“Depender das Finanças condiciona a nossa liberdade decisória”

Entrevista à presidente da Comissão Nacional da Protecção de Dados, Filipa Calvão.

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Edgar Sousa

A dirigir esta entidade independente desde 2012 e doutorada em Direito, em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Coimbra, Filipa Calvão tem afrontado o Governo em matérias tão sensíveis como a lista de contribuintes VIP, a base de dados de pedófilos ou o uso de drones pela polícia nas manifestações, pondo em causa a legalidade destas medidas. Como a comissão ainda não foi consultada sobre a videovigilância feita a partir do ar, a jurista deixa um recado: “Presumo que não vão legislar sobre drones sem nos consultarem. Tenho dúvidas de que isso possa sequer ser equacionado pelos titulares do poder legislativo”.

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A dirigir esta entidade independente desde 2012 e doutorada em Direito, em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Coimbra, Filipa Calvão tem afrontado o Governo em matérias tão sensíveis como a lista de contribuintes VIP, a base de dados de pedófilos ou o uso de drones pela polícia nas manifestações, pondo em causa a legalidade destas medidas. Como a comissão ainda não foi consultada sobre a videovigilância feita a partir do ar, a jurista deixa um recado: “Presumo que não vão legislar sobre drones sem nos consultarem. Tenho dúvidas de que isso possa sequer ser equacionado pelos titulares do poder legislativo”.

Em casos como o do vídeo das agressões ao jovem da Figueira da Foz, como se equilibra o direito à privacidade com aquilo que pode constituir prova de um crime?
Toda a recolha e disponibilização de imagens de pessoas constitui um tratamento de dados pessoais e nessa medida depende de previsão legal ou de autorização da Comissão Nacional da Protecção de Dados – que só pode ser dada se houver consentimento de todos os envolvidos ou se existir um interesse público importante que justifique essa divulgação. Acontece que nos processos-crime tem havido alguma jurisprudência que, ponderando os valores em causa, faz prevalecer a sanção do crime sobre as regras da privacidade.

Como vê a eventual utilização das imagens deste esbofeteamento em tribunal?
Nunca me pronuncio sobre casos que estão sob investigação. Em todo o caso, é evidente que a própria disponibilização destas imagens na Internet é grave, devendo ser adoptadas medidas para prevenir este tipo de situações – tal como são graves os comportamentos retratados. As primeiras imagens que apareceram na comunicação social não tinham o rosto dos jovens tapado. É preciso ter algum cuidado nesse tipo de coisas.

Os jovens têm hoje um conceito de privacidade diferente do dos adultos?
É uma geração que cresceu num mundo tecnológico muito mais avançado que as gerações anteriores. Por regra, a curto prazo é-lhes irrelevante o que possa ser feito com essas imagens: estão mais à vontade com a exposição da sua vida do que as gerações mais velhas. Mas não sei se estão suficientemente informados sobre as consequências que pode ter, na sua vida, a utilização de determinadas imagens suas a médio e longo prazo. São imagens que mais cedo ou mais tarde os podem vir a prejudicar. Podem servir para contratar ou não alguém no mundo laboral por mostrarem que ele fez isto, aquilo e aqueloutro em dado ponto da sua vida.

Situações como a que aconteceu no Marquês de Pombal durante os festejos do Benfica podiam ser mais prontamente resolvidas com videovigilância?
Até agora não há estudos que demonstrem claramente que um sistema de videovigilância sobre uma cidade ou um concelho previna efectivamente desacatos, crimes ou o que seja. A câmara não salva ninguém. Grava, transmite imagem em tempo real. Mas a intervenção policial é seguramente mais eficaz na prevenção da prática de crimes.

O Ministério da Administração Interna articula-se com a comissão quando julga necessário recolher imagens de manifestações, por exemplo?
Nos termos da lei isso implica a consulta à Comissão da Protecção de Dados para emissão de parecer.

Mas tem-no feito a tempo, tendo em conta que algumas decisões têm de ser tomadas quase de um dia para o outro?
Quando é invocada urgência o pedido chega em cima da hora, sem dar oportunidade à comissão para se pronunciar atempadamente. Nesse caso aprecia-se a posteriori se os pressupostos para a utilização de câmaras pelas forças de segurança estavam preenchidos. Não estando, isso implica a obrigatoriedade de eliminação das imagens recolhidas, que não podem servir para efeitos de prova.

