O rei nu na cultura em Portugal e uma proposta para fazer diferente
Não admito que, depois dos gastos de torneira aberta exigidos pelo novo e desnecessário Museu Nacional dos Coches, se diga que não há dinheiro.
Ainda assim quero usar aqui o meu direito à memória. Recordando as primeiras decisões — elaboradas por um grupo de trabalho onde sempre perdi —, o que aconteceu é infinitamente superior ao que se propunha: usar o apetecível local para instalar a Escola Portuguesa de Arte Equestre, com estabulação de cavalos integrada, e, numa pequena área anexa, colocar o MNC. Ultrapassada esta estapafúrdia proposta, a decisão de que se renunciava à escola e se construiria apenas o novo MNC foi tomada por um ministro da Economia que a transmitiu ao ministro da Cultura. Apesar da prepotência insuportável, a verdade é que o ministro da Cultura aceitou e “toda a gente” também porque se via no novo museu uma árvore das patacas que iria (irá) fazer multiplicar os preciosos 40 milhões de euros que chegaram à Cultura, por contrapartida da abertura do Casino de Lisboa. “Toda a gente” não incluía evidentemente a opinião de técnicos e especialistas, muito pouco a do Instituto dos Museus e quase nada a da própria directora do mesmo. Assim se continuou depois, até ao dia de hoje. Alguns, poucos na verdade, defenderam que aquele dinheiro devia ser investido com o máximo critério, considerando as graves carências do sector: mais do que construir um novo MNC (quando o existente era amado e visitado como nenhum outro em Portugal) urgia ampliar o Museu Nacional de Arqueologia ou intervir profundamente no Museu Nacional do Azulejo, museu igualmente amado e visitado e cujo monumento quinhentista em que está instalado se encontra em situação de risco permanente. O MNC precisava de renovar a sua museologia e de crescer em área mas não de um edifício novo onde os coches, como se verá, passarão a nadar. E, ainda assim, é necessário expor todos, os excepcionais e os vulgares, para ocupar, ou fazer de conta que se ocupa, a arquitectura de Mendes da Rocha. Esta, infelizmente, muito deixa a desejar como museu, cuja primeira função é salvaguardar os bens que integra. Mas sobre este penoso assunto não me alongarei antes de a museografia estar completa, pensa-se que para o final de 2015...
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Ainda assim quero usar aqui o meu direito à memória. Recordando as primeiras decisões — elaboradas por um grupo de trabalho onde sempre perdi —, o que aconteceu é infinitamente superior ao que se propunha: usar o apetecível local para instalar a Escola Portuguesa de Arte Equestre, com estabulação de cavalos integrada, e, numa pequena área anexa, colocar o MNC. Ultrapassada esta estapafúrdia proposta, a decisão de que se renunciava à escola e se construiria apenas o novo MNC foi tomada por um ministro da Economia que a transmitiu ao ministro da Cultura. Apesar da prepotência insuportável, a verdade é que o ministro da Cultura aceitou e “toda a gente” também porque se via no novo museu uma árvore das patacas que iria (irá) fazer multiplicar os preciosos 40 milhões de euros que chegaram à Cultura, por contrapartida da abertura do Casino de Lisboa. “Toda a gente” não incluía evidentemente a opinião de técnicos e especialistas, muito pouco a do Instituto dos Museus e quase nada a da própria directora do mesmo. Assim se continuou depois, até ao dia de hoje. Alguns, poucos na verdade, defenderam que aquele dinheiro devia ser investido com o máximo critério, considerando as graves carências do sector: mais do que construir um novo MNC (quando o existente era amado e visitado como nenhum outro em Portugal) urgia ampliar o Museu Nacional de Arqueologia ou intervir profundamente no Museu Nacional do Azulejo, museu igualmente amado e visitado e cujo monumento quinhentista em que está instalado se encontra em situação de risco permanente. O MNC precisava de renovar a sua museologia e de crescer em área mas não de um edifício novo onde os coches, como se verá, passarão a nadar. E, ainda assim, é necessário expor todos, os excepcionais e os vulgares, para ocupar, ou fazer de conta que se ocupa, a arquitectura de Mendes da Rocha. Esta, infelizmente, muito deixa a desejar como museu, cuja primeira função é salvaguardar os bens que integra. Mas sobre este penoso assunto não me alongarei antes de a museografia estar completa, pensa-se que para o final de 2015...
