A longa viagem dos Pyramids está longe de terminada

Banda de culto do underground jazz da década de 1970, fundiu a vanguarda americana com várias tradições africanas. Reunidos em 2007, estreiam-se agora em Portugal. No Serralves em Festa, no Porto, este sábado, e na Casa Independente, em Lisboa, este domingo.

Fotogaleria

Ouvimos tudo isto e ouvimos os Pyramids, banda americana que os anos 1970 nos legaram e que, em boa hora, redescobrimos. Vamos vê-los este sábado no Serralves em Festa, no Porto (Prado, 18h), acompanhados pelos músicos portugueses Angélica Salvi, Gabriel Ferrandini, Gil Dionísio, João Guimarães e Pedro Sousa. Amanhã, domingo, apresentam-se em Lisboa, na Casa Independente (22h, 10€). Activos entre 1972 e 1977, partiram da vanguarda free-jazz e, imersos no ambiente activista social e musical da década de 1970 e ainda pela busca identitária que levou tantos músicos afro-americanos da sua geração a buscar inspiração em África, construíram uma discografia de três álbuns (Lalibela, King of Kings e Birth Speed Merging), lançada em edições de autor de mil exemplares que os transformaram, ao longo dos anos, num fenómeno de culto junto de coleccionadores e melómanos interessados no underground jazz da época.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Ouvimos tudo isto e ouvimos os Pyramids, banda americana que os anos 1970 nos legaram e que, em boa hora, redescobrimos. Vamos vê-los este sábado no Serralves em Festa, no Porto (Prado, 18h), acompanhados pelos músicos portugueses Angélica Salvi, Gabriel Ferrandini, Gil Dionísio, João Guimarães e Pedro Sousa. Amanhã, domingo, apresentam-se em Lisboa, na Casa Independente (22h, 10€). Activos entre 1972 e 1977, partiram da vanguarda free-jazz e, imersos no ambiente activista social e musical da década de 1970 e ainda pela busca identitária que levou tantos músicos afro-americanos da sua geração a buscar inspiração em África, construíram uma discografia de três álbuns (Lalibela, King of Kings e Birth Speed Merging), lançada em edições de autor de mil exemplares que os transformaram, ao longo dos anos, num fenómeno de culto junto de coleccionadores e melómanos interessados no underground jazz da época.

Em 2007, trinta anos após a separação e na sequência de um interesse crescente manifestado online da Alemanha ao Japão, a banda reuniu-se para um concerto. Em 2010, embarcaram numa digressão europeia, e dois anos depois chegou Otherworldly, o primeiro álbum de originais em três décadas e meia. Agora, este segredo por revelar apresenta-se em Portugal. “Achei [em 1977] que os Pyramids tinham cumprido o seu percurso e que era tempo de olhar em frente, mas também sabia que a música sobreviveria ao teste do tempo”, diz ao PÚBLICO o líder do grupo, o saxofonista Idris Ackamoor, desde o seu quarto de hotel. Acabara de chegar ao Porto e preparava-se para começar a trabalhar com os músicos portugueses que se juntarão ao quinteto americano. “Queremos tocar como uma família em palco. Queremos criar um ritual, queremos um pouco de magia, um sentido comunal de performance”, afirma. “Somos da mesma família de Sun Ra, provimos do mesmo sopro do Art Ensemble Of Chicago, de Ornette [Coleman], de Albert Ayler. Mas não verão imitadores. Os Pyramids são criadores, são iniciadores”.

Estamos no início dos anos 1970 e Idris Ackamoor e a flautista Margo Simmons, então sua mulher (que não integra hoje os Pyramids), e o baixista Kimathi Asante (que veremos nos concertos portugueses), estavam num dormitório da Universidade do Gana, em Accra, capital do país. Eram um grupo de músicos americanos em viagem por África, ao abrigo de uma bolsa da Antioch College, no Ohio, que já os levara até à Europa para concertos em Amesterdão e Paris. O único contacto que tinham na cidade estava ausente. No dormitório, apenas o colega de quarto do estudante que os deveria receber. Quando os americanos de visita lhe dizem que precisam de um sítio para dormir, não hesita. “Têm que falar com a Auntie Bee. Ela vai tratar de vocês”.

