Oliveira en passant
Os maiores pecados de Homem da Máquina de Filmar são a desatenção e a pesquisa imperfeita.
Perante uma vida tão longa e recheada de acontecimentos, poder-se-ia até temer uma obra interminável, o autor aturdido por factos, documentos, depoimentos, contradições. Deste modo, mais invulgar do que a longevidade do cineasta portuense é a dimensão de Manoel de Oliveira - O Homem da Máquina de Filmar, a biografia escrita por Rute Silva Correia: cerca de 200 páginas para mais de 100 anos de vida. O propósito da autora fica, assim, logo claro pela grossura do livro: realizar uma biografa acessível e ligeira, apontada sobretudo àqueles que conhecem pouco ou mal o cineasta portuense.
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Perante uma vida tão longa e recheada de acontecimentos, poder-se-ia até temer uma obra interminável, o autor aturdido por factos, documentos, depoimentos, contradições. Deste modo, mais invulgar do que a longevidade do cineasta portuense é a dimensão de Manoel de Oliveira - O Homem da Máquina de Filmar, a biografia escrita por Rute Silva Correia: cerca de 200 páginas para mais de 100 anos de vida. O propósito da autora fica, assim, logo claro pela grossura do livro: realizar uma biografa acessível e ligeira, apontada sobretudo àqueles que conhecem pouco ou mal o cineasta portuense.
É um projecto perfeitamente legítimo e talvez até mesmo necessário, pois para a maioria dos portugueses Oliveira é tão-só o realizador centenário, cuja obra desconhece em grande medida e sobre a qual se foram construindo uma série de preconceitos, alguns mais justos do que outros. Em O Homem da Máquina de Filmar, Rute Silva Correia não esmiuça a obra cinematográfica de Manoel de Oliveira, embora lhe dedique alguns parágrafos e tente algumas aproximações entre a vida e os filmes – em contraponto, o recente Manoel de Oliveira - Análise Estética de uma Matriz Cinematográfica, organizado por Nelson Araújo, debruça-se quase só sobre a obra. Se a autora não cai no erro de observar toda a criação como autobiográfica, desaproveita algumas correlações possíveis e não resolve a provável falta do conhecimento do leitor nesse aspecto. No entanto, esta parece ser uma escolha consciente de Silva Correia, de preferir explorar a vida, Talvez seja essa a principal razão por que a primeira parte do livro, antes de Oliveira ser o realizador profícuo das últimas décadas, dedicada às suas experiências enquanto actor, desportista, boémio e automobilista, ao seu encontro com a mulher Maria Isabel, flua melhor do que a segunda, em que os filmes tomam conta de tudo. De resto, é curiosa a atenção dada aos primeiros filmes, em particular Aniki Bobó, em detrimento das obras posteriores. A última parte de Homem da Máquina de Filmar vai elencando os diversos filmes de Manoel de Oliveira (e prémios e distinções que recebeu), sem entrar em grandes detalhes, as anedotas e pequenas histórias relativas às produções vão diminuindo ao longo do livro (com excepção de Francisca).
Entretanto, a autora traça um paralelo entre o percurso de Oliveira e a história do cinema português, quase se diria obrigatório, uma vez que o cineasta portuense passou (às vezes ao lado) por todos os momentos importantes da mesma. Contudo, a diferenciação entre cinema mainstream e cinema alternativo usada por Rute Silva Correia é estranha à nossa cinematografia. Se a produção independente do Estado foi sempre muito episódica (aliás, a produção cinematográfica em Portugal é ela própria algo episódica), essa divisão parece deslocada, principalmente antes do 25 de Abril - se, a dada altura, nem havia uma corrente principal, como poderia haver alternativas? Percebe-se: a autora quer afastar-se da dicotomia entre cinema comercial e cinema de autor, ainda mais desajustada, mas não deixa de ser uma simplificação abusiva. De resto, essa será a maior acusação a fazer à proposta desta biografia: por vezes, a ligeireza resvala no simplismo.
Os maiores pecados de Homem da Máquina de Filmar, no entanto, são a desatenção e a pesquisa imperfeita. Por exemplo, Silva Correia designa Oliveira de cineasta octogenário quando se refere ao início dos anos 80, tinha o realizador setenta e poucos anos. Um descuido que se repete por mais de uma vez. Tal seria desculpável, não fossem as outras imprecisões e erros factuais. Ressalvo dois. A autora escreve que o Centro Português de Cinema foi fundado por António da Cunha Telles. Ora, o CPC foi constituído sem Cunha Telles (e estavam presentes todos os outros nomes importantes do chamado Cinema Novo). Segundo o próprio, não terá sido convidado. N outro passo, Silva Correia afirma que a estreia de João Bénard da Costa enquanto actor de Oliveira, sob o pseudónimo Duarte de Almeida, se deu em Benilde ou a Virgem Mãe. Na verdade, foi no anterior O Passado e o Presente, naquela que é porventura a sua interpretação mais marcante. Erros deste tipo põem em causa o restante escrito por Rute Silva Correia.
A produção literária sobre cinema em Portugal é dominada pela escrita académica, por vezes demasiado maçuda ou demasiado preocupada com a qualidade da pesquisa.Homem da Máquina Filmar evita o cinzentismo da Academia, mas despreza a investigação cuidada, sendo o seu oposto da pior maneira.