Evie Wyld criou Jake, a mulher que não procura o amor

Evie Wyld chega com um romance brutal, Todos os Pássaros do Céu, em que há mistério, abuso, solidão, sexo e uma beleza estranha. Um livro negro sobre sobrevivência que venceu o mais prestigiado prémio literário da Austrália, e onde a paisagem parece determinar quase tudo: “Posso deprimi-la se a puser a olhar as colinas da Ilha de Wight num domingo à tarde."

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Evie Wyld continua a trabalhar numa livraria do Sul de Londres todas as tardes, mas não se deixa contagiar facilmente pelo que vende: “Não se manifesta na pele” Roelof Bakker

Evie Wyld tinha 16 ou 17 anos e acabara de ler Cloudstreet (1991), o romance de Tim Winton sobre duas famílias da classe operária de um subúrbio de Perth que é considerado uma peça essencial da literatura australiana. Fechado o livro, Wyld indagava sobre o que seria das pessoas que nele viviam. A possibilidade de ter o total domínio sobre a vida das personagens e poder segui-las para o resto das suas vidas foi uma das razões principais para que quisesse escrever ficção. Agora, fecha-se Todos os Pássaros do Céu e Jake Whyte persiste com a sua força e com todos os fantasmas que vivem na sua memória. A protagonista do segundo romance de Evie Wyld é difícil de esquecer. “Quem me dera que cada beijo jamais terminasse.” A frase retirada de uma canção dos Beach Boys, Wouldn’t it be nice, que Jake ouve e nela ressoa torna-se uma espécie de hino deste romance negro contado na primeira pessoa com recurso a flashbacks e ambientado numa paisagem rural, em lugares inóspitos que expõem o que há de mais árido e de mais denso em quem os habita. É um livro inclemente, que vem confirmar Evie Wyld como umas das escritoras mais poderosas da sua geração. 

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Evie Wyld tinha 16 ou 17 anos e acabara de ler Cloudstreet (1991), o romance de Tim Winton sobre duas famílias da classe operária de um subúrbio de Perth que é considerado uma peça essencial da literatura australiana. Fechado o livro, Wyld indagava sobre o que seria das pessoas que nele viviam. A possibilidade de ter o total domínio sobre a vida das personagens e poder segui-las para o resto das suas vidas foi uma das razões principais para que quisesse escrever ficção. Agora, fecha-se Todos os Pássaros do Céu e Jake Whyte persiste com a sua força e com todos os fantasmas que vivem na sua memória. A protagonista do segundo romance de Evie Wyld é difícil de esquecer. “Quem me dera que cada beijo jamais terminasse.” A frase retirada de uma canção dos Beach Boys, Wouldn’t it be nice, que Jake ouve e nela ressoa torna-se uma espécie de hino deste romance negro contado na primeira pessoa com recurso a flashbacks e ambientado numa paisagem rural, em lugares inóspitos que expõem o que há de mais árido e de mais denso em quem os habita. É um livro inclemente, que vem confirmar Evie Wyld como umas das escritoras mais poderosas da sua geração. 

Evelyn Rose Strange nasceu em Londres em Junho de 1980, filha de mãe australiana e pai inglês. Passou parte da infância e adolescência numa quinta dos avós maternos na Nova Gales do Sul, Austrália, e vive actualmente em Inglaterra, onde trabalha numa livraria independente de Peckham, no Sul de Londres. Não se acha mais de um continente do que de outro, isso pouco lhe importa, mas os dois formaram uma identidade que sente definir-se pela distância. Ou seja: quando está longe da Austrália, a memória reconstrói esse espaço longínquo. A experiência do ali vivido junta-se à imaginação, o produto de tudo isto devolvido depois na ficção que escreve: contos e romances tão negros quanto fantásticos em que testa os nervos do leitor. Foi assim em After the Fire, A Still Small Voice, romance de estreia publicado em 2009 sobre dois homens que vivem sem se conhecerem na costa australiana de Queensland. Volta a ser assim em Todos os Pássaros do Céu, de 2013, livro que veio confirmar o talento já muito sublinhado de Wyld. A revista Granta colocou-a entre os jovens escritores da década; a BBC reservou-lhe um lugar na sua lista dos melhores 12 jovens escritores ingleses. “Não encontro muito de que me orgulhar pelo facto de ser uma mulher inglesa ou uma australiana branca”, refere nesta entrevista em que fala das motivações que a levaram a escrever um livro que é um grito. O grito de Jake. 