Pouco depois, estavam num condomínio, erigido pela senhora Bee para albergar familiares e pessoas próximas. “Fomos adoptados”, conta Idris Ackamoor entre risos, ao recordar que Auntie Bee acabaria por construir dois quartos extra para acolher o trio (“e uma casa-de-banho por trás deles”), ao lembrar-se daquela aventura que demoraria quase um ano e que, além do Gana, os levou ao Quénia, Marrocos, Etiópia, Uganda ou Egipto. Foi um momento determinante. Na viagem africana, conta, tocou com os King’s Drummers of Tabale, no Gana, gravou cantos de devoção na Etiópia, deixou-se fascinar no Quénia pela música dos kikuyu e dos maasai e viu griots corporizarem-se do nada, a meio de longas viagens de carro, para dançar e tocar enquanto, cumprindo a sua função de preservadores de memória, cantavam histórias dos seus países e dos seus povos. “Foi ali, há mais de 40 anos, que descobri verdadeiramente como na cultura africana a música se funde com a dança, com a narração, com o teatro. É uma abordagem tão holística que me deixou uma viva impressão”, conta ao PÚBLICO. “E foi a partir dela que decidi voltar a casa e usar o que aprendi nos Pyramids”. Nos seus concertos, a música era uma experiência intensa marcada pela noção de performance que os atravessava, pela dança que neles irrompia, pela amálgama de referências cenográficas, extraídas de várias culturas africanas, que compunham o cenário.

45 anos depois, Idris Ackamoor está no Porto. Com ele viajaram o companheiro de longa data Kimathi Asante, um segundo baixista, Heshima, a violinista Sandy Poindexter e o baterista e percussionista Babatunde Lea. Depois de os Pyramids se separarem em 1977, não demorou mais de dois anos a criar a companhia multidisciplinar Cultural Odissey, activa em São Francisco e que hoje alberga também os Pyramids. O que está a fazer na cidade é ainda reflexo dessa experiência de há quatro décadas e das marcas que deixou num grupo nascido num contexto especial. Saídos do Antioch College, no Ohio, escola prestigiada, centro de luta política e pensamento progressista onde tiveram como professor o pianista Cecil Taylor, um dos pioneiros do free-jazz, depois exploradores musicais em África e ainda depois disso membros da contracultura activista de São Francisco, os The Pyramids foram uma banda de jazz comprometido e actuante, fundindo os sons vividos e o espírito apreendido na digressão africana com as lições aprendidas junto de Cecil Taylor e nos concertos de Sun Ra ou nos discos John Coltrane. “Ninguém mais o estava a fazer como nós”, acentua. “Claro que havia o Art Ensemble of Chicago e a música de Sun Ra, mas nós tínhamos uma ligação directa a África e combinar a música africana com a nossa avant-garde era um fenómeno único. ”

Continua a sê-lo hoje, defende. As motivações, garante, são as mesmas. Define-se como “filho dos direitos civis” e angustia-o deparar-se, hoje, com uma ferida aberta que se desejava cicatrizada. “Os homens negros mortos pela polícia, o ‘Hands up, don’t shoot’, o ‘I can’t breathe’. Tudo isso impressiona-nos muito” – compôs há um ano For Michael Brown, na sequência do assassinato de um jovem negro por um agente da polícia de Ferguson. A resposta que tem para dar é a que os Pyramids propõem desde sempre. “Paz, amor, perdão. Sou um animal político e os Pyramids estão absolutamente empenhados no conceito de música enquanto cura e regeneração, em chegar à espiritualidade da música através do seu sentido ritual, como aprendemos em África”. Não, a viagem de há quatro décadas ainda não acabou.