Contra o esquecimento: perguntas sobre a história e a ideologia da crise (2)
O verdadeiro programa da coligação nunca vai ser enunciado, a não ser pelo zelo dos ideólogos, que serão logo postos na ordem, e pelo aborrecido efeito freudiano do lapsus linguae.
Em aumentos brutais de impostos. Sem isso, o “ajustamento” cai por terra de um dia para o outro. O aumento brutal de impostos foi uma medida de facilidade e de desespero, que acabou envolta na ideologia do “viver acima das suas posses”. Como em quase tudo que aconteceu nos últimos anos, há uma componente utilitária — a maneira mais fácil e com mais resultados a curto prazo para controlar o défice era aumentar “imenso” o IRS penalizando os rendimentos do trabalho —, e depois os ideólogos e propagandistas encontraram uma racionalização ideológica que foi a de, pela via dos impostos, se ir buscar à classe média “artificial” e que vivia “encostada” ao Estado, o que fosse preciso para a “ajustar” ao estado do limiar da pobreza que era aquele que a “economia” suportava. Era uma parte de uma estratégia de “empobrecimento”, que é o que era o “ajustamento”. Passos Coelho admitiu-o várias vezes, embora agora em ano eleitoral se tente apagar essa memória.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Em aumentos brutais de impostos. Sem isso, o “ajustamento” cai por terra de um dia para o outro. O aumento brutal de impostos foi uma medida de facilidade e de desespero, que acabou envolta na ideologia do “viver acima das suas posses”. Como em quase tudo que aconteceu nos últimos anos, há uma componente utilitária — a maneira mais fácil e com mais resultados a curto prazo para controlar o défice era aumentar “imenso” o IRS penalizando os rendimentos do trabalho —, e depois os ideólogos e propagandistas encontraram uma racionalização ideológica que foi a de, pela via dos impostos, se ir buscar à classe média “artificial” e que vivia “encostada” ao Estado, o que fosse preciso para a “ajustar” ao estado do limiar da pobreza que era aquele que a “economia” suportava. Era uma parte de uma estratégia de “empobrecimento”, que é o que era o “ajustamento”. Passos Coelho admitiu-o várias vezes, embora agora em ano eleitoral se tente apagar essa memória.
É possível este modelo de "ajustamento" sem um "brutal" aumento dos impostos?
Não. Basta manter os impostos ao nível actual para que a passagem dos anos lhe aumente os efeitos. Por isso não é preciso fazer nada para que os impostos conheçam apenas uma dinâmica: a de subir pelo efeito cumulativo do seu peso sobre o rendimento das famílias e pessoas.
Se a coligação voltar a governar, passada a descompressão do ano eleitoral, a primeira coisa que nos vai explicar de novo é que não pode baixar os impostos para as pessoas em termos que reponham a situação pré-crise. Para as empresas será diferente, aí manter-se-á a descida. Sem impostos muito elevados para as pessoas, o edifício deste “ajustamento” ruirá de um dia para o outro. Por isso, qualquer partido de oposição que pretenda governar encontrará muitas dificuldades, porque herdará um Estado baseado numa monocultura: a da colheita de impostos
O Estado "cortado" pelas "poupanças" está melhor ou pior?
Muito pior, desagregado, disfuncional e com um agravamento considerável da já má qualidade dos seus serviços. Com o tempo piorará. A característica das medidas tomadas por este governo, antes chamadas cortes e agora “poupanças”, foram cortes cegos e transversais que geraram muita disfunção no Estado, com relevo para a saúde, educação, justiça e qualidade dos serviços administrativos. O desperdício causado pela cegueira dos cortes transversais na qualidade do Estado vai custar muito mais caro do que as “poupanças” dos cortes. Veja-se o caso da contratação dos médicos de família, primeiro atirados para a reforma e depois contratados de novo, ou o caso das cantinas sociais versus RSI. Há dezenas de exemplos.
O governo PSD-CDS não concordava com o memorando mas foi obrigado a aplicá-lo?
Completamente falso. Os partidos do governo PSD e CDS assinaram o memorando, elogiaram o seu papel positivo de pressão exógena sobre as políticas endógenas, acharam-no pouco nas suas medidas mais duras e “foram mais longe do que a troika”. Por muito que agora queiram esquecer, o PSD (e de reboque o CDS) ajudou a fazer o memorando, apoiou o memorando, usou o memorando quando lhes convinha, e fez tudo isto com tanta convicção que mesmo o incómodo actual não esconde a pureza dos sentimentos de amor iniciais.
Podia-se cumprir o memorando de forma muito diferente da que foi feita?
