Toques no nariz, massagens no pescoço, mordidelas nos lábios

Rui Mergulhão Mendes é especialista em apurar a veracidade de testemunhos através da linguagem corporal. Já deu formação a gestores e banqueiros, mas também membros da Polícia Judiciária e do SEF. Olhando para Passos Coelho o que lhe ocorre? "O primeiro-ministro trabalha mal o corpo."

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Rui Mergulhão Mendes é especialista na interpretação da linguagem corporal e expressão facial para apurar a veracidade de testemunhos. Formado no Body Language Institute, de Washington, fundou a Emotional Business Academy, uma empresa que dá treino a políticos, empresários, gestores, mas também quadros das forças de segurança e de investigação. A pedido da Revista 2, analisou e comentou as intervenções de nove protagonistas da comissão parlamentar de inquérito (CPI) ao colapso e gestão do BES/GES.

Foram muitas horas a visionar os vídeos com as prestações de Ricardo Salgado, José Maria Ricciardi, Álvaro Sobrinho, Zeinal Bava, Henrique Granadeiro, Maria Luís Albuquerque, Carlos Costa, Carlos Tavares. A presença de Paulo Portas naquela comissão foi também olhada à lupa. O vice-primeiro-ministro esteve no centro de um dos raros momentos em que um tema lateral ao BES/GES, mas com ele relacionado — o pagamento de comissões pela venda de submarinos alemães ao Estado português — dominou o inquérito. Em todos os testemunhos, Rui Mendes, de 47 anos, detectou muitos indícios de mentiras, inverdades, omissões, lapsos linguísticos e incongruências.

As audições parlamentares prolongaram-se por 15.380 minutos e possibilitaram à CPI tirar conclusões: desde 2008 que Salgado sabia que as contas do grupo estavam adulteradas; Sobrinho controlava as várias operações duvidosas do BES Angola; Bava e Granadeiro deram luz verde ao investimento ruinoso da PT, de quase 900 milhões, no GES; Carlos Costa e Carlos Tavares não foram diligentes; a ministra das Finanças, responsável por garantir a estabilidade do sistema financeiro, tinha conhecimento dos factos, mas refugiou-se na autonomia dos supervisores para nada fazer. Saber interpretar os sinais não verbais, involuntários e inconscientes, pode ser uma arma poderosa. Os especialistas em linguagem corporal notam que, apesar de as palavras serem importantes, apenas representam cerca de 7% das mensagens que passamos. Os principais elementos de avaliação são os movimentos corporais, as microexpressões faciais (movimentos involuntários e inconscientes que podem durar apenas milésimos de segundo e que reflectem emoções), o tom de voz, a velocidade com que falamos, a atitude. São estes sinais que representam os outros 93% da nossa comunicação.

É por isso que os canais de televisão norte-americanos convocam regularmente peritos na análise da linguagem não verbal para comentarem, em horário nobre, os casos mediáticos (como as mentiras do ciclista Lance Armstrong sobre doping e as do golfista Tiger Woods sobre as suas relações extraconjugais) ou os grandes processos criminais e afirmações polémicas de políticos. E é precisamente o que acontece quando há eleições nos EUA e os especialistas são chamados a corroborar as explicações dos candidatos.

Em 1973, após ter garantido publicamente nada saber sobre o assalto à sede dos democratas para instalar escutas e fotografar documentos, o que ficou conhecido pelo escândalo Watergate, o ex-Presidente republicano Richard Nixon foi acusado de faltar à verdade. Foi o que aconteceu a Bill Clinton. Quando foi à televisão negar ter tido relações sexuais com a ex-estagiária da Casa Branca Mónica Lewinsy, o democrata não escapou ao escrutínio dos especialistas. Traído pela expressão facial, o democrata foi acusado pelo professor de Psicologia da Universidade da Califórnia Paul Ekman (intérprete da linguagem não verbal) de mentir.

Há seis anos, Ekmam, que trabalhava então para o FBI e a Scotland Yard, contou num simpósio organizado no Porto pela Fundação Bial, ligada à maior farmacêutica portuguesa, que ninguém mente sobre tudo, mas apenas quando se acredita que a verdade pode ser prejudicial. Na série televisiva da Fox Lie to me, o actor principal, Tim Roth, interpreta uma personagem (Cal Lightman) inspirada em Ekman que lidera uma equipa de cientistas que procuram desvendar as mentiras e ajudar o FBI a descobrir crimes. Na entrevista que deu à Revista 2, Rui Mendes recusa as críticas de falta de sustentabilidade e de pouca base cientifíca e lembra que as suas acções de profissional de linguagem não verbal são certificadas pelo Paul Ekman Institute.