Foi o que já sucedeu com o uso de drones pela PSP. A utilização destes aparelhos já foi regulada, como tem pedido repetidamente a comissão?
É uma questão que tem muitas implicações na segurança nacional e na segurança física dos próprios cidadãos – há riscos de acidentes com os drones, que podem chocar uns com os outros ou cair em cima das pessoas. E ao nível do impacto na privacidade. Está em preparação um diploma sobre a matéria que, tanto quanto sei, não tem ainda normas relativas à privacidade. Que é evidente que não pode deixar de ter, uma vez que por regra são acopladas a estes aparelhos aplicações para tratar dados pessoais – seja através de câmaras, seja por gravação de som ou leitura térmica.

Recebem muitas queixas de videovigilância ilegal ou inadequada?
Feitas por causa de drones são poucas ainda, até porque ainda não existe um sistema que permita saber quem os está a usar em cada momento e em cada local. Mas temos muitas queixas de utilização alegadamente indevida de videovigilância, quer nas relações de vizinhança quer pelas entidades laborais.

Isso é legal?
Os sistemas de videovigilância das empresas não podem ser para controlo do trabalhador.

Mesmo quando é apanhado a roubar pelas câmaras?
A Constituição proíbe a invasão das comunicações entre cidadãos, a não ser que exista um despacho de um juiz a autorizar uma investigação criminal.  Aqui põe-se o mesmo problema que nas comunicações electrónicas: em princípio não é lícito usar essas imagens para levantar um processo disciplinar. Agora quando está em causa a prática de um crime o direito à privacidade pode ser ponderado.

Também recebem queixas relativas a videovigilância em escolas?
Já tivemos algumas. Mas as câmaras são apenas ligadas quando não há ninguém nestes locais – e é isso que é razoável. Não há recolha de imagens de pessoas, porque isso limitaria a liberdade comportamental dos professores, alunos e funcionários. A ideia não é controlar a actividade de docentes e discentes, mas sim proteger o património escolar.

A comissão perdeu poder quando os seus pareceres sobre a instalação de videovigilância deixaram de ser vinculativos. Isso mudou alguma coisa?
Só em relação ao regime da obtenção de imagens em espaços públicos pelas forças de segurança. Mas tendencialmente os fundamentos invocados pela comissão são, alegadamente, tomados em consideração pelo Ministério da Administração Interna.

A comissão já se sentiu pressionada pelo Governo?
Pela sua natureza independente não se sente pressionada. A independência é isso mesmo: sobreviver a todo o tipo de pressões. Mas não tenho ideia que haja verdadeiramente pressões.

É então uma entidade querida?
(ri-se) Depende por quem. Há pessoas que a respeitam mas nem sempre é bem vista, porque diz muitas vezes que não. Emite muitas vezes pareceres negativos sobre diplomas legislativos, e por isso nem sempre é das entidades mais estimadas. Mas junto do público tem uma imagem positiva.

Já disse uma vez que o Governo por vezes se esquece de pedir pareceres à comissão
Isso é o contrário do que perguntou atrás: nós é que pressionamos os titulares do poder político e legislativo para que não se esqueçam de nós e nos façam a devida consulta prevista por lei.

É isso que está a acontecer com a lei dos drones?
A comissão não foi, de facto, ainda ouvida mas presumo que não vão legislar sobre drones sem nos consultarem. Tenho dúvidas de que isso possa sequer ser equacionado pelos titulares do poder legislativo.

O Governo quer avançar com uma lista de pedófilos que já mereceu parecer negativo de várias entidades, incluindo a Protecção de Dados. Pode ser uma medida morta à nascença?
Tenho muitas dúvidas sobre a sua conformidade com a Constituição. Na verdade essa informação já existe numa base de dados a que têm acesso as forças policiais e de investigação, que é o registo criminal. Temos dificuldade em perceber por que razão é preciso duplicá-la, prática sempre perigosa do ponto de vista da protecção da privacidade. Mas o principal problema da lei aprovada na generalidade no parlamento é termos cidadãos comuns a acederem, por via indirecta, a essa base de dados. Estão a criar-se condições para uma espécie de justiça popular, carimbando na rua pessoas que deviam poder reintegrar-se na sociedade, uma vez que já cumpriram pena pelo crime que cometeram. Não consigo perceber a utilidade prática desta medida. Não me parece que traga vantagens na prevenção da pedofilia. Do ponto de vista do direito penal não me parece que se possa considerar esta lei legítima.

O que sabe a comissão neste momento sobre a lista VIP do fisco?
Tanto quanto sei já não existe. O maior problema ao nível da protecção de dados pessoais é determinar quem tem legitimidade para aceder aos dados dos contribuintes. Ainda estamos à espera que nos digam que medidas vão ser adoptadas para prevenir esse acesso, que nos pareceu excessivo quer no número de pessoas quer das entidades fora da Autoridade Tributária – sem que esta tenha efectivo controlo quer dos acessos por entidades internas quer por externas. Há um prazo para o fazerem que termina em Setembro.

