Como a igualdade de género fez da Suécia um país mais rico
O país tem um Governo que se autodesigna “feminista”. Que quer impor quotas nas maiores empresas obrigando-as a ter 40% de mulheres a mandar. E pressionar os casais a partilhar mais as licenças parentais.
Um folheto que promove Estocolmo como destino turístico e de negócios fala da reconhecida qualidade do ar que aqui se respira e das águas límpidas dos lagos. Explica que esta é uma capital com muito talento, uma cidade “aberta” e cosmopolita. Fala da moda, da gastronomia, das lojas de design e de como é seguro viver aqui. E mais isto: “50% da população é solteira, por isso há uma forte possibilidade de encontrar a sua alma gémea em Estocolmo!”
A frase que segue o ponto de exclamação acrescenta que esta é “a cidade ideal para constituir família”. Afinal, “os pais têm direito a 480 dias de licença parental por cada filho e as crianças pequenas têm acesso a jardins de infância subsidiados”. E posto isto: “Bem-vindo a Estocolmo!”
Sim, falar de licenças parentais é suficientemente “sexy” para se colocar em duas páginas destinadas aos visitantes estrangeiros num texto da responsabilidade da agência pública que faz a promoção da cidade. Pelo menos na Suécia é.
O país que ocupa o 4.º lugar (em 142) no ranking do Fórum Económico Mundial que mede a igualdade de género (depois da Islândia, da Finlândia e da Noruega) era, nos anos 60 do século passado, um dos que tinham piores taxas de natalidade na Europa. Hoje é dos que têm das mais elevadas — Portugal é a que tem a mais baixa da União Europeia dos 28. O que é que igualdade de género tem que ver com os bebés que nascem? E com a performance económica de um país?
“A nossa ideia sobre a igualdade de género é que é uma questão de direitos, sem dúvida, mas é também algo que permite uma série de ganhos sociais, que permite atingir vários objectivos”, diz a muito pragmática ministra sueca para a Igualdade, Åsa Regnér, numa tarde chuvosa de Abril num encontro com um grupo de jornalistas estrangeiros na sede do seu ministério. “Desde logo, o objectivo do crescimento económico. A possibilidade de usar toda a competência e capacidade da mão-de-obra existente — e havendo mais mulheres a sair das universidades com graus académicos, mais do que homens, temos de fazer uso desse investimento que se está a fazer nelas. Isto é bom para os indivíduos, mas também para toda a sociedade.”
Depois, quando podem escolher, em situação de igualdade, “homens e mulheres estudam, trabalham... e também têm mais filhos do que nos países do Sul da Europa, que se dizem orientados para a família”, prossegue a ministra que tem a seu cargo ainda as pastas das Crianças e dos Idosos. É consensual que, sem uma situação demográfica positiva, dificilmente há crescimento económico.
Nos anos 70, quando a Suécia começou a construir “o seu famoso Estado social”, muitas das decisões partiam desta ideia: era preciso que as mulheres entrassem em força no mercado de trabalho, “a indústria precisava muito de mão-de-obra, o sector público também”. Estava em jogo o crescimento económico. E hoje, com o país a revelar a sua “resiliência” face aos últimos anos de crise na Europa — a palavra “resiliência” é da OCDE —, a necessidade permanece: “Precisamos de muita gente a trabalhar, para que possam tomar decisões nas suas vidas e desenvolverem-se como indivíduos, mas também para poderem pagar impostos, porque todo o nosso modelo se baseia nos impostos”, diz a ministra. Há um site governamental que explica, com graça, que “a Suécia é tão conhecida pelos elevados impostos como pelos móveis Ikea e os Abba”, sendo que a Skatteverket, a agência responsável por taxar os contribuintes, é a segunda instituição pública mais apreciada pela população depois da que trata das questões relacionadas com os consumidores.
Os suecos pagam muito (os impostos representam 44,2% do PIB, 32,4% em Portugal). Mas acham que recebem bastante.
