Morreu Maria Nobre Franco, "uma mulher cheia de qualidades"

Galerista, coleccionadora e primeira directora do Museu Berardo morreu esta manhã em Cascais.

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O velório é hoje na Basílica da Estrela, em Lisboa, das 18h às 23h. Amanhã, às 13h30, também na Basílica da Estrela, celebra-se uma missa que antecede a saída do funeral para Messejana, no Alentejo – a sua vila natal.  

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O velório é hoje na Basílica da Estrela, em Lisboa, das 18h às 23h. Amanhã, às 13h30, também na Basílica da Estrela, celebra-se uma missa que antecede a saída do funeral para Messejana, no Alentejo – a sua vila natal.  

Licenciada em Filologia Clássica e Filosofia da Arte, Maria Nobre Franco foi casada com Rui Valentim de Carvalho, pioneiro da indústria musical portuguesa que morreu no final de 2013. Foi num dos espaços da editora, no Palácio das Alcáçovas, que fundou uma das galerias de arte fundamentais para os anos 1980 e princípio da década de 1990.
 

Aberta por uma década, entre 1984 e 1995, num período em que em Lisboa poucos espaços se dedicavam em exclusividade à arte contemporânea, a Galeria Valentim de Carvalho teve "uma actividade enorme e extremamente importante", recorda o pintor Jorge Martins.

Amigo desde o exílio de Paris, antes do 25 de Abril, Jorge Martins foi um dos artistas da galeria, juntamente com nomes de gerações que vinham de trás como René Bértholo, Joaquim Bravo e António Palolo. Juntaram-se-lhes, em exposições pontuais e outras colaborações, Mário Cesariny, Helena Almeida, Ana Jotta, Ângelo de Sousa, Alberto Carneiro e José Escada. 

Mas Jorge Martins sublinha sobretudo a visibilidade dada aos que eram então novíssimos nomes, como José Pedro Croft, Pedro Calapez e Rui Sanches. Ou ainda Xana e o Grupo Homeoestético. Um cruzamento de gerações e linhagens que haveria de marcar também a direcção do primeiro Museu Berardo e que na galeria foi feita com "largueza e grandeza", nomeadamente através da edição de catálogos.

"A Maria soube fazer isso", refere Jorge Martins, "era uma pessoa excepcionalmente sensível, generosa, afectuosa. Uma mulher cheia de qualidades e uma capacidade de acção muito grande." 

São palavras repetidas por Pedro Calapez, que recorda as idas em grupo à Arco, a feira de arte contemporânea de Madrid, à época praticamente a única plataforma de internacionalização da arte portuguesa. "As idas à Arco eram sempre uma festa. Era uma pessoa de uma suavidade especial e generosidade fora do normal."

Era, diz Xana, uma profissional "exemplar": "Dos galeristas com quem trabalhei foi a única que foi sempre honesta. Por vezes até mais do que honesta."

Xana diz que, quando sentia que os artistas precisavam, Maria Nobre Franco comprava obras para a sua colecção pessoal, muitas vezes a 100% do valor de mercado, sem os descontos habituais aos profissionais do meio. Quando a galeria fechou "percebi que nunca mais valia a pena trabalhar com outros galeristas. Sobretudo na relação pessoal com os artistas, não voltei a ver igual."

Maria Nobre Franco deixou a Valentim de Carvalho em 1994 para assessorar Vítor Constâncio na presidência de Lisboa’94 – Capital Europeia da Cultura. Foi três anos depois, em 1997, que assumiu a direcção do Sintra Museu de Arte Moderna – Colecção Berardo, cargo que deixou apenas em 2008, aquando da criação do actual Museu Colecção Berardo de Arte Moderna e Contemporânea, no Centro Cultural de Belém, em Lisboa.