Esse descontrolo no acesso aos dados dos cidadãos estende-se a outras áreas?
Previmos realizar este ano uma série de inspecções a sistemas de bases de dados públicas e privadas para verificar como está a ser tratado o acesso a dados pessoais pela administração pública. A saúde é uma dessas áreas e a segurança social outra – bem como a base de perfis de ADN.

O caso da lista VIP pode dar origem à aplicação de multas ao Governo?
Enviámos o processo para o Ministério Público. Se este concluir que não há crime devolve-nos o processo e nós teremos de avaliar os factos que apurámos do ponto de vista da aplicação de coimas. O sistema está mal construído de raiz por culpa de vários intervenientes. Desde logo do legislador que, ao longo destes anos todos, não tem acautelado essa questão.

Cada vez mais os dados dos cidadãos estão entregues não ao Estado mas a empresas privadas, por via do outsourcing feito pelos diferentes ministérios
É um problema. A tentativa de encolher a administração pública desde a última crise financeira teve como consequência a falta de recursos humanos. Nós não censuramos o recurso ao outsourcing. O que censuramos é que, dentro das entidades privadas, que são muitas, haja tanto trabalhador a aceder a informação sensível dos cidadãos, sem que exista um controlo efectivo de quem acede e porquê. Neste caso, a Autoridade Tributária é responsável por verificar se as empresas que contratou estão a cumprir as regras de protecção dos dados pessoais.

Já há resultados sobre a inspecção que a comissão fez à factura electrónica, que permite reconstituir todo o percurso de um cidadão – se foi ao cabeleireiro, se foi à farmácia, a que horas o fez?
Ainda não a concluímos. A ideia é verificar em que termos é processada a informação recolhida, que é, de facto, muito sensível, por retratar o nosso dia-a-dia. Vamos verificar se essa informação está a ser usada apenas para os fins previstos na lei ou também para outras finalidades. O número de pessoas da Autoridade Tributária a aceder a essa informação é, contudo, mais restrito.

Como é que só com 25 trabalhadores a Protecção de Dados consegue levar a cabo este manancial de tarefas?
Com muita dificuldade e muitas angústias. Há dez anos entravam anualmente na comissão dois a três mil processos, em 2014 foram cerca de 18 mil. É estranho que o número de trabalhadores da comissão tenha vindo a ser reduzido em vez de aumentado.

E o orçamento é suficiente?
A comissão sobrevive graças às suas receitas próprias, que em 2014 foram de 1,8 milhões de euros, enquanto a dotação da Assembleia da República foi de 1,2 milhões – o que nem sequer serve para cobrir todas as despesas com pessoal. O problema são os condicionamentos à forma de gastar esse dinheiro. Queríamos contratar juristas e técnicos especializados, que não estão disponíveis no regime de mobilidade da administração pública, e não podemos ir ao mercado buscá-los. Se tivéssemos mais recursos seguramente faríamos mais inspecções, cobraríamos mais coimas e isso seria uma mais-valia para o Orçamento de Estado. É uma questão de gestão pública que não consigo perceber bem.

Será essa limitação propositada?
Também não diria tanto. Mas a comissão precisa de condições especiais e de autonomia para exercer a sua função com independência.  Não pode ficar dependente de autorizações ou pareceres favoráveis do Ministério das Finanças para gerir as despesas no seu dia-a-dia. É, evidentemente, condicionador da sua liberdade decisória.

Recebem muitas reclamações? Em que áreas?
No ano passado tivemos quase 700 queixas. As pessoas queixam-se de videovigilância mas também de spam, as comunicações de marketing que para serem enviadas dependem, nos termos da lei, do consentimento dos cidadãos. Também há queixas sobre o tratamento de dados feito por entidades públicas não ser o mais correcto.

Quais são as hipóteses de um cidadão que queira ver-se livre das empresas que o assediam sistematicamente com vendas agressivas?
Deve guardar todas as provas disso e queixar-se à comissão. No caso dos telefonemas é mais difícil, porque os números de onde nos ligam nem sempre aparecem identificados. É das coisas que mais incomoda as pessoas e em relação às quais é mais difícil garantir a sua defesa. Mas em princípio o contacto é feito em nome de uma empresa, sendo possível seguir esse rasto. E quando o cidadão diz que não quer que o voltem a contactar normalmente as empresas retiram o seu nome da base de dados. O problema é quando os contactos telefónicos são subcontratados a outra empresa.