Editora em estreia livre
Cipsela, nova label nacional dedicada à improvisação, arranca com discos simbólicos que celebram dois heróis da música livre
A cena da música improvisada nacional poderá não ter grande visibilidade pública, mas vai fervilhando com concertos, novas formações, parcerias e projectos sempre a nascer. O início de 2015 marca o nascimento de uma nova editora dedicada à música improvisada e experimental – a Cipsela Records. Oriunda de Coimbra, apresenta-se ao mundo com gravações de dois músicos históricos cujo início da carreira remonta aos anos 60: o violinista Carlos Zíngaro (a solo) e o pianista americano Burton Greene, acompanhado pelo trio Open Field.
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A cena da música improvisada nacional poderá não ter grande visibilidade pública, mas vai fervilhando com concertos, novas formações, parcerias e projectos sempre a nascer. O início de 2015 marca o nascimento de uma nova editora dedicada à música improvisada e experimental – a Cipsela Records. Oriunda de Coimbra, apresenta-se ao mundo com gravações de dois músicos históricos cujo início da carreira remonta aos anos 60: o violinista Carlos Zíngaro (a solo) e o pianista americano Burton Greene, acompanhado pelo trio Open Field.
Carlos Zíngaro regressa ao formato solo com Live at Mosteiro de Santa Clara a Velha, gravado ao vivo no festival Jazz ao Centro em Maio de 2012. Um disco que acaba por evocar um outro registo do violinista, o seu Solo de 1991 (edição In Situ) gravado no Mosteiro dos Jerónimos. Se esse álbum é fundamental no percurso de Zíngaro – e, poderemos afirmar, um marco da improvisação europeia – este novo disco relembra-nos a relevância actual de Zíngaro como improvisador e instrumentista inigualável.
Nesta actuação Zíngaro serve-se simplesmente do violino (acústico, sem amplificação, sem efeitos) e aproveita as características acústicas do espaço, sobretudo a reverberação do mosteiro centenário. Sempre surpreendente, Zíngaro vai das técnicas mais clássicas (a maior parte da exploração sonora passa pela tradicional utilização do arco) até abordagens menos convencionais – utilizando técnicas extensivas, aplicando objectos sobre o corpo do violino. O primeiro tema do disco assume uma forma circular, surgindo motivos melódicos, abordagens texturais, mas também momentos mais bruscos e instantes de enorme subtileza e contenção. Nada surge do puro acaso, e o som evolui de forma coerente. Com a sua vasta paleta de sons, Zíngaro ora salpica como Pollock, ora esboça desenhos de linhas perfeitas, relembrando neste disco que é um improvisador notável com enorme fulgor técnico.
O pianista Burton Greene está sobretudo associado ao free jazz, tendo surgido na cena musical nova-iorquina precisamente na altura em que o movimento estava a florescer. Neste disco, acompanhado pelo trio português Open Field (e a convite destes), Greene regressa à mais pura improvisação livre, como se estivesse numa viagem ao passado.Flower Stalk combina o piano experiente de Greene com três jovens improvisadores portugueses: José Miguel Pereira no contrabaixo, João Camões na viola (também na flauta mey e percussão) e Marcelo dos Reis em guitarra acústica, guitarra preparada e, pontualmente, voz.
A música soa globalmente democrática, com o pianista a partilhar o espaço com os outros músicos - cada contributo é relevante, não há sede (nem necessidade) de protagonismo. Assistimos a um processo de descoberta, encontro e desencontro. O piano de Greene enche o disco sem estardalhaço, a viola de Camões conquista desde o início (quase “zingariana”), a guitarra de Reis (suave e delicada) conquista na entrada do segundo tema, e o contrabaixo de Pereira sabe marcar presença. Assistimos a um encontro de espíritos livres, gerações distintas mas com ideias próximas, que se aproximam ainda mais sobretudo na improvisação mais aberta. Por vezes perto do jazz, outras mais próxima da celebração tribal (último tema, Ancient shit), a música flui com naturalidade sem que no entanto, apesar de alguns bons momentos, nos consiga surpreender.