Quanto tempo levou a analisar os vídeos das principais testemunhas ouvidas pela comissão parlamentar de inquérito à gestão e colapso do BES-GES?
Rui Mergulhão Mendes — Umas largas dezenas de horas. Não foi só analisar os vídeos em concreto, mas também o comportamento das pessoas visionadas noutras circunstâncias para poder ter um termo de comparação face aos padrões base de cada uma delas. Na segunda audição da CPI, Carlos Tavares [CMVM] recorreu muitas vezes a toques pacificadores — que são sinais enviados pelo cérebro para se acalmar, como o acto de ventilar — e que ocorrem em resposta a situações de stress. Tavares acalma-se mexendo várias vezes com a mão na zona do pescoço, zona rica em extremidades nervosas, o que seria um padrão natural se o gesto tivesse sido detectado, e com a mesma frequência, noutras circunstâncias. Ora, na primeira audição de Tavares na CPI, o gesto não se verifica tantas vezes.

Que conclusões tirou?
Tenho de sublinhar que o quadro era o de uma comissão de inquérito parlamentar com os deputados a revelarem prestações diferentes consoante quem tinham à sua frente. Por exemplo, ao interrogar Paulo Portas [vice-primeiro-ministro], José Magalhães [deputado do PS] deixou-o liderar o processo. E Portas brincou com ele e foi até indelicado, ameaçador e rude. Chegou a pôr o dedo em riste, desenhou bonecos para Magalhães perceber. A dada altura disse-lhe: “O senhor tem que nos respeitar, pois o caso [do pagamento de comissões pela compra de submarinos alemães pelo Estado] já foi julgado e fomos ilibados e o senhor não é polícia, é um deputado.” Portas pediu respeito a Magalhães, mas mandou-o calar e colocou o dedo à frente da boca.
No confronto entre os dois, Portas tem o peito aberto, de arrogância, mas muda ao ser interrogado pelo deputado do PCP Miguel Tiago, perante quem Portas aparece mais comedido, de corpo mais fechado. Mas também devo notar que Miguel Tiago nesta CPI revelou dois pesos e duas medidas e mostrou-se mais interventivo com Carlos Tavares e Carlos Costa [Banco de Portugal], mas já mais comedido com Álvaro Sobrinho [ex-presidente do BESA]. Aliás, no geral, os deputados deixaram brilhar Álvaro Sobrinho, que foi inteligente ao puxar a conversa para as questões técnicas, que não conseguiram acompanhar.

Que outras prestações lhe merecem comentários especiais?
No visionamento dos dois vídeos das audições de Ricardo Salgado [o rosto do colapso do BES-GES], percebe-se que na última ele está muito mais abatido, com uma postura mais reservada. Também Henrique Granadeiro [ex-presidente da PT] apareceu comedido, mas muito denunciador, com pouco à-vontade, e dizia: “Neste ponto e para ser sincero, para falar verdade.” Então, onde não foi sincero? Há um pormenor curioso: Portas e Salgado iam rigorosamente vestidos da mesma forma, com a mesma gravata, o mesmo casaco, a mesma camisa. O que nada nos diz sobre linguagem corporal, mas não deixa de ser interessante.

Em relação a Ricardo Salgado não detectou sinais de remorsos ou de mentira?
A postura mais fechada [na segunda audição] pode indiciar para além de cansaço alguma necessidade de se salvaguardar e de se resguardar em relação a informações e esclarecimentos solicitados. E é notória alguma reserva em relação a certas matérias. José Maria Ricciardi distinguiu-se da maioria dos intervenientes pela forma como desenvolveu uma atitude crítica, colaborativa mas também distanciadora dos que foram considerados os autores do desaire [do BES/GES]. Fez papel de vítima quando necessário e colou-se contra o que se passou no grupo. Ricciardi foi prestar declarações na perspectiva de ser um valioso aliado da CPI. Não surpreendeu.

Alguém em particular o surpreendeu?
Todos, mas o que mais me surpreendeu foi Zeinal Bava [ex-presidente da PT e da Oi] que foi possivelmente instruído para desempenhar um boneco que não era o dele [durante várias horas repetiu que não se lembrava do que lhe estava a ser perguntado e onde teve intervenção directa pelas suas funções] e, por isso, desempenhou-o mal. Ao serem-lhe colocadas as questões, Bava parece estar preocupado em passar uma mensagem previamente definida, mas não em responder com sinceridade às questões dos deputados. E suscita mesmo expressões de desprezo por parte de Mariana Mortágua [do BE] que se sente superior, o que lhe permitiu, a ela, levar a conversa para onde quis. Se somos sinceros no nosso processo de comunicação, a comunicação é autêntica.