Podia. Desde o primeiro minuto que havia propostas alternativas para o seu cumprimento, que implicavam um tempo diferente de aplicação de medidas de austeridade, e uma diferente distribuição do ónus destas medidas. Vieram de gente próxima do PSD, que concordava com o “ajustamento”, mas que estava mais atenta aos efeitos da sua aplicação incompetente e “infinita”, logo desprovida de legitimação democrática a prazo. Foi o caso de Miguel Cadilhe, mas não só. Foram afastados liminarmente e, depois da incompetência e ignorância do país dos primeiros meses, da “surpresa” do desemprego, e da perda de controlo das finanças em 2011-2, o caminho da facilidade era o aumento dos impostos e a brutalidade no “ajustamento”. A ideologia pintou este cenário, com os “piegas”, a “austeridade expansionista”, o “empreendedorismo”, a “justiça geracional” e outras máscaras, que têm um papel e que não é pequeno, mas a coisa foi mais atabalhoada do que programada.
Foi a troika dura ou complacente com o governo?
Depende dos tempos. Houve alturas em que foi dura, mas no essencial foi complacente por razões políticas europeias e pela necessidade de apresentar o caso português como um caso de sucesso dos programas de “ajustamento”. A troika e as instituições que a suportavam foram acomodando a interpretação do “cumprimento” do programa aos falhanços e dificuldades do governo, permitindo adiamentos e incumprimentos de algumas das metas fundamentais do programa. O que é hoje incómodo para o governo nos relatórios do FMI é que eles lembram o que, na interpretação do FMI, devia ter sido feito e não foi. Passado o período eleitoral, e se a coligação continuar a governar, o governo tornará a ler com muita atenção os relatórios do FMI.
Que papel tem o esquecimento na actual campanha eleitoral?
O esquecimento e a memória selectiva, que é outra forma de manipular a memória, são duas armas centrais no discurso político das eleições de 2015, quer para a coligação PSD-CDS quer para o PS.
O PS estará sempre sob a sombra da prisão e das acusações a José Sócrates. É uma sombra que não vai diminuir mas aumentar, até porque as peripécias do processo vão ganhar novas características, logo maior atenção mediática. E Sócrates precisa de “usar” a seu modo a campanha eleitoral para obter leverage na opinião pública e no PS.
Embora o processo que levou à bancarrota tenha causas próximas e dele não estejam distantes o PSD e o CDS, e essas causas próximas sejam muito importantes para explicar o que aconteceu — até porque a bancarrota não estava “inscrita nas estrelas” —, a coligação vai usar o trauma da memória da véspera do dia “em que não havia dinheiro para pagar salários e pensões”, para demonizar não só a governação Sócrates mas o “socialismo”. Este “socialismo” inclui os governos de Cavaco Silva, mesmo que não o nomeie.
Este vai ser o aspecto mais ideológico da campanha, o seu conteúdo crítico do “Estado social”, aliás de qualquer papel do Estado, com excepção do Estado fiscal e repressivo e o abandono de qualquer perspectiva social-democrata por parte do partido que usa esse nome. Como o artista “antigamente conhecido como Prince”, durante algum tempo , um nome impronunciável, também o “social-democrata” do nome do PSD permanecerá impronunciável. No entanto, durante a campanha eleitoral o artista vai-nos de novo dizer que este nome se pronuncia “social-democrata”, para desgosto dos puristas neoliberais que sempre acharam que o PSD não é confiável, embora confiem, e muito, em Passos.
Em campanha eleitoral, quantos casacos de pele vão ser vestidos na "nudez forte da verdade"?
No meio desta estratégia de esquecimentos e classificações, o “verdadeiro” programa eleitoral vai aparecer essencialmente de duas maneiras, uma mais cómoda do que a outra. A mais cómoda é por via da crítica ao programa socialista, a menos cómoda e com riscos é através da enunciação de “problemas”, como é o caso da “reforma do Estado”, do “abaixamento do custo do factor trabalho” e do “buraco” da Segurança Social. Estes “problemas” devem ser mantidos na agenda em aberto, dependendo do “consenso” com o PS, eximindo-se a coligação de dizer com clareza o que vai fazer para os “solucionar”. Não é que não saiba o que quer fazer e fará se ganhar as eleições, mas não é conveniente dizê-lo em período eleitoral.
Daí o incómodo dos magos eleitorais que sabem muito bem o que não se deve dizer, como Marco António ou Portas, com o facto de a ministra das Finanças ter soltado a língua para a verdade, uma prática que não lhe é habitual, e ter afirmado que era preciso cortar reformas e pensões em pagamento. Como Passos Coelho fez com a TSU e o “abaixamento do custo do trabalho”. Por isso, o verdadeiro programa da coligação nunca vai ser enunciado, a não ser pelo zelo dos ideólogos, que serão logo postos na ordem, e pelo aborrecido efeito freudiano do lapsus linguae. Haverá cem casacos de pele sobre a “nudez forte da verdade”.