Entre marido e mulher, a Justiça mete a colher!
A humilhação faz parte do crime de violência doméstica.
Em julgamento provara-se que tinha mantido uma relação com a Patrocínio vivendo em casa dela “como se de marido e mulher se tratassem” entre Setembro de 2012 e Março de 2013. Mais se provara que a partir de Dezembro de 2012 e até à separação do casal, com uma frequência não concretamente apurada, no interior da residência e à noite, tinha chamado à Patrocínio “porca de merda” e “atrasada mental”. E que, ao fazê-lo, tinha querido humilhar a Patrocínio bem sabendo que tais expressões a rebaixavam.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Em julgamento provara-se que tinha mantido uma relação com a Patrocínio vivendo em casa dela “como se de marido e mulher se tratassem” entre Setembro de 2012 e Março de 2013. Mais se provara que a partir de Dezembro de 2012 e até à separação do casal, com uma frequência não concretamente apurada, no interior da residência e à noite, tinha chamado à Patrocínio “porca de merda” e “atrasada mental”. E que, ao fazê-lo, tinha querido humilhar a Patrocínio bem sabendo que tais expressões a rebaixavam.
Após o fim da relação, tinham mantido contactos e, no dia 5 de Abril de 2013, tinham-se encontrado e começado a discutir, mas o tribunal não tinha conseguido apurar como é que, no fim da discussão, a Patrocínio ficara com uma contusão no ombro e na mão, equimoses dispersas pelos membros superiores e múltiplos hematomas no corpo e no couro cabeludo. O Rui ia, assim, para casa absolvido, satisfeito e descansado...
Mas a magistrada do Ministério Público (MP) não ficara satisfeita com a sentença, até porque, ao decidir, o tribunal referira que o Rui só tinha chamado uma vez “porca de merda” e “atrasada mental” à Patrocínio, quando, embora não se soubesse quantas vezes o fizera, certamente fora mais de uma vez, já que ficara provada a utilização dessas expressões, ao longo de três meses, com “uma frequência não concretamente apurada”. Na sua opinião, fizera-se uma injustiça. Se era verdade que quanto às agressões não havia prova do que se tinha passado exactamente, sendo certo que uma testemunha tinha confirmado a versão do Rui de que fora a Patrocínio que o tinha atacado, já quanto ao crime de violência doméstica a questão era diferente.
O crime de violência doméstica pune o exercício de maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais sobre pessoas com quem se tem uma particular relação, tal como aquele com quem se vive ou viveu ou com quem se namora ou namorou ou ainda filhos ou pessoas dependentes.
A particular criminalização destas actuações, distinguindo-as das meras agressões físicas ou das injúrias, é um marco civilizacional, já que representa uma especial reprovação da sociedade em relação a muitos crimes que se passam entre quatro paredes em situações de desequilíbrio de força ou poder entre agressor e vítima e que, ao longo dos séculos, foram tolerados.
O bem jurídico que a criminalização da violência doméstica visa proteger é a saúde enquanto integridade das funções corporais da pessoa. Consuma-se através de agressões, físicas ou psíquicas, que, fundamentalmente, traduzem crueldade, insensibilidade, ou, até, vinganças gratuitas da parte de quem as pratica e põem em causa a dignidade da vítima na sua humanidade. Como é sabido, a criação deste crime encontrou muitas resistências culturais, dado o peso social de inúmeros preconceitos autoritários e machistas de que é exemplo a lamentável sabedoria popular cristalizada na expressão: “Entre marido e mulher, não metas a colher.”
Mas para a magistrada do MP esses preconceitos não tinham qualquer relevância e a actuação do Rui tinha suficiente gravidade para ser censurada criminalmente. Recorreu, assim, para o Tribunal da Relação de Lisboa (TRL).
Alegava que existia uma contradição entre ter-se dado como provada “uma frequência não concretamente apurada” ao longo de três meses da utilização das expressões em causa e o facto de a decisão só referir uma única utilização de tais expressões. E, no entender da magistrada do MP, embora até uma única agressão, física ou psíquica, possa configurar o crime de violência doméstica, no caso do Rui inequivocamente tais agressões psíquicas não se tinham registado uma única vez. Deveria, pois, ser condenado pela prática do crime de violência doméstica. A impunidade do Rui seria uma lamentável tomada de posição do mundo do direito e da Justiça perante o seu concreto comportamento que reforçaria nele e na sociedade ancestrais preconceitos. E, no fundo, a Patrocínio tinha sido punida duas vezes.
O TRL, no passado dia 23 de Abril, reconheceu a razão que lhe assistia, condenando o Rui na pena de dois anos de prisão, suspensa por dois anos, pela prática do crime de violência doméstica. No entender dos juízes desembargadores João Abrunhosa de Carvalho e Maria do Carmo Ferreira, dirigir, com frequência, as expressões “porca de merda” e “atrasada mental” à pessoa com quem se vive em união de facto, assim a rebaixando, é suficientemente grave para ofender a saúde psíquica e emocional da vítima, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana, representando um aviltamento e humilhação da vítima e configurando um crime de violência doméstica. Cristalino.
Advogado