O homem do piano de filmar

Como Volker Bertelmann, aliás Hauschka, tira do seu piano os sons que tira é segredo. Uma faixa sua pode ir da melancolia ao tecno – mas é sempre música para filmes que os ouvintes criam dentro da cabeça. Podem fazê-lo já dias 27 e 28, entre o Porto e Lisboa.

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O equilíbrio precário que marca Hauschka será certamente notório nos seus dois concertos em Portugal MAREIKE FOECKING

O fim do ódio trouxe brinde: uma espécie de auto-consciência de que a memória dos lugares não só lhe servia de inspiração, como de que a sua própria música tinha algo de cinematográfico e nostálgico. O que odiava marcara-o ao ponto de definir a sua voz. Para acabar com dúvidas a este respeito dirijam-se, s.f.f., no dia 27 à Casa da Música, no Porto, e/ou um dia depois ao Centro Cultural de Belém, em Lisboa, onde ele actua.

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O fim do ódio trouxe brinde: uma espécie de auto-consciência de que a memória dos lugares não só lhe servia de inspiração, como de que a sua própria música tinha algo de cinematográfico e nostálgico. O que odiava marcara-o ao ponto de definir a sua voz. Para acabar com dúvidas a este respeito dirijam-se, s.f.f., no dia 27 à Casa da Música, no Porto, e/ou um dia depois ao Centro Cultural de Belém, em Lisboa, onde ele actua.

“Como toda a gente que escapa de uma terra pequena e quer ir para a grande cidade – sendo que não é fácil sobreviver na grande cidade –, eu tinha vergonha daquilo, tinha vergonha de dizer que era de lá, sentia-me um provinciano." Agora, prestes a fazer 50 anos, está certo de que Ferndorf – a terra – é “fundamental” no som que faz.

Bertelmann, que edita sob o nome Hauschka, não é propriamente fácil de catalogar: tem um pé na vanguarda, mas o ouvido não descura uma boa melodia; inclina-se para o minimalismo e depois dos dedos caem-lhe arranjos de cordas. Não raro as suas peças adquirem um tom ambiental. É um Yann Tiersen sem a propensão para a sobredose de açúcar, um Aphex Twin sem a vertigem da auto-destruição.

O equilíbrio precário que o marca será certamente notório nos seus dois concertos em Portugal. Por um lado, sabemos exactamente o que ele vai fazer: “Vou tocar peças do Abandoned City”, diz, reportando-se ao álbum que lançou no ano passado. Depois acrescenta: “Mas não esperem que sejam iguais ao disco. Vão ser como que remisturadas, vou adaptá-las às circunstâncias e a partir daí vamos ver o que vai acontecer." 

Não se deixem iludir pela expressão “remistura”: aqui “não há computadores ou sintetizadores” e “todos os sons são análógicos”. Como sempre, desde que há uma década lançou The Prepared Piano, vai “preparar o piano” e tentar “convertê-lo numa orquestra”. Usa “pedais de delay e de loops de modo a fazer o piano soar como outro instrumento: um baixo, um instrumento de percussão”. Deste modo, explica, “uma faixa pode começar com um som seco e tornar-se gradualmente tecno ou abstracta ou ambiental, e voltar a parecer uma peça para piano no fim”. 

Vanguardista reaccionário
É surpreendente ouvi-lo dizer que em Abandoned City não usou por uma vez electrónica. Mas era mesmo esse o seu objectivo: “Queria fazer um disco de electrónica sem usar electrónica, só com instrumentos analógicos." Chamem-lhe vanguardista reaccionário, se quiserem.

Preparar o piano, explique-se, não é passar-lhe um pano do pó ou olear-lhe as juntas, muito menos verificar se tem caruncho – trata-se de colocar objectos por cima ou entre as cordas do instrumento, de modo a alterar o som que estas produzem. Consoante a imaginação e a paciência do instrumentista para experimentar desde bolas de pingue-pongue por cima dos graves a moedas entaladas nas cordas dos agudos, o espectro de sons que se consegue alcançar no instrumento aumenta consideravelmente.

