Desfazer o género e outras subversões
O grande empreendimento de Judith Butler foi pensar o "género" de maneira a torná-lo uma categoria subversiva: com isso, perturbou o tradicional modo de entender o sexo, o desejo e o corpo. No próximo dia 2, traz ao Teatro Maria Matos a conferência Why Bodies Matter, incluída num ciclo que foi buscar o nome a outro dos seus livros, Gender Trouble.
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A circunstância deste programa e da vinda de Judith Butler a Portugal é o pretexto para a entrevista que se segue, feita por e-mail. Mas antes de a ler convém ter uma iniciação mínima ao pensamento daquela que marcou a teoria feminista contemporânea, é uma referência fundamental nos estudos gays e lésbicos, reformulou em termos muito polémicos (e com um efeito enorme nos gender studies, que nunca mais deixaram de se situar num horizonte butleriano) a concepção do género como categoria, para além de estar na origem da teoria queer. Mas a obra filosófica de Judith Butler não se fica por estas questões. Ela prolonga-se no campo da filosofia política e da ética, na crítica do sionismo e do Estado de Israel (ela, que é judia e cresceu num ambiente familiar sionista), nas intervenções contra a política internacional dos governos americanos (foi uma das vozes mais críticas da política de George W. Bush após o 11 de Setembro e da “indefinite detention” posta em prática pelo secretário da Defesa do governo Bush, Donald Rumsfeld).
Em Gender Trouble, Judith Butler empreende uma radical crítica genealógica, no sentido de Foucault, da noção de género, mostrando como este se constrói socialmente, pelo discurso. Evidentemente, esta busca genealógica é anti-naturalista e aproxima-se dos termos de uma linguistic turn, uma viragem linguística (o que lhe valerá, aliás, fortes críticas de elitismo teórico por parte de quem teve dificuldade em perceber que a teoria, para Butler, é sempre consubstancial à dimensão política e social). Ela irá assim demonstrar que as categorias fundamentais de sexo e género são os efeitos de uma certa formação do poder e nelas estão em jogo questões fundamentalmente políticas. Dizendo que o género é uma categoria construída pelo discurso, Butler introduz, logo no primeiro capítulo de Gender Trouble, a noção de performatividade (aprofundada depois em Bodies That Matter), isto é, uma concepção do género enquanto algo que se constrói através de uma série de actos imitativos que buscam a conformidade com um original que não existe em nenhum lado, é uma mera referência do discurso. Por exemplo, da heteronormatividade que pesa sobre nós, que nos foi inculcada, e que geralmente perpetuamos através dos nossos fantasmas e das nossas opções de vida. Essas normas dizem-nos o que é preciso fazer para ser um homem ou uma mulher. Não é que Judith Butler negue absolutamente a existência de uma natureza feminina ou masculina. Mas a questão é que o género, no seu carácter performativo, é também sempre objecto de uma discussão pública, nunca é uma evidência dada pela natureza.
Esta desnaturalização do género seria um gesto teórico de reduzido alcance se Butler mantivesse um impasse teórico bem conhecido e até clássico: aquele entre o sexo “natural” e o género “socialmente construído”. A sua concepção do sexo faz dele algo que, tal como o género, é construído pelas relações de poder e depende de um discurso que é sempre constituitivo, performativo. Não se trata de negar pura e simplesmente a existência do sexo biológico. Judith Butler insiste que ele não é uma ficção, nem uma mentira ou uma ilusão. É, aliás, para essa verificação que remete um título como Bodies That Matter, onde se percebe um jogo semântico com a ideia de materialidade do corpo. Mas, para além de a definição do sexo biológico nunca ter sido uma evidência, ter sido sempre objecto de controvérsias entre cientistas, essa definição necessita de um linguagem e de um quadro de pensamento. De maneira que nunca temos uma relação simples e transparente com o sexo biológico. O percurso genealógico e anti-naturalista através do qual Butler chega à performatividade do género não é apenas uma máquina de guerra contra todo o essencialismo que encerrou o homem e a mulher em categorias estritas “naturais” (e sabemos como a concepção dessa diferença “natural” foi responsável pela dominação masculina como uma matriz de toda a violência); tem também o efeito de mostrar toda a identidade como uma dialéctica. A subversão da identidade é aquilo que a drag queen realiza. E os queer studies são uma resposta teórica e disciplinar a todas as experimentações em que o corpo se dá como uma auto-criação, uma forma plástica em que o sujeito se auto-apresenta liberto de determinações identitárias e do essencialismo biológico.