No Centro Täppan, um jardim-de-infância de Estocolmo conhecido pelo seu “trabalho na área da igualdade de género” com as crianças, quase não há carrinhos e não se avistam Barbies. Aqui, aposta-se em brinquedos “mais neutros” do ponto de vista do género, explica Yvonne Häll, a coordenadora da instituição que todos os dias recebe 80 crianças entre os 12 meses e os cinco anos.
Yvonne Häll mostra como se trabalham “outros materiais” — panos, papel, madeiras, adereços vários, de chapéus a sapatos antigos, de vestidos de bailarina a fatos de pirata. Faz parte de um plano: “Encorajamos as crianças a ter tolerância e respeito umas pelas outras. Não construímos espaços para rapazes ou para raparigas. Utilizamos diferentes tipos de materiais e tentamos que as crianças os explorem. Se um rapaz veste um vestido, a menina não diz: ‘Ah, não podes usar isso porque és rapaz’ — aqui eles não têm essa atitude, são crianças muito pequenas, não trazem isso com elas, e nós não alimentamos estereótipos.”
A ideia é libertar as crianças das expectativas e das exigências que a sociedade tem, tradicionalmente, em relação a rapazes, por um lado, e raparigas, por outro. E se o menino chega a casa e diz aos pais que andou a experimentar vestidos, não lhe vêm pedir explicações?
A educadora de infância sorri: “Imaginem um círculo onde estão várias qualidades que uma pessoa pode ter: a bondade, a inteligência, etc… aqui, queremos oferecer a cada criança todas as boas qualidades. Não dizemos assim: ‘Esta qualidade é de menina e esta de menino.’ Damos tudo a todos e eles farão depois as suas escolhas sobre o que querem ser. Quando se explica isto aos pais, ninguém contesta. Porque é simples.”
No máximo, uma família com mais rendimentos, e apenas um filho, paga 131 euros de mensalidade no Centro Täppan. A tabela é a mesma para qualquer “pré-escola” — förskola — do país. Quantos mais filhos uma família tem, menos paga. O quarto filho tem direito a frequentar gratuitamente. Famílias com baixos rendimentos não pagam nada. Mais de metade das crianças de um ano e 90% das de cinco anos frequentam um jardim-de-infância.
Nas últimas quatro décadas tem-se canalizado muito do muito dinheiro que os suecos pagam em impostos precisamente para apoiar as famílias — o que permitiu às mulheres ir trabalhar, sem pensar em deixar de ter filhos.
Alguns resultados: o país tem a maior taxa (80%) de emprego da União Europeia e a maior taxa de emprego feminino (77,6%). É também dos que têm maior representação de mulheres na política e no Governo — apesar de nunca ter imposto quotas aos partidos. Assiste ao nascimento de mais 30 mil bebés por ano do que Portugal (tendo menos de dez milhões de habitantes). E é um dos países onde homens e mulheres mais partilham os cuidados com as crianças (por exemplo, na hora de contar o número de pais e mães que em 2013 tiraram dias, pagos, para ficar com os filhos doentes, 57% foram mulheres e 43% homens).
Conseguiu-se outra coisa: “A possibilidade de as crianças terem os dois pais presentes e não apenas um deles, o que é importante”, diz Åsa Regnér. Que avisa, contudo: “Parece que estamos no paraíso da igualdade, mas não.”
Ouviremos isto várias vezes nesta viagem a Estocolmo. “A sociedade sueca ainda é uma sociedade desigual...”, diz Annika Creutzer, 60 anos, colunista, especialista em Finanças pessoais e também “mãe solteira, adoptiva, de uma menina chinesa”.
“Há discriminação. Há diferenças salariais. Há a violência doméstica. Não! Isto não é o paraíso da igualdade”, declara enfaticamente Gudrun Schyman, 66 anos, secretária-geral do partido FI (sigla para Iniciativa Feminina) que, por pouco, não elegeu, nas últimas eleições, no ano passado, o seu primeiro deputado para o Parlamento nacional. A imprensa estrangeira deu destaque a este pequeno partido com dez anos de vida durante uma campanha eleitoral onde o debate sobre a igualdade de género foi intenso.