Como directora, deu grande visibilidade a artistas nacionais, tanto jovens como já com carreiras mais longas e provas dadas, mostrando o seu trabalho ao lado dos artistas estrangeiros representados na colecção. Entre as exposições que organizou contam-se, por exemplo, as dedicadas aos portugueses Rui Chafes e Júlio Pomar, ao irlandês Michael Craig-Martin, à espanhola Susana Solano e ao luso-brasileiro Fernando Lemos.

"Para a Maria, o mais importante era abrir todas as portas que tornassem possível a realização dos projectos que ela amava e nos quais acreditava com todo o entusiasmo e paixão", diz o escultor Rui Chafes. Na Valentim de Carvalho, Chafes diz ter visto "as primeiras exposições de toda uma nova geração que veio provar que era possível criar condições de trabalho para artistas muito novos e ambiciosos". Foi também lá "que vimos obras de artistas internacionais chegar a colecções nacionais".

Entre esses artistas internacionais apresentados pela galeria, estiveram nomes tão fundamentais como Donald Judd, Tony Smith, Joel Shapiro, Carl Andre e Robert Gober. 

"Era uma galerista do maior rigor e ambição e foi absolutamente pioneira na criação de um mercado da arte activo e com crédito", diz Chafes. Sublinhando como "nunca abandonava os artistas em quem acreditava".

Foi com Maria Nobre Franco, em Sintra, que Chafes fez a sua primeira exposição de carácter antológico: intitulada Durante o Fim, e de ambição rara, ocupava o Museu Berardo, o Palácio da Pena e o Parque, antecedendo em quase 15 anos a antológica de 2014 do Centro de Arte Moderna da Gulbenkian. "Foi exclusivamente fruto do seu enorme entusiasmo, paixão generosidade e capacidade de visão e de grande escala. Sem ela essa exposição nunca teria acontecido."

Na sua colecção pessoal, Maria Nobre Franco juntou obras de quase todos os artistas portugueses com quem em algum momento trabalhou, uma lista de nomes a que se juntam, por exemplo, Julião Sarmento, Álvaro Lapa, Helena Almeida e Eduardo Batarda. 

Antes do 25 de Abril, nomeadamente com o primeiro marido, o sociólogo José Carlos Ferreira de Almeida, esteve também ligada à luta antifascista. Foi presa pela PIDE depois de assinar uma carta dirigida a Salazar em protesto contra o assassinato, em 1961, do escultor José Dias Coelho, militante do Partido Comunista que em 1955 optara por entrar na clandestinidade.

Foi depois dessa prisão que rumou a Paris, onde viveu entre 1962 e 1965, ano do nascimento do filho, o realizador Bruno de Almeida.

Depois do Museu Berardo foi ainda representante da Câmara Municipal de Lisboa na Fundação Arpad Szenes/Vieira da Silva e na Fundação Júlio Pomar (até 2013). Em 2005, no dia internacional da mulher, foi condecorada com Ordem do Infante D. Henrique pelo então Presidente Jorge Sampaio. 

No comunicado que na tarde desta terça-feira fez chegar à comunicação social, a família refere ainda a paixão por cinema que a levou a ajudar vários realizadores do Cinema Novo nas décadas de 1960 e 1970. Depois de Belarmino, "conseguiu juntar os amigos para financiar o segundo filme de Fernando Lopes", Uma Abelha na Chuva, uma das obras maiores do cinema português, recorda o comunicado. 

Delfim Sardo, curador e ensaísta, amigo próximo, diz: "Maria Nobre Franco foi tudo isso mas, sobretudo, era luminosa, com a intensidade de uma sensibilidade que a fez compreender o seu tempo, por vezes irritar-se com a pequenez e o provincianismo, mas sabendo sempre que pouco importa que não seja a generosa partilha. Foi esta dimensão, da civitas como espaço de troca, de oferta da arte à fruição, que a moveu, que nos moveu com ela e que agora mora, mais silenciosa e cega, nas obras que por ela esperam e que, mais solitárias, a saúdam.”