Com o romance de estreia, estivera entre os finalistas do Orange Prize, com este conquistou o prémio que lhe é mais querido. E o que pode mudar na vida de uma escritora de 34 anos quando ganha esse prémio e deixa para trás nomes como o de Richard Flanagan, que venceu o último Booker Prize? A resposta vem depois de falar da questão da identidade mista, inglesa e australiana, e de isso ser cartão de visita. “É a velha história de os ingleses andarem por muitos lugares e chamarem-lhe seus (e matarem pessoas ao longo do processo)”, diz. "Tendo a ter muitas dúvidas acerca da minha condição de australiana quando estou na Austrália porque não tenho sotaque. Não sou, de todo, patriota. Adoro os países pelas suas paisagens e pela sua beleza, mas a minha herança tem tão pouco a ver comigo — eu apenas nasci, de uma mulher australiana e de um homem inglês, e para mim o assunto limita-se a isso — que não há necessariamente orgulho. Provavelmente terá sido por isso que nunca consegui praticar desportos de equipa!”

Há cerca de um ano, Evie Wyld era surpreendida com a notícia de que vencera o Miles Franklin Literary Award, a mais prestigiada distinção das letras australianas. Além de Richard Flanagan, estavam na corrida Alexis Wright  — que já conquistara o prémio em 2006 com Carpentaria — e Tim Winton, sempre citado por Wyld como uma das suas grandes referências, que também já ganhara em 2002 e 2009, com Dirt Music e Breath, respectivamente. “Senti um misto de gratidão e estranheza”, conta, sublinhando que não mudou muita coisa depois disso na sua vida de escritora. “Talvez haja mais tempo para escrever”, salienta, graças ao desafogo que os mais de 80 mil euros do prémio lhe permitiram. “Talvez haja mais convites”, acrescenta, "mas não estou mais confiante nem sou certamente melhor": "É sempre trabalho duro, não importa o sucesso que se esteja a ter."
 
A raiva de Jake
Em Todos os Pássaros do Céu, Wyld ergue um universo de sobrevivência e solidão em que explora o lado mais negro da condição humana com gestão minuciosa da tensão narrativa. Desde o início, desde a primeira frase. “Mais uma ovelha estropiada e esvaída em sangue, as entranhas ainda moles e exalando vapores como um pudim cozido.” Jake Whyte está com o seu rebanho, sozinha na quinta, numa ilha britânica muito pouco povoada e às voltas com um passado de que vamos conhecendo os contornos aos poucos, à medida que os fantasmas a vão visitando e a memória os devolve através de medos, pesadelos e uma luta permanente por se manter à tona. “Que estupidez ter pensado que não ia tudo descambar num desastre”, lê-se pouco depois, no primeiro contacto com a cabeça de uma personagem construída a partir da raiva. Continua: “Essa sensação idiota que experimentei quando vi a casa pela primeira vez, baixa e branca como um seixo calcário no sopé negro das pastagens ondulantes, a segurança de não ter ninguém por perto a espiar-me, parecia ter acontecido há uma eternidade. Levei a mão ao lado do frigorífico para sentir o cabo do machado.”