O Eurobarómetro, que periodicamente analisa a opinião dos europeus sobre os mais diversos assuntos, também mostra esta aparente contradição: no país que aparece sistematicamente entre os primeiros no ranking mundial da igualdade, 72% da população acha que a desigualdade de género está disseminada na sociedade. É mais do que os 63% de insatisfeitos registados em Portugal, que está mais de 30 lugares abaixo no dito ranking.
Foi neste cenário que Stefan Löfven, 57 anos, o novo primeiro-ministro, que tomou posse no final do ano, declarou solenemente no Parlamento que a Suécia teria um “Governo feminista”.
Constituído por 12 mulheres e 12 homens, resultado de uma coligação entre o Partido Social Democrata e os Verdes, o novo “Governo feminista” já anunciou várias medidas. Em primeiro lugar, se, ao longo deste ano, as maiores companhias suecas listadas na bolsa não garantirem que os seus conselhos de administração têm, pelo menos, 40% de mulheres, em 2016 sairá uma lei que as obriga a ter.
Actualmente, a Suécia já é dos países com maior peso de mulheres nas administrações das grandes companhias do mercado bolsista (mais de 28% segundo dados da Comissão Europeia, contra 9% em Portugal, por exemplo). Mas o Governo acha que isso é escandalosamente pouco. “Vá, aproveitem agora! Vão buscar todo esse talento feminino!”, diz a sorrir Åsa Regnér. Não disfarça a ironia.
Sim, é o Governo a intrometer-se no sector privado. E isso não é pacífico, como nota Kristina Fjelkestam, directora do departamento de estudos de género na Universidade de Estocolmo. Mas outras medidas pró-igualdade não o foram no passado. “Às vezes, não se pode esperar pela mudança da consciência social”, diz a investigadora.
Às vezes, os políticos têm de caminhar “à frente” da população, diz também Niklas Lofgren, especialista em políticas de família, na Agência para a Segurança Social Sueca. E têm mesmo caminhado em alguns aspectos, na opinião de Annika Creutzer.
Niklas Lofgren mostra um cartaz de um homem supermusculado, cabeleira e bigodes enormes, ruivo — um Viking, portanto —, a segurar nos braços um bebé. Em letras grandes, vermelhas, lê-se: “Papá em licença parental!”
Muitos suecos lembram-se bem deste cartaz (que faz a capa desta edição da Revista 2). Foi lançado na década de 70 do século passado, quando a Suécia se tornou o primeiro país do mundo a acabar com a “licença de maternidade”, a criar a mais neutra “licença parental” de seis meses, paga a 90%, e a dizer que esta devia ser repartida entre homens e mulheres. O sorriso do bebé no cartaz mostrava como isso era bom também para a criança.
O cartaz, hoje, suscita risos, mas não mais do que isso — a campanha não teve grande sucesso, concede Lofgren, 45 anos, pai de dois filhos. Em 1993, quase metade dos pais não gozaram “um único dia de licença”.
Em 1995, o Governo decidiu criar “a quota do pai”. Ou seja, se o recém-papá não gozasse, pelo menos, um mês da licença parental que, até ali, era quase um exclusivo feminino, esse mês subsidiado perdia-se. Houve quem achasse que era uma intromissão do Estado, que deviam ser pais e mães a escolher como faziam com os bebés. Havia mesmo quem dissesse que se estava a prejudicar as mulheres. Em 1996, o número de homens a não gozar nenhum dia de licença desceu para menos de 15%.
Em 2002, o Governo sueco deu mais um passo: a “quota intransmissível” cresceu para dois meses. E é assim até hoje: a licença parental é de 480 dias (uma licença longa comparada com a prática europeia), a maioria pagos a 80% do salário; dois meses são destinados a ser gozados pelo pai e outros dois pela mãe, os restantes 12 podem ser repartidos pelos dois membros do casal (a mesma regra aplica-se a casais de pessoas do mesmo sexo com filhos), por inteiro ou em part-time, até a criança fazer 8 anos.