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Há dez anos, Bertelmann descobriu o piano preparado e como resultado surgiu The Prepared Piano, o primeiro disco em que sentiu "que queria ir por aquele som adentro": "Queria fazer qualquer coisa com ruído e melodia ao mesmo tempo, mas não tinha a certeza de haver alguém que quisesse ouvir um disco com piano preparado." Bem, desde os tempos de John Cage que há interesse na coisa. Mas Bertelmann diz que “na altura não conhecia John Cage”, o que tendo em conta que o seu treino é clássico nos faz pensar o que raio é o ensino de música na Alemanha. “A verdade é que em vez de ouvir os clássicos e a vanguarda eu andava a ouvir hip-hop e música de guitarras – não fazia a mínima ideia de que já ocorrera a mesma ideia a outro tipo." 

Por mais caricato que isto pareça, a primeira vez que leu o nome de Cage foi no libreto do seu próprio disco. “A editora encomendou a alguém umas notas e foi então que li sobre ele e os professores dele e fui ouvir a música; senti-me aliviado por não estar sozinho e feliz por não os ter conhececido antes, porque se calhar não teria feito o disco." A partir daí, Bertelmann ganhou uma obsessão: “Para mim tornou-se necessário criar cada um dos sons que se ouve nos meus discos." E por criar entenda-se: manipular o instrumento de modo a que este nunca soe “puro” (se pudermos desginar por "pura" uma construção humana aprimorada ao longo de séculos).

Imagens na cabeça
Bertelmann começou a aprender piano clássico aos nove anos numa escola “tão boa que ao fim de cinco anos” ele “já era melhor do que o professor”. Para melhorar ouvia “toda a música possível, com um gravador nos joelhos, tentando reproduzi-la no piano ao mesmo tempo que ouvia”. Herbie Hancock, pianistas de jazz, de rock ou de fusão – copiou tudo. Tocou teclas em bandas rock “mas não era um músico rock” e foi estudar Medicina porque “tinha medo de não sobreviver como músico”. Chegou a fazer hip-hop com um primo seu, mas foi preciso que Ferndorf lhe regressasse ao cérebro para encontrar a voz.

“Aquele sítio... aquele sítio influenciou imensamente o meu som. Crescer num sítio pacífico, onde podia fazer tudo o que quisesse: saía para os campos com os amigos e a minha mãe só pedia que eu voltasse antes de ficar mesmo escuro. Criava casas na floresta, podíamos comer no campo. Não tinha sentido do tempo. Tudo se resumia ao que era lúdico. E muito do que há de ambiental na minha música vem daí." Até hoje, não consegue decidir-se entre morar na cidade ou “arranjar uma quinta com uns animais e ao fim do dia ver o fruto do trabalho no prato, sob a forma de batatas”. É um sofisticado que sente “o apelo de algo mais frugal, mais físico”. 

Talvez seja um nostálgico – é certamente um sujeito para quem a memória ocupa um lugar fundamental. “As memórias dos lugares, isto é o que mais me inspira a compor. Os sítios abençoam-nos com muita coisa, com imagens e sons. Lembramo-nos de um sítio qualquer, dez anos depois de lá termos estado, e vêm-nos à cabeça a rapariga que conhecemos lá e os sons e as imagens. E isso entra na minha música, que tende a criar muitas imagens na cabeça das pessoas. As pessoas dizem-me muitas vezes que ao ouvirem a minha música fazem filmes." 

Não façam filmes: não se preocupem em definir se Hauschka é um visionário ou um imitador, se pertence à vanguarda ou é da reacção. Não torçam o nariz às melodias – que são, efectivamente, bonitas – nem se incomodem se elas derem lugar a batidas que resultam da estranha preparação do piano. Deixem-se guiar pelo homem, fechem os olhos e uma corrente de associações há-de criar no vosso cérebro a vossa própria narrativa.