Todos temos traços particulares, manias, tiques...
Claro que sim. E um gesto não verbal, isolado, não é um sinónimo de nada. E deve ser contextualizado e comparado com o padrão base da comunicação da pessoa. Na CPI, Henrique Granadeiro repete várias vezes um toque na face e, ao analisar outros vídeos, noutras situações, o mesmo toque facial está lá e concluí que era um padrão natural. Cada vez que fala, Jesualdo Ferreira [treinador do Zamalek] dá um toque na parte de fora do nariz, o que é um tique. E Jorge Jesus [treinador do Benfica] é altamente emotivo e quando fala tem associado uma série de tiques. Daí distinguir o que são os nossos tiques particulares do que são os sinais conversacionais e do que está associado ao processo emocional no momento em que comunicamos. É isto que nos interessa e o que analisamos na nossa acção. A informação só é válida se fugir ao padrão natural.

Dos visionamentos, reteve algum episódio?
Numa fotografia, Paulo Portas tapa a cara, tapa o ouvido, mas ao visionarmos o vídeo percebemos que, em simultâneo, ele desvia o olhar, mete a cabeça para baixo, tem uma expressão negativa na cara. É o conjunto — variações do tom de voz, posição do corpo, microexpressões faciais — que valida a interpretação. Podemos pôr as mãos nos olhos por termos lentes de contacto, tocar no ouvido por ter uma alergia. Portanto, diria que pegar num único gesto e tirar conclusões pode levar a erros tremendos. Isto não é uma brincadeira.

Como distinguir uma simples comichão, normal, de um sinal emocional?
Não há comichões por acaso. Os micropruridos que aparecem na cara surgem por indicação do nosso cérebro. Pica-nos ali e não é sem querer. Porque é que tocar no nariz está tão associado à questão da mentira? Porque irrigamos mais sangue e a extremidade do nariz é mais sensível e o sangue jorrou ali ou faltou, mediante o estado emocional de cada um. E faz comichão.

No final da comissão parlamentar de inquérito, ficou uma sensação geral de falta de verdade nos depoimentos prestados. Partilha desta ideia?
Dos casos que analisei, registam-se grandes níveis de ansiedade e de stress em relação a pontos concretos, o que significa que quem foi prestar esclarecimentos pode ter omitido informações. Um dos casos interessantes de linguística é o de Carlos Costa [quando falava dos contactos que teve com Carlos Tavares sobre a fuga de informação que antecedeu a intervenção no BES e que não são coincidentes com o reportados pelo presidente da CMVM]: “Nós não voltámos a falar nesse dia, suponho eu, tanto quanto eu sei.” Declaração que acompanha com um toque a bloquear os olhos. Costa diz o que tem a dizer, mas não gosta do que está a dizer, pois sabe que não é verdade. [O governador do BdP] nunca esteve à vontade nas duas audições da CPI, mas também foi o mais confrontado, e em relação ao qual os deputados foram mais incisivos.

As análises, diria eu, parecem óbvias.
Os deputados confrontaram os intervenientes para descobrir a verdade. Mas será que perceberam as várias mensagens transmitidas involuntariamente por cada um na sua linguagem não verbal? Só quando o deputado, o jornalista ou o polícia dispuserem de capacidades e de conhecimentos para compreenderem o que é que o comportamento do corpo humano lhes está a dizer é que serão capazes de interpretar os sinais involuntários e inconscientes que são enviados. E tendo condições para detectar os tais indícios de mentira, quanto mais pressão exercerem, mais aumentam os níveis de stress do interrogado e o seu desconforto. E a tendência para revelar incongruências aumenta também.

Que sinais são esses que indicam se a pessoa à nossa frente não está a falar verdade?
Não existe o sinal da mentira, isso é uma falácia. Por si só e analisados isoladamente não nos dizem nada, temos de analisar uma série de aspectos.

Mas é possível desmascarar a mentira?
Claro que sim, e esse é um dos principais propósitos dos nossos treinos.

E detectou indícios de mentiras nas prestações na comissão?
Muitas vezes. Bava, Granadeiro ou Portas punham as mãos à frente da boca, davam toques na boca, nos ouvidos. São sinais de bloqueio, de que não gostamos do que estamos a dizer. E quando refiro que este ou aquele aspecto pode indiciar mentira ou ocultação de informação, é depois de ter alguma comparabilidade para dissipar dúvidas. É preciso ter em atenção não só o padrão base de cada um, mas também o contexto, que é sempre delimitador em relação ao nosso comportamento. Fui assistir ao 11.º fórum da banca [Dezembro de 2014], onde estavam Nuno Amado [BCP], Stock da Cunha [Novo Banco], José de Matos [CGD], Vieira Monteiro [Santander Totta].