Judith Butler empreendeu assim uma radical desconstrução da ontologia sexual, a partir de Derrida. A sua difícil tarefa consistiu em pensar simultaneamente o feminino e a subversão da identidade, em fazer uma crítica do feminismo clássico (que reivindicava a categoria da “mulher”, cujo fundamento sempre tinha funcionado como o factor fundamental de opressão) sem passar para um pós-feminismo que de um modo geral se situa no campo bem comportado da “naturalidade” do sexo em relação ao género.
Uma apresentação mais completa de Judith Butler não poderia poupar-nos aos seus estudos sobre a violência política, muito marcados pela leitura de Walter Benjamin e sobre o sionismo e a “judeicidade”, a jewishness. As suas críticas visam, antes de mais, aquilo que ela designa como “a violência de Estado e as modalidades coloniais de expulsão e de repressão”. Butler procura demonstrar que é possível fazer essas críticas no interior de uma tradição judaica, diferente daquela em nome do qual o Estado de Israel pretende falar. E, para isso, vai buscar a Hannah Arendt a noção de “judeicidade” (que não implica uma identificação com o judaísmo), como categoria cultural, histórica e política. Butler visa, assim, pôr em discussão o direito do Estado de Israel de falar em nome dos valores judeus ou até do povo judeu.
A publicação, em 1990, de Gender Trouble foi um acontecimento importante, quer para a teoria feminista, quer para os queer studies. Vinte e cinco anos depois, como é que vê ainda a tarefa de “desfazer” e perturbar o género?
Quando foi publicado,Gender Trouble entrava em conflito com algumas formas dominantes da teoria feminista. Sempre que se falava de “mulheres”, assumia-se que elas se definiam pela relação com a reprodução ou o casamento, e o pressuposto era o de que ambos requeriam a heterossexualidade. Actualmente, temos de facto debates abertos sobre se “mulheres” se refere apenas a quem coube essa designação por nascimento ou se pode, e deve, incluir quem, em determinada altura da sua vida, assume essa designação. E temos um debate público muito maior sobre o casamento gay. O recente “sim” ao referendo na Irlanda foi histórico. E a reprodução pode, e já acontece, ser garantida através de meios técnicos, o que é verdade para heterossexuais, gays e lésbicas, e para pessoas solteiras de qualquer género. A questão central em Gender Trouble consistia em abrir categorias que há muito tempo estavam fechadas. Fazia parte de um movimento intelectual, cultural e político mais amplo, embora na altura eu não soubesse que seria a teoria queer.
A sua teoria da performatividade do género desencadeou bastantes críticas. Como vê hoje essa reacções à ideia de que o sexo é culturalmente construído e quais são as questões centrais desse debate?
É interessante que algumas pessoas tenham pensado que eu estava a defender que o género pode ser escolhido. Outras pessoas pensaram que eu estava a argumentar que somos todos determinados por normas culturais. Mas, na verdade, eu estava a dizer outra coisa. Nós nascemos no interior de sistemas discursivos e de poder, e qualquer liberdade que nos é dada para mudar esses sistemas deriva dos nossos próprios recursos históricos e das formas permitidas de solidariedade que podemos encontrar. Algumas pessoas pensaram que eu estava a negar que houvesse diferenças biológicas ou materiais entre os sexos. O que eu quis dizer foi que a história da ciência demonstra que nunca houve uma simples definição do sexo ou mesmo uma simples maneira de estabelecer as diferenças entre os sexos. Isso foi contestado durante muito tempo. Não significa que não existam diferenças materiais que podemos encontrar, mas há sempre excepções, especialmente quando se trata de indivíduos intersexuais. E há continuidades interessantes ao nível das hormonas e dos genes. Talvez devêssemos então aceitar a variação e a complexidade sexual dos humanos. Quando nos referimos a uma diferença material entre os sexos, recorremos a um antigo esquema conceptual de modo a nos entendermos sobre o que dizemos. Temos de ter em conta o facto de que há muitas maneiras diferentes de estabelecer o sexo, o que significa que nenhuma definição goza de uma hegemonia cultural. E isto não significa que o sexo não existe. Há sexo! Mas se formos convidados a dizer o que queremos dizer, temos de optar por uma visão ou outra, e há muitas.
E a “mulher”? A desconstrução de toda a ontologia sexual não desemboca num quase desaparecimento da “mulher”, esvaziando a referência fundamental de todo o feminismo?
A questão está em deixar que mais mulheres se tornem visíveis, e não menos. Se, nós próprias, nos restringimos a estritas definições do que “é” uma mulher, invariavelmente excluímos muitas mulheres que não são conformes a tais definições. O que é preciso é estabelecer um feminismo mais inclusivo, e reconhecer as trans-mulheres que vieram incluir-se na categoria e a tornaram complexa.
