Arqueólogos descobrem destroços de navio negreiro português na África do Sul

Pela primeira vez foram encontrados vestígios de um naufrágio que terá ocorrido com escravos a bordo. Uma descoberta histórica que poderá avançar o conhecimento actual sobre o tráfico transatlântico, dizem os investigadores.

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Seriam precisos mais cinco anos de pesquisa e múltiplos mergulhos em águas furiosas até que os investigadores anunciassem, esta terça-feira, a sua descoberta histórica: um navio português carregado de escravos proveniente da ilha de Moçambique e a caminho das plantações de açúcar no Brasil.

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Seriam precisos mais cinco anos de pesquisa e múltiplos mergulhos em águas furiosas até que os investigadores anunciassem, esta terça-feira, a sua descoberta histórica: um navio português carregado de escravos proveniente da ilha de Moçambique e a caminho das plantações de açúcar no Brasil.

Transportando entre 400 e 500 negros acorrentados no porão, o navio nunca terá chegado a completar a travessia de quatro meses, entre o Oceano Índico e o Atlântico Sul. Depois de dobrar o Cabo da Boa Esperança, o São José Paquete de África embateu em rochedos a cerca de 50 metros da costa da Cidade do Cabo e ficou reduzido a escombros. O capitão português sobreviveu, bem como a tripulação e metade dos escravos que se encontravam a bordo. Calcula-se que 212 escravos tenham morrido no naufrágio, que se deu no final de Dezembro de 1794.

Trata-se da primeira pesquisa arqueológica realizada sobre um navio que se afundou enquanto transportava escravos. “Já se encontraram navios que em tempos carregaram escravos mas que não naufragaram durante a viagem. Este é o primeiro de que temos conhecimento que se afundou com pessoas escravizadas a bordo”, disse Lonnie Bunch, director-fundador do Museu de História Afro-Americana, que vai abrir em Washington no próximo ano e que irá expor objectos resgatados do local do naufrágio.

Os responsáveis pela investigação acreditam que ela pode avançar o conhecimento actual sobre os 12 milhões de pessoas que foram capturadas em África e transportadas à força para a América do Norte, do Sul, Caraíbas e Europa. E o São José é “especialmente significativo”, nota Lonnie Bunch num comunicado, “porque representa uma das primeiras tentativas em incluir africanos da costa oriental no tráfico esclavagista”, prática que se prolongou até ao século XIX. Supõe-se que mais de 400 mil africanos tenham sido levados de Moçambique para o Brasil entre 1800 e 1865.

Esta descoberta resulta do trabalho desenvolvido pelo Slave Wrecks Project (Projecto Naufrágios de Escravos), uma joint-venture de investigadores de museus e instituições norte-americanas e sul-africanas que têm mantido o seu labor de anos praticamente em segredo, não só porque queriam ter resultados conclusivos antes de qualquer anúncio, mas também para proteger o local do naufrágio de potenciais pilhagens de caçadores de tesouros.

A descoberta do São José foi finalmente revelada esta terça-feira, na Cidade do Cabo, no mesmo dia em que uma equipa de mergulhadores depositou terra trazida da Ilha de Moçambique, o ponto de embarque, no local do naufrágio, em memória das vítimas. Esta quarta-feira, também na Cidade do Cabo, o simpósio Bringing the São José Into Memory (Trazendo à Memória o São José) vai juntar investigadores, curadores e historiadores de instituições sul-africanas, norte-americanas e moçambicanas em debates sobre o naufrágio, o comércio esclavagista e a questão da memória. Não há nenhum português entre os oradores convidados.

A investigação que permitiu identificar o São José envolveu não só o trabalho arqueológico no local do naufrágio, mas também pesquisas em arquivos, nomeadamente portugueses. Em 2012 os investigadores descobriram no Arquivo Histórico Ultramarino o manifesto de carga do São José, com detalhes sobre a partida do navio de Lisboa, em Abril de 1794, rumo à Ilha de Moçambique. O documento contém informação sobre um elemento que a equipa de investigadores considerou a pista mais providencial em todo o processo: o São José deixou Lisboa com 1.500 barras de ferro que se destinavam a ser usadas como lastro.

Essas barras eram comuns nos navios negreiros, para manter a estabilidade das embarcações, até porque o peso da carga humana variava nas longas travessias transatlânticas. Nem todos sobreviviam à viagem; as barras serviam para contrabalançar essa variação. Foi a descoberta de barras de ferro no naufrágio que levou os arqueólogos a determinar que o navio transportava escravos.

No ano anterior, em 2011, os investigadores tinham encontrado nos arquivos sul-africanos outro documento fundamental: o relatório do capitão do São José, Manuel João Pereira, descrevendo o naufrágio de 27 de Dezembro de 1794. Segundo o testemunho, que está redigido em português, o capitão e a tripulação tentaram salvar os escravos, até porque se tratava de uma carga rentável. Alguns foram enviados para terra numa barcaça, mas os ventos e as correntes fortes impediram o regresso da barcaça ao naufrágio para resgatar mais escravos. O documento refere-se aos membros da tripulação como “homens”, mas não os escravos, segundo o New York Times.

Em 2013, os investigadores descobriram um documento em Moçambique datado de 22 de Dezembro de 1794 confirmando a venda de um homem que embarcou no São José.

A investigação está longe de estar terminada, avisam os seus responsáveis. Só uma pequena percentagem do naufrágio foi explorada e as condições do local dificultam o trabalho. As correntes de água são tão vorazes que os mergulhadores comparam a experiência à sensação de estarem a nadar numa máquina de lavar. Sempre que há escavações, a areia volta a cobrir tudo rapidamente. Os arqueólogos não descobriram restos humanos nem vestígios do casco.

José Bettencourt, arqueólogo marítimo do Centro de História de Além-Mar da Universidade Nova de Lisboa, nota que as descobertas realizadas até ao momento não são inteiramente conclusivas.

“Os indícios apontam a hipótese de ser o São José como bastante provável. Mas não foram encontradas evidências que permitam determiná-lo com 100 por cento de certeza”, explicou ao PÚBLICO. “O uso de barras de ferro enquanto lastro era comum a partir do século XVII. Têm de aparecer materiais provenientes do território português, como por exemplo cerâmicas.”