Trabalhos de Casa
Caro Augusto,
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Caro Augusto,
Não me é possível deixar de responder aqui ao teu artigo sobre a visibilidade da obra de Paulo Rocha (PÚBLICO, 15 de Maio), e isso por vários motivos, entre os quais, como deves calcular, o facto de a notícia da mumificação da Cinemateca ser manifestamente exagerada.
Não resistindo ao impulso de assinalar o feito assumindo o papel de acordador de consciências sobre o que está por fazer, apontando-nos o dedo numa acusação que envolve factos e intenções mas demonstrando em ambos os casos um desconhecimento e uma ligeireza que reputo inaceitáveis, o teu texto obriga-me a três comentários que lamento sinceramente ter de fazer:
1. Alguém consegue perceber porque é que, ao aproveitares o lançamento destes filmes de Paulo Rocha em sala para lançar um libelo acusatório contra a falta da respetiva edição em DVD, omitas o facto de esta operação incluir… a edição destes filmes em DVD? Não sabias? Não reparaste? A edição destes e dos restantes títulos de Paulo Rocha estava anunciada quando publicaste o artigo, a saída imediata dos dois primeiros estava igualmente anunciada, a promoção da iniciativa não parou de sublinhá-lo, e os dois primeiros DVD (Os Verdes Anos e Mudar de Vida) estão em venda desde o dia 16 de Maio, um deles distribuído com este mesmo jornal! Se este era o teu tema, como aceitar a omissão?
2. Uma vez que tu próprio encadeias o assunto com críticas à ausência da Cinemateca (e não iria buscar isto se não fosse essa tua incursão), alguém consegue perceber que te refiras à iniciativa como uma “operação da Midas Filmes”, sem qualquer menção ao facto de se tratar de uma iniciativa contratualizada com a Cinemateca, feita a partir dos restauros digitais desenvolvidos e terminados pela Cinemateca (um longo e grande trabalho supervisionado pelo realizador Pedro Costa) e que justamente engloba a coedição das obras em DVD pela Midas e pela Cinemateca? Não reparaste? Não sabias? Não te interessou sequer saber como é que esses restauros digitais apareceram? Não viste nenhuma das legendas introdutórias aos restauros exibidos em sala? Se o teu tema era também a Cinemateca, como avaliar a omissão?
3. Uma vez que, a meio do teu artigo, a crítica à Cinemateca sai do terreno circunstancial para volver programática (falas de “conceção fundamentalista da conservação em película”, de “perene conceção” centralizadora do organismo…), alguém consegue perceber que escrevas tanta coisa sobre nós omitindo tudo o que nós próprios temos dito e feito sobre estes assuntos na última fase da vida da casa, em particular ao longo do último ano? Em 27 de Outubro de 2014, há sete meses e quando estavam decorridos oito meses sobre o arranque de funções desta direção, a Cinemateca realizou uma conferência de imprensa publicamente divulgada em que a direção distribuiu e comentou um texto com uma visão programática da instituição e o anúncio das suas prioridades (A Cinemateca em contexto de mudança — opções estratégicas e projetos de atividade). Não cabendo aqui sequer resumir aqui esse texto (o nosso trabalho foi fazê-lo e distribui-lo, esperaria que o teu trabalho, se quisesses ter algum, seria o de lê-lo e discuti-lo), sempre te vou informando que os três primeiros capítulos (de um total de oito) tinham como títulos: No tempo do digital: uma clarificação museológica; A Cinemateca e a descentralização; Um programa para a produção de matrizes digitais de alta definição. Antes de prosseguir, pergunto-te então: não sabias? Não reparaste? Não te interessa saber? Lamento ter de acrescentar que, se as circunstâncias não te permitiram nem comparecer nem depois perguntar (?), eu próprio dei na altura várias entrevistas sobre o tema, e, mais do que isso, com outros colegas e convidados, continuei a debater o assunto em público em inúmeros colóquios organizados nas nossas salas desde esse momento até hoje. Nesse texto, nessas entrevistas e nesses debates falou-se muito de identidade e mudança, pensando-se a função museológica no novo quadro industrial, e ultrapassando-se tanto o primarismo da escolha entre tecnologias como o que seria um mero cenário de convivência indiscriminada de ambas sem opções claras sobre o uso de cada uma. Donde, face ao que nestes meses aqui se disse e discutiu, o teu alerta vem muito atrasado e não é senão, enquanto crítica à instituição, uma denúncia deslocada, desconhecedora e triste.
É claro que admito como perfeitamente normal que não tenhas podido acompanhar este debate, nem que fosse indiretamente ou à distância. A pergunta é então: porquê ocupar uma parte da página do PÚBLICO com o que nós somos e pensamos em relação a isso?
Admitamos ainda, por um momento (e embora o teu texto não se tenha limitado a isso) que a questão não é o que pensamos mas o que fazemos, ou já fizemos — ou já se fez — nessa área. Aí, começaria por esperar que acompanhasses os passos concretos que entretanto foram dados pela Cinemateca, começando outra vez pelo trabalho de restauro dos filmes de Paulo Rocha mas continuando com os ensaios de restauro digital levados a cabo no âmbito da parceria com o laboratório CINERIC (outro capítulo do nosso texto programático…) ou a preparação da coleção DVD a editar com o Museu Nacional de Etnologia. Mas o problema, Augusto, é que nesta fase histórica não tem mesmo sentido emitir-se opinião sobre o que falta fazer neste campo sem que se emita alguma opinião sobre o caminho para lá chegar. Pela nossa parte, não considerando que a tarefa de digitalização do cinema português tem de assentar na Cinemateca, não nos afastámos por isso da nossa responsabilidade em relação a ela, aceitando à cabeça um papel central no planeamento e na concretização de um trabalho que tem de envolver outras formas de financiamento e outras entidades públicas e privadas.
Porém, que a função e o problema material de digitalizar o nosso património cinematográfico seja algo mais complexo e matizado do que se depreende do teu artigo é algo que, infelizmente, deixo de esperar que percebas, uma vez que não te atravessam o pensamento quaisquer detalhes relacionados com meios e conjunturas, e muito menos a problemática da propriedade das obras. Do mesmo modo, não espero que te interesse o esforço de adaptação de infraestruturas que, num contexto de drástica redução orçamental, apesar de tudo temos feito (a tua insinuação de que a instalação de equipamento de projeção digital nas salas da Cinemateca aconteceu por causa do filme de Paulo Rocha é, em si mesma, patética). O programa de trabalho da Cinemateca sobre o tema da digitalização do cinema português vem de trás e vai prosseguir, tendo um dos últimos atos sido a apresentação do quadro quantitativo feita pelo subdiretor Rui Machado, no Centro Cultural de Belém, no passado dia 17 de Abril (no âmbito da iniciativa O lugar da cultura), e sendo o próximo o encontro sobre o plano de digitalização que propusemos para Junho com a presença de todos os agentes do meio.
Se estes problemas comezinhos não te interessam, ou se achas que estão para além da capacidade de tratamento jornalístico, que seja. Fica-me a esperança de que, ao menos quanto às intenções, haja no futuro uma mínima atenção ao que dizemos ou, de preferência…, não haja nada. Por mim, todos os teus comentários são bem-vindos, quaisquer que sejam e em que sentido forem (acredito de resto que precisamos deles) desde que sejam feitos depois dos trabalhos de casa.
Director da Cinemateca Portuguesa
Este texto foi escrito ao abrigo do novo Acordo Ortográfico