O impacto da nova “quota” voltou a ser evidente. Em 2014, mais de 90% dos pais homens usaram a licença parental. Em média, 88 dias, se se fizer as contas aos dias usufruídos até 2013 pelos que foram pais em 2008. (Em Portugal, 42% dos beneficiários de algum tipo de licença parental, incluindo os 10 dias “exclusivos do pai” já são homens, fez saber a Segurança Social portuguesa, mas os que dividem a licença de 150 dias/180 com as mulheres rondam os 24%, sem contar com funcionários públicos, faz saber o Observatório das Políticas de Família).
Para ministra para a Igualdade sueca, os níveis de partilha no seu país sabem a pouco. É que, feitas as contas, ainda só um quarto dos dias de licença parental que o Estado paga anualmente é pago a homens. Por isso, o “Governo feminista” prepara-se para agir de novo. Ainda este ano apresentará uma proposta de lei que aumenta de dois para três meses as quotas intransmissíveis. “Temos dados para dizer que, se tivermos uma partilha maior da licença parental, também teremos uma partilha maior do trabalho doméstico e dos cuidados com as crianças”, diz a ministra para a Igualdade.
Não é consensual, uma vez mais. “Para os partidos conservadores, não deveria haver sequer uma parte da licença só para a mãe e outra só para o pai”, refere Niklas Lofgren. E a nova medida não deverá trazer ao Executivo muitos votos, sublinha. E mais crianças, trará? Lofgren reconhece que não são só as políticas natalistas e igualitárias que levam as pessoas a ter filhos. O ambiente económico ajuda.
Gudrun Scyman, do FI, enfurece-se quando se lhe fala desta proposta do Governo. “Mais um mês não vai mudar nada!” Defende que a licença devia ser dividida ao meio, ponto final, metade para o homem, metade para a mulher. “Não, eu não sou contra a liberdade de escolha. Mas simplesmente não há liberdade de escolha porque ainda vivemos numa sociedade patriarcal. Se há, como há, uma norma social que diz que cuidar das crianças é uma responsabilidade da mulher, não se pode falar de escolha, ficam as mulheres em casa!”
“O trabalho não pago não é devidamente dividido entre homens e mulheres”, concede a ministra Åsa Regnér. “Mas sabemos que estas mudanças, destinar mais um mês a um dos membros do casal, colocam uma grande pressão sobre as famílias e que elas, de facto, acabam por mudar o seu comportamento. Coloca também pressão sobre os empregadores, que passam a esperar que os homens fiquem em casa e que as mulheres não fiquem tanto tempo em casa.”
E dividir a licença ao meio, como reclama Gudrun Scyman? “Somos um governo minoritário. E se quiséssemos avançar já para os 50-50, a lei não passaria. Acredito que as posições estão a mudar e parece-me que as novas gerações já serão a favor do 50-50.”
No Centro Täppan, as casas de banho são unissexo mas, ao contrário do que se passa noutros jardins-de-infância na Suécia, ainda não se adoptou o pronome “hen” — nem “han” (ele) nem “hon” (ela), “hen” é um pronome neutro que se destina a diluir a carga do género na forma como nos referimos às pessoas. “Ainda não é uma coisa que surja de forma natural”, concede Yvonne Häll.
“Mas os jovens estão a usar muito”, conta. “Tenho dois filhos, de 18 e 23 anos, que estão sempre a usar, surge a toda a hora. No outro dia, perguntei ao meu filho, que tinha acabado de falar com alguém ao telefone: ‘Estavas a falar com um ele ou com uma ela?’ E ele respondeu: ‘Por que é que não perguntas se tem o cabelo ruivo?’ Ok, eu percebo. É uma nova forma de pensar. É uma discussão interessante.”
Vários jornais já adoptaram o “hen”, bem como muitos livros para crianças. A introdução no dicionário da Academia Sueca estava anunciada para Abril.