Esteve a assistir em que condição?
A convite de uma entidade financeira portuguesa que prefiro não mencionar. E o meu trabalho começou no momento em que tentei perceber como se comportavam os banqueiros num quadro de à-vontade, entre conhecidos e antes do começo da conferência. E fiquei com mais informação em relação ao seu comportamento natural. Depois, estive a avaliá-los já submetidos a níveis elevados de stress, perante 150 pessoas e com Carlos Costa presente. E o quadro era muito diferente. E é nesta diferença que está a riqueza da informação.

Já ensinou algum banqueiro a mentir?
Não. Esse não é o meu propósito. O meu propósito é destacar o que está menos bem na forma como cada um comunica e ajudar a corrigir. Não é dizer-lhe onde deve pôr as mãos ou como deve falar. Porque tem de comunicar naturalmente, não pode vestir a “farda” de outro. O boneco tem de “passar”. Se não somos nós mesmos a comunicar, o nosso inconsciente regista todas as incongruências e nas alturas-chave falhamos. O nosso compromisso é dotar os clientes de capacidades para interpretarem tudo aquilo que lhes é comunicado, para além daquilo que é dito. E torná-los conscientes de que a sua linguagem corporal tem impacto nos processos de comunicação.

Quem são os clientes que procuram os especialistas no estudo da linguagem não verbal?
Na Emotional Business Academy, já demos treino a todas as áreas, desde a política, a presidentes executivos e a membros de alta direcção, passando por outros sectores, como o judicial e forças de segurança. E às vertentes mais comerciais e de negociação. Repare que, nos EUA, grande parte dos casos mais mediáticos são analisados à luz destas novas competências, isto, para não falar dos ganhos efectivos nos processos de interrogatório e investigação. O que pretendemos é dotar os nossos formandos de competências de análise para detectar tudo aquilo que propositadamente lhes está a ser omitido.

Trabalha com a área da investigação policial?
Decisores das áreas de formação das principais forças de segurança, como a Polícia Judiciária, o SEF — Serviço de Estrangeiros e Fronteiras e a Escola Superior de Polícia, já participaram em formações nossas. E posso dizer que nalguns casos há intenções avançadas para receberem formação direccionada para necessidades específicas. Neste momento, estamos a fechar um plano de intervenção com forças de segurança nacional e polícia económica para fora do país.

Como convence um investigador a receber treino na área da linguagem corporal?
Qual é a vantagem para um policial de conseguir olhar para um grupo e perceber qual é a figura dominante? Toda a questão da comunicação corporal é importante para detectar indícios. O nosso cérebro não está treinado para mentir. Se os deputados na CPI tivessem algum treino nesta área, o resultado da comissão teria sido outro, mais próximo daquilo que de facto queriam saber, pois houve muitos indícios de mentira e de ocultação de informação. Quando o corpo dá esses indícios, se o inquiridor “apertar” no tema mais quente, certamente o desconforto vai agravar-se e a informação poderá acabar por sair ou ficar muito mais evidente.

Quer dar um exemplo de uma figura pública que comunique mal em termos da linguagem corporal?
O primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho, trabalha mal o corpo. Por ser alto, curva-se muitas vezes, anda muitas vezes com as mãos junto aos bolsos, a tapar as partes íntimas, em atitude de pedinte. Quem olha para o “boneco”, não vê um chefe de Estado. Enviamos muitos sinais à nossa mente através da postura corporal: se o corpo mostra falta de confiança, o nosso cérebro adopta essa postura e dá sinais ao corpo de falta de confiança. E torna-se um ciclo viciante. Isto para explicar a relevância de percebermos como é que o corpo comunica.

Como comenta as críticas de que as análises do body language falham por falta de sustentabilidade e pouca base científica?
O que posso dizer? As nossas formações são certificadas internacionalmente quer pela Paul Ekman Institute, quer pela Center for Body Language, quer pelo Body Language Institute, instituições credíveis assentes em dados científicos. Os cientistas Paul Ekman [professor de Psicologia na Universidade da Califórnia que esteve em Portugal a participar num simpósio promovido pela Bial] é um dos grandes criadores de toda a parte da expressão facial da emoção. Existe um carácter científico em torno destas disciplinas. Nas microexpressões faciais, que reflectem emoções, as referências são mundiais, de Charles Darwin a Paul Ekman, passando pelo nosso conhecido professor Freitas Magalhães. Estamos a falar de ciências do comportamento humano. Os profissionais de linguagem corporal não lêem pensamentos, mas tentam perceber o que cada um está a sentir num determinado momento. Está com um sorriso de ironia?