Regresso a uma energia violenta que marcou Olga Roriz
Num dos momentos altos da comemoração dos 20 anos da sua companhia, Olga Roriz regressa a uma peça com um peso fundador no seu percurso. Propriedade Privada, de novo com Carla Ribeiro no elenco, regressa ao Centro Cultural de Belém, esta sexta-feira e sábado.
Carla Ribeiro é uma memória viva que habita o palco desta nova viagem à peça emblemática da Companhia Olga Roriz, reanimada no âmbito da comemoração dos 20 anos da companhia e dos 40 de carreira de Roriz. De toda a programação prevista para o ano de 2015, este é o momento em que a coreógrafa vai mais atrás no seu percurso, ao identificar em Propriedade Privada – sexta-feira e sábado no Centro Cultural de Belém, em Lisboa – um momento fundador na linguagem da sua companhia.
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Carla Ribeiro é uma memória viva que habita o palco desta nova viagem à peça emblemática da Companhia Olga Roriz, reanimada no âmbito da comemoração dos 20 anos da companhia e dos 40 de carreira de Roriz. De toda a programação prevista para o ano de 2015, este é o momento em que a coreógrafa vai mais atrás no seu percurso, ao identificar em Propriedade Privada – sexta-feira e sábado no Centro Cultural de Belém, em Lisboa – um momento fundador na linguagem da sua companhia.
“É uma boa peça, gosto dela, acho que é muito pertinente e é uma súmula de muitas coisas que têm que ver com a minha maneira de fazer dança”, justifica Roriz ao PÚBLICO. Propriedade Privada expõe também um lado político e reivindicativo, pouco habitual no seu reportório, e explora uma violência em palco, com várias alusões ao Holocausto, que à altura da estreia provocou algum choque. Carla Ribeiro recorda com nitidez a sua saída de cena após a primeira apresentação pública, em 96, depois de meses de preparação e pesquisa. “Assim que acabou chorei compulsivamente porque a descarga de adrenalina tinha sido de tal ordem que nem sabia muito bem como teria passado para fora”, diz. “Não tinha uma ideia muito clara de qual o impacto da peça, embora soubesse que estávamos a fazer qualquer coisa que nos desafiava muito.”
No primeiro dia de trabalho com o elenco que revisita Propriedade Privada, Olga Roriz avisou os bailarinos que o seu objectivo era muito claro: montar a peça “exactamente igual”. “Vão tentar resolver alguns momentos de outra maneira porque vos dá mais jeito, até perceberem que o que está lá é o que está bem – desde as coisas mais complexas às mais físicas”, antecipou. Nos vídeos da montagem original estava o cúmulo de nove meses de trabalho e a afinação conseguida depois de tentadas muitas soluções distintas. Por isso, Olga Roriz afirmava que “não vale a pena inventar uma coisa que já foi inventada”. Em vez disso, cada um estudou a fundo a sua personagem, recorrendo à coreógrafa e à bailarina-oráculo para melhor apreender aquilo que lhes era pedido.
A violência volta a crescer
Não querendo impor-se ao grupo, Carla Ribeiro adoptou muitas vezes uma postura de auxílio silencioso. “Eles precisavam de espaço para poderem respirar e perceberem o que se estava a passar”, relata. “Por isso, nos ensaios tentei estar sempre a 100% porque isso ajudaria o grupo a perceber a energia de cenas que eu já sabia para onde tinham de ir.” A memória da bailarina era sobretudo “emocional e de ambientes, até de texturas, de cheiros e da energia”. Menos dos gestos, da coreografia em si. À medida que foi observando os vídeos com o restante elenco, o seu corpo recordou como tinha sido estar em cena na primeira Propriedade Privada. Carla estranhou, no entanto, a sensação mais amaciada da violência: “Tinha a ideia de que a peça era super violenta, mas quando a vi pela primeira vez em vídeo pareceu-me que não era tão violenta, que antes me sentia mais agredida, mais violada, mais louca. Agora que a estou a fazer outra vez a violência volta a crescer. O vídeo camufla muito a emoção.”
Pensada originalmente como uma homenagem aos 100 anos do cinema – as imagens de sedução daí provêm, assim como uma canção de Mary Poppins a que Carla Ribeiro dá voz –, são sobretudo as alusões ao Holocausto, desde logo num cenário que começa por evocar um comboio de onde pés, braços, corpos inteiros tentam em vão escapar-se, que tomam conta dos picos absolutos de explosão emocional. São várias as sequências de interrogatórios e tortura, de uma sexualidade que tanto se joga no lado do desejo como, em seguida, se transforma numa grotesca e animalesca situação de dominação pela força. “Estou na dúvida”, confessa Roriz, “se pode ter o mesmo impacto que teve em 96, apesar de haver temas muito actuais – como a violência doméstica, a violação, os maus tratos da mulher e a tortura. Mas será que as pessoas não estão já mais habituadas à violência?” Até poderão estar, mas o tom selvagem e de perda de controlo que invade o palco continua intacto.
Se Propriedade Privada foi uma peça seminal para a Companhia Olga Roriz, e uma das poucas com que a coreógrafa arrisca a palavra “orgulho” – “não há muitas assim na vida de um criador que, depois de tantos anos, se aceitam e se tem gosto em oferecer”, confessa –, para Carla Ribeiro foi igualmente transformadora. A quantidade de dúvidas com que se viu então confrontada levou-a a questionar o seu papel de bailarina e a procurar, mais tarde, outras situações de exploração de texto, improvisação e de assunção de riscos. “Esta peça ensinou-me a não ter medo de seguir em frente mesmo quando tenho dúvidas”, resume. Ambas, bailarina e coreógrafa, dizem-se agora curiosas em perceber que novas marcas esta Propriedade Privada deixará nos seus percursos. O confronto com o passado nunca se faz impunemente. Faz sempre pensar noutras possibilidades de presente e de futuro.