Por muito que haja quem considere “ridículo” o “caso” em torno do pronome neutro, sobre o qual já tanto foi escrito e dito no país, este ilustra bem como o debate em torno do género está presente na sociedade sueca — uma sociedade onde há muito deixou de ser aceitável dizer que as mulheres são melhores a cuidar de crianças do que os homens (mesmo que haja quem ainda acredite nisso, como reconhece a ministra) ou achar que as famílias onde há duas mães ou dois pais são diferentes das restantes.
“Algumas pessoas até podem não achar bem este modelo de família, mas não se atrevem a dizê-lo”, diz Karin Nylund, 41 anos. Ela e Sara Nylund, 42, casaram-se “numa cerimónia tradicional”, com a família e amigos, “cerca de 100 convidados”. Compraram uma moradia construída em 1946, em Älvsjö, um bairro tranquilo a meia hora de comboio do centro de Estocolmo. E puseram em prática o seu plano de ter filhos, com quem haveriam de passar as férias na casa de campo dos pais de Karin. “Somos uma família sueca normal.”
Para a filha mais velha, Juno, hoje com cinco anos, Karin recorreu a uma clínica na Dinamarca onde se faz inseminação artificial. Os mais novos, Tore (um rapaz que está agora com três anos e meio) e Mika (uma menina de três meses), nasceram depois de uma inseminação feita num hospital sueco.
Legalmente, Karin e Sara são ambas mães das três crianças, exactamente com os mesmos direitos e deveres. “As crianças chamam-nos às duas ‘mãe’. Ou ‘mãe Sara’ ou ‘mãe Karin’. Um dia, quando fizerem 18 anos, poderão, se quiserem, ter acesso à identidade dos dadores. Nós não sabemos quem são.”
Karin trabalha no Ministério dos Negócios Estrangeiros, 40 horas por semana, que é “o horário normal”, e Sara numa empresa de marketing britânica que tem uma filial em Estocolmo. Os seus salários juntos somam 9062 euros por mês. Depois dos impostos, ficam com pouco menos de 6200 euros. Acrescentam a isto o abono de família das três crianças, cerca de 400 euros mensais livres de impostos — para explicar que o abono de família é universal, para todas as crianças, independentemente de quanto ganham os pais, Niklas Lofgren da Segurança Social gosta de utilizar uma expressão: “Até os filhos do rei recebem.”
Quando os miúdos forem mais velhos, terão acesso a escola gratuita, a refeições gratuitas e a actividades extracurriculares a baixo custo. Se quiserem, Sara e Karin poderão ainda contratar uma empregada doméstica, para ajudar nas tarefas caseiras, e terão benefícios fiscais por isso.
Recentemente, Karin e Sara decidiram acrescentar um piso à casa — para dar mais conforto à família cada vez mais numerosa. E para já é aqui, nesta casa luminosa com vista para um pequeno quintal com relva, que passam bastante tempo. Têm dividido entre as duas as licenças parentais de cada criança e, quando a de Mika se esgotar (neste momento é Karin quem está a gozar a sua parte, tendo Sara, a que deu à luz, voltado ao trabalho), planeiam passar a trabalhar em part-time durante uns tempos. “Pode ser trabalhar a 80% ou a 90%, só o suficiente para podermos ir alternando os dias: num dia, uma de nós sai um pouco mais cedo para ir buscar as crianças à escola; noutro dia, outra”, diz Karin.
“Na Suécia, as empresas esperam que as mulheres tirem licenças longas, ninguém estranha”, explica ainda. “E tens o direito de trabalhar em part-time, para estar mais com os filhos, sem que seja feita qualquer pergunta. É um bom sítio para se ter filhos: as crianças têm acesso a cuidados médicos gratuitos (até aos 20 anos), incluindo dentários. E pela Juno e pelo Tore pagamos 200 euros por mês” no pré-escolar.
A maioria das “pré-escolas” pertencem aos municípios, mas também há várias geridas por cooperativas de pais. Karin pertence à direcção daquela onde tem os filhos, a poucos minutos de casa.
