Destrancar o armário português
É inconcebível que a totalidade dos políticos gays portugueses continue barricada nos respectivos armários
Tirando um cardeal do Vaticano, que num momento de delirium tremens se lembrou de classificar o resultado do referendo como “uma derrota para a Humanidade”, as reacções foram sobretudo de congratulação, incluindo em Portugal. A Irlanda é o 14.º país europeu a legalizar o casamento gay, mas é o primeiro a fazê-lo através de referendo — e isso fez toda a diferença num aspecto fundamental, que eu gostaria hoje de discutir aqui: a forma como em Portugal, ao contrário de quase todos os países da União Europeia — Irlanda incluída —, os gays continuam a inexistir na política, com excepção do epifenómeno que foi a passagem de Miguel Vale de Almeida pelo Parlamento, em 2010.
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Tirando um cardeal do Vaticano, que num momento de delirium tremens se lembrou de classificar o resultado do referendo como “uma derrota para a Humanidade”, as reacções foram sobretudo de congratulação, incluindo em Portugal. A Irlanda é o 14.º país europeu a legalizar o casamento gay, mas é o primeiro a fazê-lo através de referendo — e isso fez toda a diferença num aspecto fundamental, que eu gostaria hoje de discutir aqui: a forma como em Portugal, ao contrário de quase todos os países da União Europeia — Irlanda incluída —, os gays continuam a inexistir na política, com excepção do epifenómeno que foi a passagem de Miguel Vale de Almeida pelo Parlamento, em 2010.
Qualquer pessoa que não frequente os corredores do poder ou as redacções dos jornais deve estar certamente convencida de que em Portugal não há deputados gays, nem secretários de Estado gays, e muito menos ministros gays. Em Portugal, aliás, não há gays em lado nenhum, fora do Chiado e do Príncipe Real, das associações dedicadas aos direitos dos homossexuais, do mundo artístico e, vá lá, da televisão — sendo que aqui convém sublinhar a enorme importância simbólica de uma saída do armário como a de Manuel Luís Goucha, particularmente corajosa tendo em conta que a sua vida é trabalhar para uma audiência envelhecida e teoricamente conservadora, como é o caso do público dos programas da manhã.
Já quando olhamos para a Irlanda, percebemos que a imposição de um referendo teve, pelo menos, a vantagem de levar um homem como o ministro da Saúde Leo Varadkar a assumir publicamente que era gay, por dever de consciência. Convém notar que eu não tenho qualquer desejo de ver listas de figuras públicas gays a circular pela Internet — é bastante evidente que ninguém pode ser empurrado para fora do armário ou ser forçado a assumir a sua homossexualidade. Mas não deixa de ser absolutamente lastimável que neste triste país não se consiga arranjar um único homem ou uma única mulher, do PS, do PSD, do CDS, capaz de assumir de uma vez por todas a sua homossexualidade, sobretudo num país que é dado a legislações muito progressistas, mas onde depois os legisladores não têm a coragem de acompanhar o progressismo da sua legislação. Isto é coerente? Não, não é coerente.
Mais do que isso: no país do hemisfério norte — Portugal — onde há mais políticos nas televisões, enxameando tudo o que é canal com os seus comentários, e onde o partido que tem mais probabilidade de ganhar as próximas eleições defende a adopção por casais homossexuais (está no programa do PS: “eliminar a discriminação no acesso à adopção por casais do mesmo sexo”, o que, para todos os efeitos, é o último degrau da escada igualitária), é inconcebível que a totalidade dos políticos gays portugueses continue barricada nos respectivos armários, clamando por um Portugal mais liberal e menos homofóbico através do buraco da fechadura. Talvez o melhor seja mesmo a adopção ir a referendo, a ver se alguém ganha coragem. Porque, francamente, é preciso. E porque, muito francamente, já tarda.
Jornalista