Foucault escreveu uma vez: “Nós temos de nos obstinar em ser homossexuais e não em reconhecer que o somos”. Esta fórmula critica e evacua a questão identitária clássica. Foucault foi para si uma referencia na sua crítica das políticas identitárias?
Sem dúvida, devo muito a Foucault, e sinto-me feliz por isso. Se procuramos descobrir quem somos, e depois decidir que nos encontrámos a nós próprios, significa isso que acabámos com o processo de nos tornarmos algo novo? Significa que privilegiámos o ser em detrimento do devir? E esquecemo-nos de que há muita coisa na vida que é imprevisível para nós? Foucault estava mais interessado nas práticas da subjectividade, em encontrar modos de relação com o eu e cultivá-los como práticas. Eu acrescentaria que na relação com os outros descobrimos sempre alguma coisa sobre quem somos, e isso significa que estamos descentrados no momento da auto-descoberta. Acredito que vivo num mundo social que podemos também transformar, não nos satisfaria ficarmos contentes com o que somos neste momento. Somos criaturas que vivem no tempo, e essa é a base da nossa humildade e do nosso compromisso.
A heteronormatividade tem sofrido imensas derrotas, por todo o lado. Em que estado ainda se encontra?
Parece que está viva e bem de saúde entre os católicos de direita e ainda está em vigor na lei e na psiquiatria em muitos países. Os ataques violentos ao casamento gay, o assassínio de gays nos Estados Unidos e no Uganda, a patologização da parentalidade gay e lésbica na Polónia. A heteronormatividade está vive e de boa saúde. Ainda há muito trabalho a fazer.
Queer
designa também uma estética. Trata-se de uma estetização da sexualidade e não apenas do corpo? Qual é o seu potencial transgressivo?
Suponho que toda a forma de auto-recriação envolve a tentativa de fazer algo que não existia antes. Mas. do meu ponto de vista, nós “fazemo-nos” a nós próprios a partir de recursos que já lá estavam. Talvez exista então uma maneira de pensar a performatividade
queer como re-significação. Suponho que é uma estética, mas é uma estética ligada à política
A filosofia política é uma outra dimensão do seu trabalho filosófico. Consagrou, por exemplo, vários estudos à questão da violência. E interveio de uma maneira muito crítica face ao governo de George W. Bush, após o 11 de Setembro. O que é que na matéria política do nosso tempo a mobiliza mais em termos filosóficos?
Penso que foi importante pensar sobre as vidas precárias. Ainda que assistamos à exploração dos trabalhadores por todo o lado, também vemos a condição dos desempregados crónicos, aquelas forças em vidas migratórias sem recursos económicos e muito pouco potencial para a cidadania. Vemos também populações destroçadas, atacadas e espoliadas por guerras, muitas delas apoiadas ou instigadas pelo governo dos Estados Unidos. Penso que é muito importante desenvolver um vocabulário para compreender estas formas de precariedade, algumas das quais são produzidas pelo Estado, e outras pertencem a uma mais ampla tendência para a privatização e des-democratização. Os movimentos
queer tornaram-se importantes para as mobilizações anti-expulsão em Espanha, para os direitos dos refugiados. Tudo isto faz parte da nossa mais ampla responsabilidade global.
É judia, mas muito crítica do Estado de Israel. Por isso, a sua relação com os judeus americanos não tem sido fácil, pois não?
Sou judia e como muitas centenas de milhares de outros judeus não acredito que o Estado de Israel represente os meus valores ou, de facto, os valores judeus que aprendi quando era criança. É muito importante que os judeus de esquerda defendam
a justiça social e política para o povo palestiniano que está privado de direitos básicos de cidadania e dos poderes de auto-determinação. São princípios democráticos que todos deviam apoiar, incluindo os judeus que estão comprometidos com a democracia, como eu estou. Não vejo uma forma de sionismo que não reserve direitos superiores para o povo judeu, por isso não posso ser uma sionista. É verdade que nasci numa família sionista, e fui ensinada, como muitas pessoas, que valorizar o ser judeu implica defender Israel. A missão para os judeus de esquerda consiste em opor-se absolutamente ao anti-semitismo e a todas as formas de racismo, mas também lutar pela justiça social – um dos mais importantes legados do judaísmo progressista. Assim, pode-se e deve-se afirmar a nossa judeicidade, combater o anti-semitismo e criticar o Estado de Israel pelo seu militarismo e falta de democracia. Não há aqui nenhuma contradição, tanto quanto posso ver.