Por lei, explica, todas as “pré-escolas” têm de estar preparadas para abrir às 6h30 da manhã e para acolher as crianças até às 18h30. Os meninos comem, brincam e fazem a sesta no jardim-de-infância — sendo que na Suécia é hábito que mesmo no pico do Inverno, com neve e temperaturas abaixo de zero, as crianças durmam ao ar livre, “muito embrulhadas em sacos-cama”.
Na prática, as direcções falam com cada um dos pais para saber quais são as suas reais necessidades em termos de horários. E não é suposto que uma criança fique 12 horas na escola — também isso não é “bem visto”.
“Há esta ideia de que ser uma boa mãe é não deixar as crianças no infantário muito tempo. Algumas até contratam amas para as irem buscar às três da tarde. Há uma pressão enorme, a pressão de ser supermãe”, lamenta a especialista em finanças pessoais, Annika Creutzer.
Então e os superpais — esses homens suecos que aparecem retratados nas revistas internacionais com os bebés a tiracolo enquanto aspiram a casa? Não sentem a pressão?
“As medidas adoptadas [nas últimas décadas] tornaram mais fácil às mulheres conciliar a vida profissional e familiar, mas não desafiaram verdadeiramente a distribuição do trabalho não pago entre homens e mulheres”, diz a perita em igualdade de género Anita Nyberg, investigadora na Universidade de Estocolmo. A estatística mostra que desde 1990 elas reduziram o seu trabalho não remunerado em média uma hora por semana e eles dedicam-lhe mais... oito minutos.
O que significa ser homem, hoje, na Suécia, é uma pergunta que provoca um ataque de tosse a Fredrik Sörebo, 55 anos. O que mudou na ideia de masculinidade no país que sempre aparece no topo dos rankings da igualdade? “Ahhh, esse assunto é tão difícil!”
Sörebo é responsável pelo Mansjouren, em Estocolmo — uma espécie de gabinete de apoio para homens em dificuldades, seja porque estão envolvidos em episódios de violência doméstica, como agressores ou vítimas, e procuram ajuda, seja porque precisam de um psicólogo mas não o conseguem pagar no mercado privado, ou porque se divorciam e não chegam a acordo em relação à partilha dos filhos, e precisam de aconselhamento legal.
Depois da tosse, Sörebo arrisca: “É claro que fui educado numa época completamente diferente desta, tenho 55 anos. Posso dizer ‘ah, sou tão neutro’, mas é claro que... não esperem que seja perfeito... Estudei Psicologia na universidade. Acabei há apenas uns anos. Estudei com pessoas com metade da minha idade. E sim, somos diferentes, mas não tão diferentes assim. Às vezes, assisto aos debates oficiais e uau... ‘Estamos assim tão mal?’”
A Suécia foi no passado um país de agricultores — os homens tratavam de planear as colheitas para garantir comida à mesa nos rigorosos meses de Inverno, elas cuidavam da casa e dos filhos. Mas, em relativamente pouco tempo, o tema igualdade de género tornou-se omnipresente — já se disse, a ministra para a Igualdade acha que, “absolutamente sim”, o desenvolvimento económico do país deve muito ao que foi feito nessa área. E talvez por isso o “discurso oficial” a que se refere Sörebo esteja tão centrado no que está mal.
Mesmo comparando com outros países nórdicos, o debate na Suécia em torno das questões de género “é muito mais radical e foca-se mais nas desigualdades que restam no que nos progressos feitos”, explicou, numa entrevista ao Wall Street Journal, Lena Wängnerud, professora de Ciência Política na Universidade de Gotemburgo.
Fredrik Sörebo tem dificuldade em perceber: “Sinceramente, não acho que haja enormes diferenças entre os homens e as mulheres na Suécia. A minha ex-mulher é uma mulher de negócios muito bem sucedida. E a minha actual mulher tem uma empresa... Tenho dois filhos que me parecem muito normais — e eles seriam os primeiros a criticar-me se achassem que eu era um homem da idade da pedra... posso não ser um homem perfeito, mas acredito no julgamento deles.”