A festa que se vai desenrolar em clima pré-eleitoral deve ser o momento para recordar que, em 2013, o investimento na Cultura foi 0,1% do PIB, o que coloca Portugal em 21.º lugar, entre 25 países europeus![1] No que aos museus diz respeito, o dramático desinvestimento é especialmente inaceitável porque, em tempos de euforia turística, eles apresentam crescimentos apreciáveis nos números de visitantes e de receitas. Esta situação não se deve apenas ao aumento da procura mas ao empenho das insuficientes equipas de cada museu que, literalmente, fazem milagres, obtendo mecenato, aprofundando parcerias e gerindo a escandalosa ausência de autonomia financeira que lhes foi imposta, regressão gravíssima que nem no Estado Novo existiu. Para trabalhar hoje nos museus portugueses, numa perspectiva competitiva e com elevado gabarito de oferta pública, as equipas têm de recorrer a estratagemas imaginosos e correr riscos administrativos não negligenciáveis. Reina, na Direcção-Geral do Património Cultural, um centralismo inaudito que espezinhou conquistas do passado próximo, potenciadoras de real desenvolvimento à complexa gestão dos museus. Este é um triste exemplo da maneira cega com que foram feitos os cortes na administração pública, assentes na desconfiança, na ameaça e na redução dos objectivos a indicadores imediatos de receita.
Noutro aspecto, o Governo tem revelado a sua ausência de empenho na gestão dos museus. Refiro-me ao crescimento das colecções onde o investimento é quase inexistente, mais uma vez ultrapassando pela negativa o antes do 25 de Abril. Todavia, a dramática situação financeira que os portugueses estão a sofrer poderia ter tido algumas contrapartidas positivas: neste momento, por exemplo, o Estado deveria estar a gerir o acervo de Miró(s) do BPN e talvez as colecções, as pessoais e as não pessoais, do ex-presidente do Banco Privado. Para isso, deveria o secretário de Estado da Cultura reconhecer a sua falta de peso político, rodeando-se de conselheiros credíveis capazes de desenvolver uma actuação eficaz para que as melhores decisões fossem tomadas. Não o faz, contradiz-se permanentemente, nada esclarece e, entretanto, temos de aceitar o silêncio de chumbo que paira sobre a exportação criminosa, determinada por ministro, de uma obra-prima da pintura ocidental que tinha, desde os anos de 1970, um regime de protecção patrimonial.
Mas, apesar de tudo, eu sou optimista e o que mais desejo, da parte de cada Governo, é que governe bem. Por isso, lanço aqui um repto que, a gerar a boa decisão, poderia ser finalmente um sinal de estímulo para quem trabalha no sector, sobretudo um enriquecimento real e simbólico das colecções nacionais. Termina, em 31 de Dezembro de 2015, o depósito, na Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva (FASVS), das últimas obras da pintora Maria Helena Vieira da Silva, pertencentes aos herdeiros da Colecção Jorge de Brito. Entre elas, contam-se quatro pinturas excepcionais que qualquer museu desejaria possuir e que dotariam a FASVS de um reforço real para cumprir a sua missão, junto dos públicos e no relacionamento com os pares que têm dificuldade em acreditar que a fundação que ostenta aquele nome ilustre dispõe de um acervo inexpressivo de obras suas. O respectivo conselho de administração tentou, sem conseguir, interessar potenciais mecenas na compra de pelo menos duas dessas pinturas de que nunca deveríamos despedir-nos. Não se conseguiu apesar de muito empenho. Na minha opinião, a situação pode inverter-se se o Estado der um sinal, adquirindo uma delas. Como cidadã, não admito que, depois dos gastos de torneira aberta exigidos pelo novo e desnecessário MNC, se diga que não há dinheiro. Cabe ao Governo assumir a pertinência e positividade do facto: comprar finalmente uma obra da pintora internacional que, tendo sido emigrante desde os 20 anos e francesa depois dos 45, sempre considerou que a cultura portuguesa foi a matriz da sua originalíssima poética. Decidido o que deve ser decidido, com convicção inabalável, não faltarão instrumentos para se montar uma operação financeira adequada em que, estou certa, participarão mecenas e, desejavelmente, os próprios proprietários.
[1] Agradeço o fornecimento destes dados a Luís Raposo (L.R.) e remeto os leitores interessados para o seu artigo publicado recentemente na Arte Capital.
Representante das Universidades no Conselho Nacional de Cultura — secção Museus