Os intestinos podem mudar a nossa cabeça?

O que se passa no misterioso mundo dos nossos intestinos pode afectar-nos o humor e até ter um papel em fenómenos como a depressão. A alemã Giulia Enders escreveu um livro em que fala, sem rodeios, de um órgão que é muito mais inteligente do que imaginamos.

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A alemã Giulia Enders, 25 anos, formada em Gastroenterologia pela Universidade Goethe de Frankfurt, interessou-se por aquele que descreve como “o nosso órgão mais subestimado” e escreveu um livro sobre ele, que rapidamente chegou ao primeiro lugar no top de vendas na Dinamarca, Alemanha e Holanda. Em Portugal, A Vida Secreta dos Intestinos acaba de ser editado pela Lua de Papel e já está em terceiro lugar no top de vendas da Fnac.

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A alemã Giulia Enders, 25 anos, formada em Gastroenterologia pela Universidade Goethe de Frankfurt, interessou-se por aquele que descreve como “o nosso órgão mais subestimado” e escreveu um livro sobre ele, que rapidamente chegou ao primeiro lugar no top de vendas na Dinamarca, Alemanha e Holanda. Em Portugal, A Vida Secreta dos Intestinos acaba de ser editado pela Lua de Papel e já está em terceiro lugar no top de vendas da Fnac.

Um dos pontos mais interessantes do livro de Giulia Enders é a relação que os intestinos têm com o nosso humor e a importância que a irritação intestinal pode ter, por exemplo, no stress e na depressão. Giulia – que decidiu estudar Medicina por causa de um grave problema de pele que teve aos 17 anos e que só se resolveu quando percebeu que a origem estava nos intestinos – começa por explicar que estes têm uma inteligência própria, que os coloca ao nível do tão admirado cérebro.

“Com prudência, começa-se a questionar a posição absolutamente dominante do cérebro”, escreve. “Não só os nervos do intestino existem em quantidade inimaginável como também são incrivelmente diferentes por comparação com o resto do corpo. […] A rede nervosa do intestino é, por conseguinte, também conhecida por cérebro intestinal. […]. Nenhum organismo jamais criaria tamanha rede de neurónios apenas para emitir um simples flato. Tem que haver algo mais por detrás disso.”

O que Giulia explica é que há uma ligação directa do intestino para o cérebro, com o primeiro a enviar ao segundo uma série de sinais que chegam a diferentes regiões do cérebro – a ínsula, o sistema límbico, os córtex pré-frontal, a amígdala, o hipocampo e o córtex anterior cingulado – ligadas às emoções, à moral, ao medo, à memória, à motivação. “Isto não quer dizer que o nosso intestino guie os nossos pensamentos morais, embora haja a possibilidade de os influenciar.”

O exemplo que dá para falar da ligação entre intestino e depressão é o do “rato nadador”: se se puser um rato num alguidar com água, como é que ele reage? Nada para se salvar? Sim, claro, mas se se tratar de um rato com tendências depressivas, acabará por ficar imóvel e, eventualmente, afogar-se. “Ao que parece, nos seus cérebros os sinais inibidores conseguem passar muito mais facilmente do que os impulsos motivadores e impulsionadores”.

Giulia conta a experiência feita pela equipa do cientista irlandês John Cryan, que deu aos ratos uma bactéria conhecida por cuidar do intestino, a "Lactobazillus rhamnosus", concluindo que estes “nadavam não só mais tempo, como também de forma mais esperançada”. A informação sobre o melhor estado dos intestinos era transmitida por estes ao cérebro através do nervo vago e a disposição do rato mudava (quando os cientistas cortavam o nervo vago, o comportamento dos ratos voltava ao que era anteriormente).

Dois anos depois, foi realizado outro estudo, este já com humanos. “Os resultados não só surpreenderam [os responsáveis pela investigação] como toda a restante comunidade científica”, afirma Giulia no livro. “Após quatro semanas a ingerir uma determinada mistura de bactérias, algumas áreas cerebrais apresentaram alterações significativas, sobretudo as áreas responsáveis pelo processamento da dor e das emoções.” Estes resultados são encorajadores, segundo a autora, que sublinha que “para pessoas com um intestino irritado, pode ser muito pesada a ligação que há entre intestino e cérebro.”

O stress também tem aqui um papel determinante. Se estivermos muito stressados, o cérebro vai precisar de energia e vai “pedi-la” ao intestino, que “solidariamente poupa energia durante a digestão” – situações continuadas de stress significam portanto “falta de apetite, mal-estar, diarreia” e são, naturalmente, de evitar.