Mesmo que à sua volta Sörebo não as sinta, as diferenças estão expressas nalguns indicadores que alimentam o debate. O Eurostat diz que em média as mulheres na União Europeia ganham por hora menos 16% do que os homens. Na Suécia, o hiato é de 15% e em Portugal de 13%. Dados de 2013. Estes cálculos limitam-se a comparar o preço por hora de trabalho — não têm em conta o tipo de trabalho, a experiência e o nível de escolaridade do trabalhador, por exemplo, alerta Annika Creutzer. Se esses factores forem tidos em conta, a diferença é de 7%, segundo os últimos dados do instituto sueco de estatística.
Sendo “um hiato salarial mais pequeno do que outros países têm, a verdade é que existe e está ao mesmo nível há dez anos”, lamenta Åsa Regnér. E não há “paraíso da igualdade” que aguente o facto de haver diferenças salariais exclusivamente baseadas no género e sectores do mercado de trabalho onde a segregação é evidente — 77% dos professores do ensino superior são homens, 93% das educadoras de infância são mulheres. Em profissões predominantemente masculinas ganha-se melhor, naquelas onde dominam as mulheres, pior, sublinha.
“Isto tem consequências para o resto da vida”, prossegue Åsa Regnér. “No que diz respeito às pensões de reforma, por exemplo, as mulheres recebem cerca de 60% das pensões dos homens.” Simplesmente porque salários mais baixos, e mais tempo em casa, significam contribuições mais baixas. “Quando vemos as diferenças salariais entre homens e mulheres antes do nascimento do primeiro filho, as diferenças nem são enormes. O nascimento do primeiro filho é o momento-chave.”
Para lidar com o problema, o “Governo feminista” vai obrigar os empregadores a analisarem anualmente os salários que pagam a homens e a mulheres e a tornarem transparentes as suas políticas salariais. Se detectarem diferenças, devem explicá-las nas inspecções periódicas de que são alvo — a discriminação com base no género é proibida.
Outro nó difícil de desatar é o da violência. O país não se saiu bem numa mega-sondagem divulgada no ano passado pela Agência Europeia para os Direitos Fundamentais: 46% das suecas inquiridas disseram já ter sido vítimas de violência. É das maiores percentagens da União Europeia. Outros países igualmente conhecidos pelos bons indicadores relacionados com a igualdade de género saíram-se ainda pior: Dinamarca, 52%, Finlândia, 47%...
Alguns investigadores alertaram na altura para a possibilidade de os dados poderem reflectir uma maior consciência do abuso nestes países. Seja como for, outros números não deixam margem para dúvidas: em média, 17 suecas por ano são mortas por pessoas com quem tinham uma relação íntima — em Portugal, no ano passado, foram 35. “Nos últimos 15 anos investimos em legislação, em casas de abrigo, em educação, na formação das autoridades, no sistema judicial, nos hospitais, para que prestem um bom serviço às vítimas de violência doméstica”, diz Åsa Regnér. “É preciso fazer muito mais.” A começar nas escolas. Åsa Regnér quer reforçar os currículos nestas áreas.
O “Governo feminista” tem mais planos, inclusive além-fronteiras. Anunciou uma “agenda feminista” para a política externa. Os direitos humanos em geral e os das mulheres em particular devem estar presentes quando o Estado sueco debater com outros países política e negócios, quando cooperar em cenários de conflito e ajudar na reconstrução.
O feminismo está na ordem do dia. “É óptimo que os meus colegas de Governo acordem de manhã e se sintam feministas. Mas é óptimo também que ao longo do resto do dia trabalhem de forma feminista, e deverão fazê-lo”, diz Åsa Regnér. No final da legislatura, os suecos avaliarão. “E vai ter de se perceber qual a diferença entre um governo feminista e outro governo qualquer.”
A Revista 2 viajou a convite do Ministério dos Negócios Estrangeiros sueco e da Embaixada da Suécia em Lisboa