Onde falharam as privatizações
Nem tudo falhou, é certo, e seria redutor apontar o dedo a dois ou três culpados, porque a realidade é mais complexa. Mas perderam-se oportunidades únicas de transformar a economia portuguesa e construir empresas cujo crescimento e futuro estariam ligados ao país, com capitais nacionais e o envolvimento dos seus trabalhadores.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Nem tudo falhou, é certo, e seria redutor apontar o dedo a dois ou três culpados, porque a realidade é mais complexa. Mas perderam-se oportunidades únicas de transformar a economia portuguesa e construir empresas cujo crescimento e futuro estariam ligados ao país, com capitais nacionais e o envolvimento dos seus trabalhadores.
Em 1990, Mário Soares e Cavaco Silva, enquanto Presidente da República e primeiro-ministro, respectivamente, assinaram a lei-quadro das privatizações, um documento fulcral que serviu de base à diminuição do excessivo peso, ou mesmo obesidade, do Estado na economia, após a fúria das nacionalizações (directas e indirectas).
Nesse documento previa-se oito grandes objectivos. Os dois primeiros estavam, de certa forma, interligados, ao pretender não só melhorar as condições económicas e a competitividade das sociedades em causa, como também “reforçar a capacidade empresarial nacional”.
Em 1995, o Ministério das Finanças, na altura tutelado por Eduardo Catroga (agora chairman da EDP, onde o maior accionista é uma empresa estatal chinesa), elogiava o facto de as empresas privatizadas constituírem “o núcleo de grande parte dos grupos económicos portugueses” e de o processo de reprivatizações contribuir “de forma significativa para o desenvolvimento de grupos empresariais fortes”.
Actualmente, onde estão as participações dos accionistas portugueses que participaram em todo este processo? Não estão certamente na EDP, na Cimpor, na PT e, mesmo na banca e seguros, são hoje minoritários, dependentes dos grandes accionistas estrangeiros. É esse o caso, por exemplo, do BCP e do BPI. E se é verdade que os dois projectos nasceram de raiz nos anos 80, promovidos por diversos empresários portugueses, também é inegável que só ganharam a dimensão que têm hoje porque participaram no processo de reprivatizações: o BPI ficou com o Fonsecas & Burnay, Banco de Fomento e Banco Borges & Irmão; o BCP absorveu o Banco Português Atlântico. Hoje, o maior accionista do BPI é um banco catalão, o La Caixa, e o segundo, a larga distância, é a empresária angolana Isabel dos Santos (filha do presidente de Angola). No caso do BCP, o maior accionista é a petrolífera estatal angolana, a Sonangol, e o segundo maior, também a larga distância, é o espanhol Sabadell.
Neste momento, há dois caminhos para o BPI: ser totalmente dominado pelo La Caixa ou avançar para uma fusão com o BCP, onde o domínio seria angolano. Pelo meio, devido a uma gestão ruinosa, o BES entrou em colapso.
Seja porque quiseram encaixar mais-valias, seja porque não souberam gerir bem o património, seja porque se endividaram demais, ou por outra razão, o certo é que, hoje, os tais grupos nacionais estão ausentes das maiores empresas ligadas às reprivatizações. Casos como o da Secil, Portucel, Barraqueiro (Rodoviária Nacional) ou até o da Brisa e da Unicer são as excepções que confirmam a regra. Quanto à Galp, falta ainda perceber para que lado irá pender a divisão de poderes entre Américo Amorim e a Sonangol/Isabel dos Santos.
Havia, depois, a intenção de, com as reprivatizações, ajudar a dinamizar o mercado de capitais e “possibilitar uma ampla participação dos cidadãos portugueses”, além de se querer dar “uma particular atenção aos trabalhadores” das empresas visadas. É certo que muitas foram vendidas por via da bolsa, que muitas pessoas investiram as suas poupanças em acções (surgindo a menção a um “capitalismo popular”) e que tem havido sempre a possibilidade de os trabalhadores ficarem com 5% do capital, com direito a um desconto.
Entretanto, a Cimpor já saltou do PSI 20, tal como a Brisa, a PT é uma sombra vazia, o BES implodiu, os cidadãos foram vendendo as suas acções sem comprar outras e os trabalhadores fizeram questão de não aproveitar a oportunidade de poder participar de forma articulada, e mais activa, no destino da sua própria empresa. Ultimamente, aliás, a procura pelos tais 5% tem ficado muito abaixo da oferta, com os investidores institucionais a agradecer a oportunidade de reforçar o capital, como foi o caso da chinesa Fosun na seguradora Fidelidade ou da francesa Vinci na ANA.
Outro aspecto importante das reprivatizações prendia-se com a redução do peso da dívida pública na economia. Uma intenção com algum mérito, mas que falhou redondamente. Durante estes anos, a venda de empresas que estavam nas mãos do Estado rendeu cerca de 35 mil milhões de euros (tendo por base um valor referido por Ana Suspiro no livro Portugal à venda).
Quanto à dívida pública, está agora na casa dos 220 mil milhões de euros (130% do PIB). Historicamente, a descida da dívida pública esteve associada aos pagamentos decorrentes das reprivatizações e não do controlo das despesas. Assim, rapidamente voltou a subir e o resultado do encaixe com a venda de empresas foi o mesmo que atirar copos de águas para um fogo alimentado por gasolina (fenómeno que continuou a verificar-se com o actual Governo).
Houve, é certo, algumas batalhas que foram vencidas, como a redução do peso do Estado na economia. Para se ter uma ideia, a determinada altura a holding estatal IPE, criada para gerir um vasto leque de empresas nacionalizadas, tinha no seu portefólio qualquer coisa como 1300 participações. Mesmo assim, verifica-se que houve excesso de zelo. A ausência total de participações em empresas como a REN, empresa estratégica na área da energia, é um erro, e a venda a 100% dos CTT foi claramente desnecessária.
Uma economia aberta não é sinónimo de economia de portas escancaradas, e, por mais que alguns defendam essa ideia, o capital estrangeiro, mesmo sendo importante, não é a mesma coisa que capital nacional. Basta ver os exemplos de protecção em França e pensar que, quando se trata de desinvestir ou despedir, é diferente fazer isso em casa ou num mercado estrangeiro.
Há quem defenda que a iniciativa privada é sempre mais eficaz do que a pública, mas não tem necessariamente de ser assim e existem sectores que não têm necessariamente de ter o lucro como objectivo fulcral, mas antes a prestação de um serviço. Tem, obviamente, de haver boa gestão e contas equilibradas, mas evitando a pressão de subida constante de lucros e distribuição de dividendos.
Se os transportes estão em via de ser concessionados e se a TAP está na calha para ser vendida tal como se pretende, a principal explicação é a sua má gestão, com dívidas demasiado pesadas. Quem deixou a situação chegar a este ponto não soube cuidar da coisa pública. Olhando para a TAP, talvez fosse necessário encontrar um parceiro estratégico, mas decisões como a entrada no negócio da manutenção do Brasil, que causou feridas profundas nas contas da companhia, ajudaram a empurrar a empresa para o ponto em que se encontra.
Caso a privatização da TAP seja finalizada, pouco resta ao Estado para vender. Com os falhanços que se verificaram no processo das reprivatizações, espera-se que o futuro seja diferente para grupos como a Águas de Portugal e a Caixa Geral de Depósitos. Editor de economia luis.villalobos@publico.pt