Este conhecimento sobre a complexidade do intestino está a ser aplicado pelos médicos no dia-a-dia?, perguntamos a Giulia numa conversa por telefone. “Muito dele ainda não, porque ainda não temos provas definitivas. Relativamente à relação entre os intestinos e o cérebro, existem já muitas experiências mas não um produto final ou uma teoria reconhecida. Mas achei que devia falar disso no livro para que as pessoas que sofrem, por exemplo, de doença inflamatória do intestino possam beneficiar sabendo o que se passa na área da investigação.”

E em que ponto estão as investigações nesta área? “Até há poucos anos faltava-nos o equipamento adequado, existia uma barreira técnica”, diz Giulia. Hoje já houve uma evolução a esse nível, embora, admite, exista uma certa barreira social “porque anunciar que se estuda fezes não será a coisa mais agradável”. Mesmo assim, conta, a experiência que teve com as apresentações públicas do seu livro foi de que as pessoas “podem achar um pouco estranho de início” conversar sobre intestinos e fezes, “mas depois de alguns minutos percebem que é interessante e deixam de ter problemas em relação a isso”.

O livro utiliza uma linguagem muito simples e desenhos muito elucidativos para explicar, por exemplo, qual é a posição ideal para estar sentado na retrete – é inclinado para a frente e com os pés assentes no banquinho (o mais próximo possível da posição de evacuar sem retrete, de cócoras) porque o intestino fica mais direito e o esforço é menor, evitando-se assim a formação de hemorróidas e divertículos.

O terceiro capítulo centra-se no gigantesco mundo das bactérias que vivem nos nossos intestinos – a chamada flora intestinal –, um mundo interior que, garante Giulia, é mais fascinante que o que existe à nossa volta. E em relação ao qual “só agora é que a investigação está realmente a começar”. Mais uma vez, os intestinos dominam as atenções: é que “dos microorganismos que vagueiam dentro de nós, 99% encontram-se no intestino”.

Porque este é um universo ainda em grande parte desconhecido, a nossa tendência é para nos preocuparmos excessivamente com as bactérias más (que existem, sem dúvida) e não darmos o devido valor às boas (que existem em muito maior quantidade). “Preocupamo-nos muito em não comer isto ou aquilo e centramo-nos demasiado em evitar as bactérias más”, diz Giulia ao PÚBLICO.

“Como não as podemos ver, isso dificulta de certa forma o nosso comportamento”, continua a autora. “Por isso acho importante que quando se lê sobre este assunto se possa realmente imaginar todas essas bactérias dentro de nós. No passado, a nossa alimentação tinha muito mais vegetais, por exemplo, o que lhes dava muito mais trabalho do que pão branco ou massa. As bactérias tinham muito mais comida para fazer todo o tipo de coisas, como tornar o nosso sistema imunitário mais tolerante ou influenciar o nosso humor de uma forma positiva.”

A obsessão de algumas pessoas com a higiene também acaba por ter como consequência matar todas as bactérias, as más e as boas. “A higiene é positiva, mas é preciso não esquecermos que 95% das bactérias não nos prejudicam de forma nenhuma, algumas ajudam-nos e outras não fazem nada. Não me parece lógico que usemos tanta energia a vermo-nos livres de bactérias que nos são úteis”, afirma Giulia.

Mas, mais importante do que isso, é contribuirmos para tornar a nossa flora intestinal mais saudável através dos probióticos e dos prebióticos, tentando reduzir o número de vezes que temos que recorrer aos antibióticos. Os probióticos são as bactérias vivas que entram nas nossas bocas durante todo o dia, e que podem ser boas para nós ou simplesmente inofensivas (os prébióticos são, por seu lado, alimentos que estimulam as bactérias boas mas só funcionam quando estas já existem no nosso organismo). Giulia lembra que as bactérias existem em todos os países em alimentos como o chucrute, o crème fraiche, os pickles ou o queijo.

Mas a industrialização “padronizou os processos de produção com bactérias individualmente escolhidas a partir do laboratório”. E isto torna a nossa flora intestinal muito menos rica e variada, “o que pode levar a um aumento de desordens metabólicas e doenças inflamatórias”.

Há também ligações entre a flora intestinal e a obesidade. “Todas as doenças resultam de diferentes factores, que podem ser genéticos, ambientais, ou que podem estar ligados à nossa alimentação e às bactérias que temos. Uma pessoa pode ser obesa por comer 20 bolos por dia ou por factores genéticos. Sabemos que as bactérias têm uma influência entre 10 e 30% no nosso peso. E através delas podemos modificar e melhorar as coisas.” Com limites, claro. “Tornar uma pessoa magra apenas mudando as bactérias não é possível se ela continuar a comer muito.”

Todos temos ainda muito a aprender sobre este mundo. Giulia acredita que vai haver uma evolução na forma como os médicos em diferentes áreas vão olhar para as nossas bactérias e potenciar os lados bons delas em cada caso específico. Afinal, elas precisam de nós e nós precisamos delas. Só temos que nos conhecer melhor.