Pequenos e grandes contribuintes com tratamento desigual perante o Fisco

Estudo destaca que pequenos contribuintes não têm defesa adequada no caso de erros de tributação.

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TdC diz que há “falta de articulação” entre o fisco e a Direcção-Geral do Orçamento Sara Matos

O trabalho da investigadora Ana Maria Evans, desenvolvido no âmbito de um estudo sobre "Valores, qualidade institucional e desenvolvimento em Portugal" que analisou o funcionamento e qualidade de seis instituições públicas e privadas, aponta para um hiato "entre o controlo apertado a que estão sujeitos os pequenos contribuintes e o tratamento mais tolerante dispensado às grandes empresas e às elites económicas".

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O trabalho da investigadora Ana Maria Evans, desenvolvido no âmbito de um estudo sobre "Valores, qualidade institucional e desenvolvimento em Portugal" que analisou o funcionamento e qualidade de seis instituições públicas e privadas, aponta para um hiato "entre o controlo apertado a que estão sujeitos os pequenos contribuintes e o tratamento mais tolerante dispensado às grandes empresas e às elites económicas".

Embora reconheça que a automatização dos cálculos e procedimentos de liquidação proporcionou "grande comodidade aos contribuintes que utilizam a plataforma electrónica" das Finanças e reduziu os custos de contexto para a administração, a autora não deixa de comparar a máquina fiscal a um "rolo compressor" que penaliza os pequenos contribuintes.

"A proliferação de instrumentos sofisticados de controlo informático tem um impacto negativo sobre a equidade", sustenta Ana Maria Evans, sublinhando que "a administração é cada vez mais célere, controladora e eficaz na tributação dos pequenos contribuintes", mas que estes não dispõem de adequada defesa no caso de erros na tributação.

Ao contrário dos grandes contribuintes que "dispõem de recursos técnicos e financeiros para planear e reduzir a sua carga fiscal", apoiando-se numa indústria de consultoria fiscal que "proporciona aos seus clientes uma panóplia de instrumentos financeiros sofisticados e operações internacionais complexas que aproveitam omissões legais para evitar tributação".

A intransigência "relativamente ao cumprimento das obrigações fiscais pelo pequeno contribuinte resulta de uma combinação de factores culturais, incentivos financeiros e limitações políticas", argumenta a investigadora, salientando que "prevalecem atitudes de desconfiança e a presunção de que o cidadão tenta evadir o fisco e, como tal, não tem razão quando protesta".

A desigualdade explica-se também pelas "omissões e cláusulas nas normas fiscais que ultrapassam a capacidade de intervenção da administração" e estão ligadas a escolhas políticas, com a aprovação de "reformas orgânicas e alterações substantivas em velocidade estonteante".

O estudo destaca ainda que "a elevada qualidade de atendimento" dos funcionários do Fisco não é correspondida pela "máquina" legislativa e os suportes informáticos: "o pequeno contribuinte -- e muito em particular o trabalhador por conta de outrem -- é tratado como um número; os processos e procedimentos que lhe dizem respeito são automatizados, com enorme eficácia e sem defesa em caso de erro, no contexto de um sistema judicial moroso".

A ausência de instrumentos que proporcionem uma defesa célere e imparcial às vítimas de erros "reproduz a percepção entre os cidadãos de uma administração que é injusta", autoritária e distante e "afecta a legitimidade da sua missão institucional".

Ana Maria Evans observa que a Autoridade Tributária "cumpre o seu mandato" no que diz respeito à sua capacidade de extrair recursos à população em geral, mas avalia negativamente a instituição devido à pressão fiscal desigual sobre os contribuintes. "Há um desequilíbrio claro entre a rigidez de cumprimento imposta aos trabalhadores por contra de outrem, por um lado, e a proliferação de instrumentos sofisticados de planeamento e evasão fiscal por grandes contribuintes", apurou.

O trabalho, desenvolvido a pedido da Fundação Francisco Manuel dos Santos, baseou-se em informações recolhidas ao longo de um ano (entre 2012 e 2013) e foi coordenado pela professora da Universidade Nova de Lisboa Margarida Marques e pelo professor da Universidade de Princeton Alejandro Portes.

Entre outros dados, a análise de Ana Maria Evans baseou-se, em 170 horas de entrevistas concedidas por ex-dirigentes e funcionários de serviços de Finanças, ex-governantes, revisores e Técnicos Oficiais de Contas, fiscalistas e empresários.

Informatização ajudou a eliminar "ilhas de poder"
No estudo é ainda referido que a introdução de tecnologia informática na Autoridade Tributária ajudou a eliminar as "ilhas de poder" e as "trocas de favores" de inspectores e chefias de serviços de finanças, refere um estudo que avalia o funcionamento de seis instituições nacionais.

"A informatização retirou às repartições de finanças a capacidade de controlar os fluxos de informação e, como tal, diminuiu muito a influência e poder dos seus chefes e funcionários a nível local", salienta a investigadora Ana Maria Evans neste trabalho, realizado a pedido da Fundação Francisco Manuel dos Santos e que vai ser apresentado publicamente na quinta-feira.

"Apesar de haver elementos de interpretação nos procedimentos que geram discricionariedade (...), a possibilidade de cruzamento de dados e de mapear as intervenções no sistema informático dificulta a conivência de funcionários com fraude fiscal", O estudo relata como, "antes da informatização das repartições de Finanças, os chefes das repartições controlavam os processos dos seus contribuintes e conseguiam filtrar a informação transmitida aos serviços centrais" e cita entrevistados que contam que, "entre pilhas e pilhas de papel que se acumulavam nas repartições, era fácil deixar prescrever processos sem que isso fosse detectado".

Também comuns eram as histórias sobre "ajustamentos" (para baixo) na avaliação de contribuições industriais, a troco de gratificações e favores. A reorganização do sistema e a informatização transversal, centrada no contribuinte e em rede, "reestruturou de forma avassaladora os fluxos de informação e monitorização dentro da instituição, minando "ilhas de poder" tradicionais e dificultando padrões de corrupção, salienta Ana Maria Evans.

Ana Maria Evans salienta que "o desalinhamento hierárquico de jurisdições territoriais e funcionais foi propício à constituição de ilhas de poder e tráfico de influências" nas repartições de Finanças, situação que se manteve até à informatização em rede dos serviços.

A investigadora concluiu, com base nas respostas dos entrevistados, que a "corrupção quotidiana" diminuiu drasticamente, mas sublinha que a administração tributária continua a debater-se com grandes desafios na detecção de fraude fiscal no âmbito de grandes negócios".

A Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) resultou da fusão da Direcção-Geral dos Impostos (DGCI), da Direcção-Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo (DGAIEC) e da Direcção-Geral de Informática e Apoio aos Serviços Tributários e Aduaneiros (DGITA), concretizada no início de 2012.