Jake Whyte não é uma mulher comum. É uma mulher magoada e zangada que nasceu da vontade de Evie Wyld de escrever sobre uma mulher que não estava ali “para se apaixonar, não estava ali para amar nem para ser amada”. Isso parece ser algo raro, diz a escritora. Pelo menos algo raro quando se trata de uma personagem feminina que não está preocupada com o aspecto físico: “Não me sentei para escrever sobre ‘uma personagem feminina forte’. As pessoas não falam de personagens masculinas fortes. Eu só queria uma mulher." E ela é uma mulher num universo masculino, a tentar escapar de um homem, mas também a ser alvo da gentileza de outros homens, num equilíbrio ambíguo entre amor e medo, e num olhar cru sobre a identidade feminina. “O livro foi ficando com cada vez mais raiva à medida que eu ia escrevendo, mas não me sentei a escrever com essa intenção. Muitas coisas que saíram dele foram uma surpresa para mim. Até então eu não me apercebera de que tinha ideias tão fortes acerca de alguns aspectos da sua identidade feminina. Mas, como já disse, Jake não era uma pessoa à procura de amor, ela não saberia o que fazer com isso”, e é esse pormenor que irá definir a relação que estabelece com Lloyd, um homem que chega à ilha em circunstâncias misteriosas. Essa relação, sublinha, Wyld, “é-lhe suficiente”. 

Não houve propriamente uma inspiração biográfica para chegar a Jake nem ao mundo em que ela habita. Há referências, claro, há a vida toda que se vive e se transporta para o que se escreve, com os interesses pessoais. “Sempre disse que o horror me interessava. Gosto de histórias familiares sobre fantasmas, não aquelas que vêm da ficção, mas aquelas em que as pessoas acreditavam genuinamente." E a paisagem veio da infância. Londres e Nova Gales do Sul. Mas também o campo inglês com a sua melancolia. “Posso deprimi-la” — garante-me — “se a puser a olhar para as colinas da Ilha de Wight num domingo à tarde. A luz em Inglaterra é líquida e suave e o lugar parece triste.”

Verdade
É nesse ambiente que procura o que acha essencial na literatura, “um sentido de verdade”, um lugar onde não há “mauzões” nem “bonzinhos” porque mal e bem fazem parte da complexidade que quer captar, a tal verdade. “Todos somos capazes de coisas negras e todos somos capazes de bondade." Numa frase, todos temos um “lado solitário brutal” e, na sua escrita, Wyld é capaz de fazer o leitor confrontar-se de modo inquietante com essa essência. Basta baixar as defesas, como Jake a olhar para a noite, ou deixar-se ir na cadência musical do romance, um embalo tão encantatório quanto letal, como se qualquer trégua fosse possível e o estado de alerta fosse permanente. “O olho humano sente o movimento antes de tudo o resto”, outra frase que se repete, refrão a remeter para a vigília de Jake, e onde se lêem tanto um sentido de urgência como a ideia de que Jake, como cada um dos homens, só depende de si. O grito que se ouve na escrita de Wyld é esse e contém toda a zanga de Jake. “Nos meus ouvidos há um zunido, como se fossem pássaros, no meu peito um vendaval”, ouve-se, e é como se aí houvesse não apenas a desolação de um lugar, mas sobretudo, a de uma existência. Onde se vai buscar isso? “Não há uma inspiração”, diz. Há a vida toda.

A de Evie Wyld é a de uma escritora que vende livros. Trabalha há cerca de oito anos numa livraria para sustentar a sua escrita. Quando estava a terminar Todos os Pássaros do Céu, levantava-se todos os dias às seis da manhã para escrever e às dez chegava ao emprego. A rotina alterou-se com o nascimento da filha, há uns meses. Agora tem uma hora para escrever. “Quando as coisas acalmarem espero voltar ao horário entre as seis e o meio dia, o período em que sou mais produtiva." E à tarde irá continuar a vender os livros dos outros. “Ser escritora provavelmente influencia o modo como vendo livros, mas o contrário não é verdade”, refere sobre eventuais contágios. O que escreve, o que lê e o que vende tocam-se num ponto que não lhe é perceptível. “Não se manifesta na pele”, ironiza. A voz de Wyld está nos livros que escreve e ao lê-los não se estranham, talvez, os livros que lê. Tim Winton, claro. E Melissa Harrisson, a autora inglesa de 39 anos que apareceu em 2013 com um livro muito aplaudido pela crítica, Clay, ou as americanas Jenny Offill e Lorri Moore. Em todos eles há a inquietação e o inconformismo face à escrita, o tal sentido de verdade que Wyld persegue na literatura.