, conta Márcia, trata-se sobretudo da estranheza de que uma canção sobre o final de uma relação possa ser tão frequentemente banda sonora em casamentos.
Sem medo das palavras
Muito fechada quando está a escrever, Márcia dá ouvidos às pessoas de quem se rodeia a partir do momento em que as canções estão no ponto de ser partilhadas e trabalhadas colectivamente. “Mas também é preciso decidir quem e o que se ouve”, adverte. “E para mim a opinião do Dadi foi a mais importante.” A produção do “patrão” é de uma subtileza em que a sua mão não é facilmente destrinçável. Ou seja, em Lisboa e no Rio de Janeiro, o seu trabalho não foi o de virar o mundo de Márcia do avesso ou o de ‘abrasileirar’ as canções. A sua intervenção é discreta, muito no domínio das escolhas e do apuramento dos temas, tão discreta quanto, no limite, a sua participação em Havia. Para essa faixa, o músico enviou uma faixa com vento. “E era exactamente aquilo de que a música precisava”, espanta-se a cantora. “Para mim, nunca é muito fácil ver quando é que um disco está pronto e o Dadi fez muitas coisas em casa que ia juntando.” Aos poucos, o álbum, que parecia quase finalizado em Lisboa no início de Janeiro, ganhava um corpo realmente sólido no Rio por altura do Carnaval.
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Dadi dá também um subtil mas decisivo empurrão a Márcia nesta sua exploração de temas feitos de uma dança subterrânea, guiados pelas batidas maquinais que foi compondo no GarageBand e que nalguns temas, dada a sua crueza, soam a estilhaços rítmicos de hip-hop que ficam a acamar as dolentes melodias de Quarto Crescente, embalando-as num torpor que poderíamos encontrar num disco de Feist (passar os ouvidos por Entre Nós) ou de Keren Ann. É nesse contexto que surgem canções admiráveis como A Urgência ou Linha de Ferro. Nesta última, Márcia conta com a tocante colaboração do rapper brasileiro Criolo, presença sugerida pela base rítmica da música e facilitada por se terem conhecido numa passagem do músico por Lisboa. Dadi tratou depois do resto do outro lado do Atlântico. “Pensei no Criolo porque imaginava alguém do hip-hop a cantar ali”, explica, “e gosto muito daquela carga dramática dele a cantar. Parecia-me evidente.”
Linha de Ferro, canção de uma desamparada solidão, é também exemplo de uma exposição que Márcia sabe não evitar na sua escrita, mas que em Quarto Crescente deixou correr mais livremente – “neste disco, era como se não tivesse medo das palavras”. Faz parte dos riscos que tinha assumido para consigo e aos quais tinha prometido que não voltaria a cara. Se algum tema surgisse com um refrão-bomba, daqueles que parece trazer a rádio atrelada, não fingiria ignorá-lo; se canções houvesse que pedissem a sua voz projectada muito para lá do seu doce sussurro, não cederia ao medo de enfrentá-las; se alguma letra surgisse com uma dureza inesperada, menos abrigada por um discurso encriptado – que muitas vezes lhe apontam como característico –, não fugiria a dar-lhe voz. “Tenho muitos filtros, mas não na escrita, porque a única matéria que tenho é mesmo manter-me fiel àquilo que tenho como verdade. Se não tiver isso, não tenho nada.”
O charme imenso de Quarto Crescente provém, em boa parte, desse lugar de não-protecção de Márcia. É um disco em que se mostra e em que arrisca sem que essa postura seja tornada o centro de tudo. Mas é um disco em que assume ser “uma soma de memórias e uma soma de medos” com os quais lida em directo. Com a entusiasmada curiosidade de quem vai tacteando sem a certeza de para onde será levada. “Há quem beba uns copos para lidar com estas coisas”, ri-se. O caminho de Márcia não é o da fuga, mas outro bem diferente. É o de entender-se, enfrentar, arrumar, deitar fora o que não interessa e dar um passo em frente. Se houver fantasmas pelo caminho é bem provável que acabe por pisá-los.