Lições de pintura
Frederick Wiseman em pessoalíssima visita por mais uma instituição: a National Gallery.
Para, em parte, fazer o que sempre fez em quase 50 anos de obra que já leva: filmar um lugar e o trabalho que lá se faz, do mais nobre ao mais ingrato. Quase como ironia, a fazer lembrar aquelas cenas de Godard que juntam arte e mulheres da limpeza, o primeiro plano dentro da National Gallery (depois dos habituais, e aqui curtíssimos, establishing shots que localizam o museu dentro de Londres) mostra uma sala vazia, com as paredes cheias de quadros, e um empregado que passa, a encerar o chão. Muitas outras actividades serão mostradas ao longo das três horas de duração de National Gallery: as reuniões da administração, as oficinas de conservação e restauro, as actividades pedagógicas para crianças ou os programas para grupos com necessidades especiais (como uma notável sequência, que Wiseman deixa durar e durar, em que um grupo de invisuais “descobre” um quadro, de Pissarro salvo erro, a partir do tacto e das coloridas descrições de uma curadora do museu). E, bem entendido, os frequentadores: são muito bonitas as sequências em que o olhar de Wiseman vai atrás do olhar dos visitantes, crianças ou velhos, turistas de ar indiferente ou gente com ar de conhecedora, e numa espécie de “efeito Kulechov” vai alternando imagens dos quadros com imagens das pessoas que os vêem.
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Para, em parte, fazer o que sempre fez em quase 50 anos de obra que já leva: filmar um lugar e o trabalho que lá se faz, do mais nobre ao mais ingrato. Quase como ironia, a fazer lembrar aquelas cenas de Godard que juntam arte e mulheres da limpeza, o primeiro plano dentro da National Gallery (depois dos habituais, e aqui curtíssimos, establishing shots que localizam o museu dentro de Londres) mostra uma sala vazia, com as paredes cheias de quadros, e um empregado que passa, a encerar o chão. Muitas outras actividades serão mostradas ao longo das três horas de duração de National Gallery: as reuniões da administração, as oficinas de conservação e restauro, as actividades pedagógicas para crianças ou os programas para grupos com necessidades especiais (como uma notável sequência, que Wiseman deixa durar e durar, em que um grupo de invisuais “descobre” um quadro, de Pissarro salvo erro, a partir do tacto e das coloridas descrições de uma curadora do museu). E, bem entendido, os frequentadores: são muito bonitas as sequências em que o olhar de Wiseman vai atrás do olhar dos visitantes, crianças ou velhos, turistas de ar indiferente ou gente com ar de conhecedora, e numa espécie de “efeito Kulechov” vai alternando imagens dos quadros com imagens das pessoas que os vêem.
Sendo sobre um lugar antigo, cheio de objectos feitos no mínimo há cem anos, é de uma extraordinária subtileza a maneira como Wiseman faz entrar o tempo contemporâneo. Se National Gallery será um dos Wisemans mais pacíficos de sempre, sem retratar grandes conflitos ou atritos, há uma tensão, quase subterrânea, que tem muito a ver com o tempo. Seja o enfoque dado, nalgumas explicações dos guias, à preocupação com o “politicamente correcto” (como na cena em que se frisa que a colecção que deu origem à galeria foi formada com dinheiro proveniente do comércio de escravos), seja o choque, bem patente nas reuniões do corpo administrativo, entre a sobriedade tradicional da National Gallery e a tentação da “modernização”, da “abertura”, da chegada a “novos públicos”, da cedência a manobras publicitárias (como a possibilidade de usar a fachada do museu para uma operação de publicidade). Alguns diálogos mostrados nessas reuniões são um pequeno tratado, não comentado nem sublinhado, sobre uma linguagem muito típica dos nossos dias que exige que tudo tenha de ser uma “festa”, bem como uma ilustração da enorme pressão que na Europa contemporânea recai sobre tudo o que seja “público”, especialmente as instituições culturais. E dessas reuniões emerge a admirável personagem, duma solidão a que apetece chamar shakespeariana, do director, Nicholas Penny, sempre renitente à descaracterização do museu pela lógica de grandes sucessos de público atrás de grandes sucessos de público, e a manifestar a convicção de que a National Gallery também precisa de “fracassos interessantes” (as imagens de gente que passou uma madrugada ao relento à espera de conseguir entrar numa exposição de Leonardo da Vinci fazem raccord, pelo menos mental, com estas conversas, e são uma boa expressão da voragem consumista que tende a apropriar-se dos museus).
Ao mesmo tempo, este é o primeiro filme de Wiseman sobre imagens, mergulhado em imagens. E que imagens: de certa maneira, é possível esquecer tudo o resto — o sítio, o tempo — e ver National Gallery como um filme sobre a pintura, o primeiro filme de Wiseman sobre a pintura, e, embora num estilo e num método completamente diferentes, o primeiro grande filme sobre museus e pintura desde que, no início da década passada, Danièle Huillet e Jean-Marie Straub foram filmar a sua Visite ao Louvre. Wiseman detém-se nos quadros, Leonardos e Poussins, Holbeins e Rembrandts, em planos fixos e rigorosamente iluminados, e volta a deter-se, às vezes repetidamente, como se isto fosse também a história da sua visita pessoal ao museu e a recolha dos seus quadros preferidos. E fica a ouvir, por diversas vezes e aparentemente na integra, as belíssimas apresentações e explicações, “pedagógicas” no melhor sentido do termo, feitas pelos guias da National Gallery — no fundo, os verdadeiros “heróis” do filme, “homens-quadro” e “mulheres-quadro” que fazem lembrar, tremendamente, os “homens-livro” e as “mulheres-livro” do Fahrenheit 451 de Truffaut, últimos mensageiros de uma civilização prestes a desaparecer.